GERAL

Já não se pergunta mais, onde moras?

Por Renato Hoffman e Valéria Ochôa / Publicado em 9 de junho de 1997

O fim da ocupação do Conjunto Habitacional Fazenda da Juta pelos sem-teto, em São Paulo, é uma imagem simbólica da política de habitação no país. Os 474 policiais destacados para a operação de reintegração de posse acabaram com o sonho dos sem-teto, que ocuparam por 19 dias a construção da Companhia de Desenvolvimento Habitacional Urbano (CDHU), do Estado (PA) e de São Paulo. O choque mostrado nos telejornais foi comparado aos massacres de Corumbiara Eldorado dos Carajás (RO), onde dezenas de sem-terra foram mortos. O déficit habitacional no país chega a 12 milhões de moradias populares. No Rio Grande do Sul, estima-se que o mesmo índice alcance 700 mil moradias ou 2,8 milhões de gaúchos. Daqui a três anos este número poderá chegar a 900 mil moradias. O atual governo do estado extinguiu agente financeiro de fomento – sem uma função ainda a Companhia de Habitação do Rio Grande do Sul. A Caixa Econômica Estadual, tradicional recentemente foi transformada em agência do setor, há oito anos não financiava um único metro quadrado de moradia, e claramente conhecida. Diante deste quadro de omissão – deliberada ou não – do poder público, frequentemente desesperado, sem emprego, sem assistência à saúde, sem escola para os filhos, o cidadão recorre à ocupação de terrenos e edificações. Busca na organização direitos universais, esta população Rurais Sem-Terra, comunitária e popular uma forma de reagir. Abandonada pela Igreja Católica, que já foi uma aliada habitual destas lutas por sem lugar para morar na cidade agora procura a solidariedade do Movimento dos Trabalhadores que conseguiram, com o custo de muitas vidas, transformar a reivindicação da Reforma Agrária numa pauta da agenda nacional defendida pela maioria dos brasileiros. Mas, apesar da gravidade do problema e da costumeira violência com que é tratado, tudo indica que os sem-terra urbanos ainda terão de percorrer um longo caminho até que cada um e todos os brasileiros exijam uma resposta razoável para a pergunta Onde moras?

No passado, as ocupações urbanas e rurais tiveram um aliado importante na ala progressista da Igreja Católica. Em 1993, a Campanha da Fraternidade sobre o tema da moradia perguntava: “Onde moras?” Hoje esse apoio é discreto e localizado.

“A Igreja se retirou da linha de frente”, confirma uma fonte da CNBB, que pediu para não ser identificada. O motivo: a perseguição aos religiosos que se propõem a ajudar as comunidades carentes.

Sob a liderança de Dom Paulo Evaristo Arns, a diocese de São Paulo ainda mantém a Pastoral da Moradia, que apoia o movimento dos de sem-teto. A aposentadoria do arcebispo, que completou 75 anos, e a provável nomeação de um sucessor identificado com a linha conservadora da Igreja, deverá enfraquecer a atuação da diocese paulista junto aos movimentos populares.

No Rio Grande do Sul , onde a pastoral da moradia não existe, a ligação da Igreja com os sem-teto é feita pelas Comunidades Eclesiais de Base (Cebs). Em alguns casos, seus integrantes participam da discussão e organização de ocupações. Também prestam solidariedade, recolhendo donativos.

Mas, hoje, nada é comparável, por exemplo, à ocupação da Vila Santo Operário, em Canoas, em 1979, que teve o apoio decisivo dos religiosos.

Os cerca de três mil sem-teto que foram a Brasília nos dias 9 e 10 de junho não repetiram o sucesso da manifestação promovida pelo Movimento dos Sem-Terra em abril, quando cinco mil deles chegaram a capital federal a pé, numa marcha que saiu de vários pontos do país.

Os sem-teto também queriam uma audiência com o presidente Fernando Henrique para exigir uma política social que trate da falta de moradia popular. Não conseguiram. Receberam uma advertência de FHC: “Habitação não se ganha no grito!”.

Nenhum ministro recebeu os sem-teto. Lideranças do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), Central de Movimentos Populares (CMP), União dos Movimentos de Moradia (UMM) e demais entidades que promoveram a caravana, entraram em contradição. Alguns líderes disseram à imprensa que não tinham intenção de incentivar invasões, outros garantiram o contrário.

Um dos coordenadores do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), Ary Vanazzi, garante, porém, que os sem-teto estão se organizando, na linha do Movimento dos Sem-Terra.

A ideia é engrossar as fileiras da luta pela Reforma Agrária, para eles, a espinha dorsal de uma política social que deverá impulsionar as demais questões, como a moradia.

“São organizações diferentes, porque têm histórias distintas e as lutas se desenvolvem em áreas diferentes, mas a estratégia de organização para manter a luta é a mesma, tem as mesmas características, um único alvo”.

“Eles (os sem-terra) deram certo, nós temos que fazer o mesmo”, defende Roberto José dos Santos, do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto da Zona Oeste de São Paulo. Santos afirmou à Folha de São Paulo que está “havendo uma grande troca de informações e de táticas de ocupações” entre os sem-teto e o MST.

O MST confirma o apoio aos sem-teto

“Temos feito algumas discussões para trocar experiências sobre nossa organização”, revela Ivonete Tonin, integrante da coordenação estadual do MST no Rio Grande do Sul . Em fevereiro, durante a ocupação de uma área em São Leopoldo, as duas organizações estiveram lado a lado.

O MST tem orientado os sem-teto sobre como resistir às tentativas de desocupação e à ação da Brigada Militar, apoiando os urbanos com alimentos trazidos dos assentamentos.

“Só no governo FHC, 400 mil famílias perderam suas terras. A maioria dos sem-teto é de ex-agricultores pobres que saíram do campo, em busca de emprego na cidade”, diz Ivonete. “Nosso objetivo, além de questionar a política neoliberal de FHC, é mostrar aos movimentos organizados da sociedade que este país tem jeito, e que podemos mudá-lo a partir da mobilização popular.”

Mas as articulações entre movimentos de sem-teto e o MST são recentes. Os sem-teto participaram da marcha dos sem-terra a Brasília, 400 deles saíram de Campinas (SP). O encontro foi saudado pelas lideranças dos dois grupos como “a união dos trabalhadores do campo e da cidade pela Reforma Agrária e contra o desemprego”.

A retribuição aconteceu entre 9 e 12 deste mês, quando os agricultores reforçaram a caravana dos movimentos populares.

Na capital gaúcha

Na última manifestação promovida pelo MST em Porto Alegre houve um encontro com os dirigentes do Movimento Gaúcho de Luta pela Moradia (MLPM). Depois de um jogo de futebol em que o MST bateu o MLPM pelo placar de 10×1, conversaram sobre a necessidade de uma maior articulação entre os dois.

Isto, porém, enfrenta obstáculos de ordem prática e política. A primeira, conforme Gilberto Aguiar, 35 anos, integrante do movimento, é que, ao contrário dos sem-terra, os sem-teto não têm uma direção unificada.

Muitas vezes, a organização das famílias acontece após a ocupação, e algumas ações ocorrem sem que os sem-teto conheçam a realidade da área a ser ocupada. Isso tem causado ordens de despejo que acabam por desestruturar o embrião do movimento.

Todas as regiões de Porto Alegre têm áreas ocupadas, porém, ainda não existe uma entidade que aglutine os sem-teto. A UAMPA, de grande tradição de lutas na década de 80, perdeu força e representatividade. “Ela não entende a dinâmica atual do movimento”, analisa Gilberto Aguiar.

Segundo diagnóstico da Comissão de Transportes e Habitação da Câmara de Vereadores (Cuthab), de Porto Alegre, “nos anos 70, com o fortalecimento do movimento popular, as ocupações em vazios urbanos eram realizadas de forma organizada e articulada.

Hoje a realidade é diferente. Cada vez mais ocorrem movimentos em que a desorganização e a ausência de lideranças são fatos corriqueiros. É comum os ocupantes darem início à discussão sobre organização após a ocupação, formando uma comissão de representantes.

Em alguns casos, os ocupantes são tão carentes que sequer conseguem organizar uma representação capaz de dialogar com as autoridades ou proprietários das áreas ocupadas. (…) A realidade da população que hoje invade essas áreas é de total exclusão, sem nenhuma organização, beirando muitas vezes à marginalidade. São excluídos de tudo, inclusive da comunidade local.”

A outra dificuldade é política, uma vez que, na maioria dessas organizações, há uma disputa pela liderança e, em muitos casos, os dirigentes são identificados com partidos ou tendências partidárias rivais.

Porém, há 10 anos, o movimento se caracterizava pelo enfrentamento político, através de ações concretas de ocupação. Hoje é mais propositivo. Aceita a mediação de instâncias instauradas pela prefeitura de Porto Alegre como o Orçamento Participativo, os conselhos populares regionais e comissões paritárias, e aposta no diálogo. Essa mudança de postura está associada à presença de partidos de esquerda no governo municipal, nos últimos nove anos.

A líder dos sem-teto de São Paulo, Verônica Kroll, coordenadora do movimento Fórum dos Cortiços, defende a união dos movimentos.

“Se nós não nos unirmos, não vamos chegar a lugar algum. As duas reformas (rural e urbana) têm de acontecer juntas, disse à Folha de São Paulo”. Ela acredita que em alguns anos possa acontecer a luta conjunta cidade e campo, cobrando políticas nacionais de habitação.

Apesar da simpatia mútua, os movimentos de sem-teto ainda estão longe de poderem ser comparados ao MST. Os trabalhadores rurais conseguiram vencer o isolamento e incluir a luta pela reforma agrária na agenda nacional, convencendo a população de que se trata de uma causa justa. O movimento está estruturado em todo o país, tem representantes no Congresso Nacional e seus líderes costumam ser requisitados pela mídia.

Condenado a 26 anos e meio de prisão por homicídio, num julgamento colocado sob suspeita pela imprensa mundial, o líder dos sem-terra José Rainha Júnior saiu do Tribunal de Justiça do Espírito Santo nos braços do povo.

Mais tarde se soube que 18 dos 25 jurados eram parentes dos mortos no caso e a imprensa brasileira passou a questionar o instituto do júri popular. João Pedro Stédile fazia uma palestra num seminário do BNDES quando teve suas declarações pinçadas e divulgadas aos jornalistas pelo porta-voz da presidência da República, Sérgio Amaral.

O governo acusava o coordenador do MST de incitar à desobediência civil, aconselhando as pessoas com fome a invadir supermercados. A íntegra da palestra, publicada pela revista VEJA, acabou com o assunto. Ao contrário dos sem-teto, os sem-terra têm oportunidade de se defender publicamente de acusações deste tipo.

Estratégias coordenadas

As reuniões do MNLM para discutir as estratégias são regulares. No Rio Grande do Sul, uma coordenação se reúne uma vez por mês e uma executiva se encontra a cada 15 dias. No país, a reunião é a cada dois meses. A discussão é a mesma: a implementação de uma política de enfrentamento ao neoliberalismo.

“Em 10 anos, o projeto neoliberal constituirá, no Brasil, 150 milhões de excluídos que não terão direito a um ou dois pratos de comida por dia”, alerta Ary Vanazzi, explicando que o modelo neoliberal é responsável pela situação de miséria e extinção de direitos mínimos do cidadão.

Solidário às ocupações de terra pelo MST, o movimento pela moradia se coloca radicalmente favorável às ocupações dos vazios urbanos e prédios que estão a serviço da especulação imobiliária e que foram construídos com o dinheiro dos trabalhadores.

“Nós estamos nos organizando, incentivando e vamos fazer isso”, depõe Vanazzi. “Porque é o único jeito de mostrarmos para a sociedade o descalabro que está criado no país, e dizer aos governos que ninguém aguenta mais, que eles têm de tomar providências”.

O movimento no RS tem 12 coordenadores nas maiores cidades. Trabalham com a formação de lideranças, através de seminários específicos. Vanazzi aponta duas grandes dificuldades para o movimento urbano: a luta diária pela sobrevivência das pessoas e a falta de ajuda financeira.

“A solidariedade no campo é muito maior do que na cidade. As famílias que já conseguiram suas terras doam alimentos para quem ainda esta na luta”, observa.

Vanazzi conhece bem as agruras desta luta. Conseguiu sua casa durante uma ocupação em São Leopoldo, no final dos anos 70.

“Desde que me conheço por gente, trabalho com esta questão da moradia”. “O povo do campo, com o êxodo rural, teve seus laços culturais quebrados. As filas do INSS, padaria, hospitais, geram disputa, não solidariedade”, observa. “É difícil unir os elos de ajuda mútua diante das dificuldades mais emergenciais como a fome. Primeiro, o sem teto pensa na comida, para depois pensar na moradia.” Vanazzi aponta ainda a luta histórica no campo, desde os quilombos, as ligas camponesas. “O movimento urbano é mais recente e mais individual”.

A criação de uma base que dê apoio financeiro para o movimento urbano é prioridade para os sem-teto.

“Um dos nossos motes estratégicos é buscar recursos. É criar um embrião que dê sustentação ao movimento. As ideias, a política para lutar por uma cidade justa, igualitária, nós já temos”, assinala Vanazzi. “Não temos ajuda externa de ninguém. Nosso trabalho é fruto de nossa vontade, da organização política”.

Violência e morte

A Caravana pela Moradia aconteceu 21 dias depois da execução, pela Polícia Militar de São Paulo, de Jurandir da Silva, um dos três sem-teto baleados durante a desocupação dos 448 apartamentos do Conjunto Habitacional Fazenda da Juta, na periferia da capital paulista.

Segundo laudo do Instituto de Criminalística de São Paulo, Jurandir da Silva foi executado por um PM. Os autores dos disparos que levaram à morte os outros dois sem-teto – Crispim José da Silva e Geraci Reis de Moraes – não foram identificados.

O laudo do IC descartou a possibilidade de os sem-teto terem efetuado disparos contra os PMs, já que não foram encontrados no local nem armas nem marcas de projéteis que comprovassem esta hipótese.

A ocupação dos apartamentos do Conjunto Habitacional Fazenda da Juta também acabou confirmando a precária organização dos sem-teto. Não haviam líderes para negociar com o governo do estado de São Paulo, nem para apaziguar os ânimos da Polícia Militar, muito menos para orientar e acalmar os ocupantes.

Não houve enfrentamento por parte dos invasores. A polícia disse que atirou apenas para o alto. O laudo do IC comprovou que pelo menos as balas que atingiram Jurandir não estavam voltadas para o céu.

Em menos de 30 minutos, os 474 policiais destacados para a operação de reintegração de posse acabaram com o sonho dos sem-teto que ocuparam por 19 dias o Conjunto Habitacional, que pertence à Companhia de Desenvolvimento Habitacional Urbano (CDHU), de São Paulo.

O choque entre ocupantes e policiais, mostrado em todos os telejornais, foi comparado aos massacres de Corumbiara (PA) e Eldorado dos Carajás (RO), onde dezenas de sem-terra tombaram mortos pela ação da PM. Como é de praxe, o comando da PM alegou que havia informações de que os ocupantes estariam fortemente armados e que “os soldados reagiram à violência dos sem-teto”.

“Este episódio só atrapalha”, reagiu Evaniza Rodrigues, coordenadora-executiva da União dos Movimentos de Moradia (UMM), principal grupo que reúne pessoas sem casa em São Paulo.

“Nós queremos que nossa luta seja política e não de incidentes como esse”. Segundo ela, isso mostra que os sem-teto têm um longo caminho a percorrer para alcançar a estrutura do movimento dos sem-terra.

Dias depois do conflito na Fazenda da Juta, o delegado Gederson Ferreira, de Santo André (SP), abria inquérito policial contra um dos líderes do movimento, Ademar Machado, sob acusação de estelionato.

A polícia sustenta que Machado operava uma imobiliária clandestina que fazia inscrições para casas e apartamentos que não existiriam. A existência, nunca confirmada, de pessoas “infiltradas” no movimento é a mesma acusação que têm pesado contra o MST.

Os órgãos de segurança insistem em promover revistas nos acampamentos dos sem-terra, sob o argumento de que eles poderiam esconder armas e criminosos condenados pela Justiça.

O artigo 50 da lei 6.766/79 prevê pena de reclusão de um a quatro anos e multa de 10 a 100 salários mínimos para quem atuar como uma espécie de “agente imobiliário” – após invadir um terreno passe a comercializar lotes. É crime de “parcelamento clandestino de terra”. A vítima pode processar quem vende com base no Código de Defesa do Consumidor.

EUA escondeu os sem-teto

Durante a realização da Olimpíada, há um ano, a prefeitura e os cerca de 20 mil sem-teto de Atlanta, no estado da Georgia (EUA) travaram uma competição paralela. Antes do início dos jogos, pelo menos 9 mil homeless foram presos e levados para os albergues da cidade.

A “operação limpeza” foi denunciada pela Task Force for the Homeless, uma organização não-governamental que defende os interesses da população sem-teto. A porta-voz da entidade, Laurie Aucoin, disse na ocasião que aquela era uma atitude comum da prefeitura, mas nunca havia atingido tamanha proporção.

Enquanto as medalhas de ouro, prata e bronze eram conquistadas por atletas de todas as partes do mundo, os habitantes de prédios abandonados e estacionamentos vazios de Atlanta entravam na Justiça contra a administração municipal, acusando-a de ferir a Constituição e de querer eliminá-los da paisagem. Apesar das negativas da polícia (que nos Estados Unidos é municipalizada), a superlotação dos abrigos foi confirmada por funcionários desses locais. “Os jogos não estão sendo nada bons para essa gente”, comentou um deles.

A olimpíada dos excluídos revelou outro dado alarmante: a maioria absoluta dos sem-teto presos era composta por negros. Os líderes negros de Atlanta viram no episódio uma forma de racismo. Tanto que o ex-corredor John Carlos, que cerrou os punhos em protesto contra o racismo na Olimpíada do México, em 1968, anunciou que não iria assistir os jogos de Atlanta.

Em Nova Iorque, pelo menos cinco mil pessoas vivem sob o asfalto da cidade, em túneis e galerias construídos para a instalação do metrô; de cabos de energia elétrica e telefonia, de canos de água e esgoto. Muitos são desempregados. Eles preferem se esconder no chamado undergroung, ou subterrâneo, a serem encaminhados para os abrigos públicos, em geral controlados pelas gangues.

O que é o MNLM?

O Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM) foi criado em julho de 1990, no I Encontro Nacional dos Movimentos de Moradia, com representação de 13 estados. Materializou-se depois das grandes ocupações de áreas e conjuntos habitacionais nos centros urbanos, deflagradas principalmente na década de 80. Entre vários organismos, teve como apoiadores a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Cáritas, Central de Movimentos Populares.

Hoje também tem parceria com a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e vínculo com o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST).

O objetivo central do MNLM é a solidariedade pelo espaço urbano, numa luta orgânica e única em conjunto com o MST – além da terra, luta pelo lote, pela casa, saneamento e demais necessidades da população.

O movimento está organizado em 16 estados: Pará, Rondônia, Acre, Ceará, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo, Piauí, Maranhão, Pernambuco, Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul.

Déficit é de 12 milhões de casas

O Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM) aponta um déficit habitacional de 12 milhões de habitações populares. “O que significa quase 50 milhões de brasileiros – cerca de quatro pessoas por família, que moram em condições subumanas”, diz Ari Vanazzi, um dos coordenadores do movimento.

Pelo levantamento do governo federal, a falta de unidades é menor, cerca de 5,5 milhões. Para este ano, a Secretaria de Desenvolvimento da União tem uma proposta para a construção de 145 mil unidades habitacionais.

Segundo Vanazzi, a diferença entre os números do movimento e do governo federal se dá em função dos critérios utilizados para considerar uma moradia popular.

“Nós seguimos as orientações da OIT, que define habitação popular como uma unidade com no mínimo 40 metros quadrados, com três cômodos e um banheiro, energia elétrica e água potável”, explica. “Para o governo, tendo apenas um dos itens já é considerada uma moradia, um teto, observa.”

No Rio Grande do Sul, o MNLM estima um déficit habitacional de 700 mil moradias ou 2,8 milhões de gaúchos sem-teto. A previsão do movimento é de que até o ano 2000 o déficit seja de 900 mil moradias, se não forem tomadas providências urgentes.

“A preocupação do governo em relação à habitação está expressa no orçamento”, critica Vanazzi. “Não tem recurso, não tem política, acabou com a Cohab”. Ari Vanazzi censura ainda a intenção do governo do estado de querer retomar os imóveis que foram construídos pela Cohab. “Ele (governo) está acionando todos na justiça. A maior parte dos ocupantes destes conjuntos habitacionais está inadimplente. Há o risco de serem despejados, porque as prestações estão altíssimas”. Vanazzi acusa o governo também de não intervir junto às empresas construtoras, que utilizaram recursos do Fundo de Garantia para levantar conjuntos habitacionais e loteamentos, e que estão agora retomando os imóveis. “O Britto largou tudo nas mãos da iniciativa privada”, resume.

Projetos em andamento

O diretor de habitação da Secretaria Estadual do Planejamento, José Marson, diz que o estado tem três projetos em andamento na área da habitação popular. O Habitar Brasil, que tem recursos de R$ 21,9 milhões do orçamento da União, prevê a construção de 6.570 unidades em 80 municípios gaúchos.

O Pró-Moradia, financiado pelo FGTS, teve recursos liberados em 1996, mas as obras para a construção de 6.500 casas só começaram este ano. O programa também prevê a implantação de 10 mil lotes urbanizados na região metropolitana de Porto Alegre.

Mas a maioria das prefeituras está em dificuldades para encontrar áreas disponíveis. Por último, o Fundo de Desenvolvimento Social (FDS) reservou R$ 9 milhões do orçamento estadual para a produção de 400 unidades e para investimentos em regularização fundiária e infra-estrutura.

A Caixa Econômica Federal (CEF) tem duas linhas de financiamento habitacional, ambas com recursos do FGTS. O Pró-Moradia é destinado à famílias com renda de até três salários mínimos (R$ 360,00). O Carta de Crédito beneficia famílias que recebem até R$ 1.440,00 mensais, equivalente a 12 salários mínimos.

No Pró Moradia, o financiamento não é concedido diretamente às famílias. Os recursos são contratados pelos estados e municípios. Na maior parte dos casos, exigem uma contrapartida financeira dos tomadores do empréstimo e são aplicados na implantação de lotes urbanizados.

A liberação é autorizada pelo Conselho Curador do FGTS, composto por representantes do governo federal, dos trabalhadores e dos empresários. As prefeituras interessadas nesses recursos devem estar em dia com suas obrigações sociais, como INSS e FGTS.

Lançado em setembro de 1995, o programa Carta de Crédito veio para atender à demanda reprimida, especialmente na classe média baixa, que há muitos anos não tinha acesso ao financiamento da casa própria. Em apenas 30 dias, o programa recebeu 900 mil inscrições em todo o país.

No Rio Grande do Sul, 83 mil pessoas correram às agências da CEF para se inscrever. Até o final de abril, 46 mil candidatos haviam sido chamados. De acordo com a expectativa do gerente de habitação da CEF no estado, Paulo Cesar Hack, até o final de junho todos os inscritos serão atendidos.

MUDANÇAS – Hack antecipou algumas modificações na operação do programa para este ano. Antes, o pretendente à aquisição de um imóvel tinha um prazo de 30 dias para fechar o contrato, sob pena de perder o direito à carta de crédito. Agora, não haverá período fixo de inscrições e a pessoa deverá procurar a CEF somente quando tiver algum negócio alinhavado. O preço do imóvel não poderá ser superior a R$ 58 mil e o financiamento terá um limite de R$ 31,5 mil.

O programa também financia projetos associativos, de mais de uma família, desde que nenhuma delas tenha renda superior a 12 salários mínimos. Para a concessão do benefício, a CEF leva em conta o valor depositado no FGTS, o saldo em cadernetas de poupança e a renda familiar dos candidatos. Os juros variam de 3% a 7% ao ano, sendo que o mutuário pode optar entre duas formas de reajuste das prestações.

Pelo Plano de Equivalência Salarial (PES), a correção é anual (na data-base da categoria profissional) e o valor da parcela não poderá ultrapassar 30% da renda familiar. Pelo Plano de Comprometimento da Renda (PCR), a atualização é mensal, seguindo o índice de correção do FGTS. Este tipo de pagamento evita o resíduo no saldo devedor ao final do contrato, que tem prazo máximo de 240 meses.

GM deverá aumentar carência em Gravataí

Gravataí comemorou, no início do ano, o anúncio da instalação da fábrica da General Motors e a promessa de geração de dois mil empregos diretos e milhares indiretos. A GM deve começar a produzir os primeiros veículos em 1999, mas a notícia despertou a atenção dos desempregados da região metropolitana e do interior do estado, que já começaram a chegar à cidade.

A diretora do Departamento Municipal de Habitação (Demhab), Carla Borges, diz que os efeitos desta onda migratória ainda não foram sentidos. Mas admite que o município se prepara para oferecer soluções planejadas ao problema habitacional. Analisa que a GM exigirá profissionais especializados e dificilmente dará emprego a trabalhadores sem qualificação. Afirma que a prefeitura e o governo do estado, através da Secretaria dos Assuntos Metropolitanos, querem evitar que se repita em Gravataí a explosão populacional que ocorreu em Betim (MG), quando recebeu a fábrica da Fiat, há 20 anos.

Com um orçamento de R$ 36 milhões e uma dívida de R$ 38 milhões, Gravataí tem uma população de 205 mil habitantes, 40% deles, cerca de 80 mil pessoas, 19 mil famílias, vivendo em áreas irregulares – ocupações, finais de ruas, praças, áreas de risco. Nove entre dez moradores se concentram nos 121 quilômetros quadrados da área urbana, enquanto 10% moram nos 377 da zona rural. A prefeitura não dispõe de áreas para assentamentos e vários bairros de Gravataí sequer têm espaço para a implantação de praças.

O prefeito Daniel Bordignon (PT) assumiu em janeiro deste ano e encontrou um cadastro com 850 famílias inscritas, aguardando assentamento em lotes urbanizados. Por enquanto, a única área disponível, o loteamento Nova Santa Cruz, só dá para 120 lotes. A prefeitura negocia com o Estado a doação de uma gleba de 70 hectares, na localidade do Rincão da Madalena, que abrigaria duas mil famílias. O custo da infra-estrutura chega a R$ 2 milhões.

O município está tentando estruturar o conselho e o fundo municipais de Habitação. Além disso, procura regularizar as áreas invadidas, dentro de um conceito de ecologia urbana que prioriza a redistribuição dos espaços, saneamento básico e a melhoria das moradias. “Temos uma cidade informal, que não se reconhece, mas que existe e deve ser reconhecida”, afirma Carla Borges.

O problema é que, enquanto os projetos não saem do papel, os boatos se espalham e as áreas acabam sendo ocupadas. No dia 27 de dezembro do ano passado, 70 famílias entraram num terreno na localidade da Quinta do Sol e montaram um acampamento. A área havia sido permutada pela prefeitura com a construtora Guerino para pagar parcela de dívida da empresa com o município. A maioria destes ocupantes é de ex-moradores do Conjunto Habitacional Morada do Vale, invadido em 1987 e que tem sete mil moradias. São desempregados e famílias de baixa renda que não conseguiram suportar a prestação mensal e estão sendo despejados.

Em 20 de janeiro deste ano, a prefeitura conseguiu a reintegração de posse da área, onde as famílias a serem assentadas foram definidas pelo processo do Orçamento Participativo. Os sem-teto transferiram os barracos de lona preta para o terreno de uma escola evangélica. O soldador-serralheiro desempregado, Hamilton Solana dos Santos, 32 anos e três filhos para sustentar, cobra do secretário estadual Edir de Oliveira, dos Assuntos da Região Metropolitana, a promessa de intermediar a negociação com a Guerino, que teria evitado as ordens de despejo. A incorporadora fixou em R$ 25 mil o preço das casas, a maioria em péssimo estado de conservação. Além de uma entrada de R$ 3 mil, o pretendente tem de assumir uma prestação média de R$ 300,00.

A dona-de-casa Taís Glades da Silva, 39 anos, pagava aluguel na Morada do Vale II desde 1989. Com uma menina de um ano e meio no colo, conta que não podia mais pagar os R$ 200,00 exigidos pelo senhorio. Integrante da comissão dos acampados da Quinta do Sol, ela não reclama das precárias condições de vida no acampamento, onde há energia elétrica e água encanada, mas falta esgoto e a umidade dos barracos provoca doenças respiratórias nas mais de cem crianças. As famílias sobrevivem de “bicos” e da solidariedade dos vizinhos.

A ajuda mútua é uma característica da vida no acampamento. Os acampados dividem tarefas e discutem os passos do movimento. Providenciaram um cadastro para evitar que outras famílias engrossassem a ocupação e buscaram o apoio dos vereadores de Gravataí. Durante 45 dias, fizeram uma vigília em frente da prefeitura para chamar a atenção da opinião pública.

Um terço dos habitantes de Canoas mora em ocupações

Canoas tem hoje perto de 320 mil habitantes, segundo estimativa da prefeitura municipal. Cerca de 18% a mais do que os 269.258 apontados pelo censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 1991. Se os levantamentos são fidedignos, a cidade ganhou mais de 50 mil novos moradores nos últimos seis anos.

Dados da Secretaria Municipal de Planejamento Urbano indicam que um terço da população – mais de 100 mil pessoas – está morando em áreas privadas e públicas ocupadas. São 6.816 casas construídas irregularmente em áreas públicas, que abrigam 29.104 pessoas. Isso sem contar o Conjunto Habitacional Ildo Meneguetti, conhecido como Guajuviras – que foi invadido há mais de 10 anos, mas continua em situação irregular, e tem 26 mil moradores. A Secretaria não tem cadastro, mas calcula que moram cerca de 45 mil pessoas nas áreas privadas. Nenhuma das ocupações foram regularizadas.

CRITÉRIO – Apesar de mais 100 mil pessoas morarem em ocupações, o secretário de Planejamento Urbano, Gilberto Coelho de Souza, diz que o déficit habitacional do município atinge 7.550 indivíduos. “São famílias que realmente não têm teto”, explica. “Os que invadiram o Guajuviras, por exemplo, tem teto, mesmo que não regularizado”, sustenta. Os critérios utilizados pela prefeitura para detectar o déficit foram dois: as famílias que não têm renda e que moram em valas, em regiões onde correm os fios de alta tensão e em áreas de risco, como o dique que protege Canoas das enchentes.

São estas famílias o primeiro alvo da Secretaria Municipal de Planejamento Urbano, que para este ano tem previsto recursos de R$ 1 milhão do orçamento municipal para a desapropriação de áreas e implantação de lotes urbanizados. “É uma verba prevista. A secretaria ainda não está com o dinheiro”, assinala Souza. Ele diz que somente resolvido o problema dos sem-teto, se poderia trabalhar para os que tem baixa renda. Mas adianta: “Não basta só a vontade de resolver o problema. As dificuldades são imensas e não esbarram apenas nos recursos financeiros. Os entraves maiores são com os órgãos do governo estadual, como a Fepam, a Metroplan, que interfere diretamente na autonomia do município”.

Num loteamento particular para relocar algumas famílias que o ano passado, a prefeitura conseguiu 20 lotes urbanizados de moravam numa vala, no bairro Estância Velha. Cada família teria que pagar cerca de R$ 27,00 mensais pelo seu terreno. “Passado algum tempo, 70% estavam inadimplentes ou vendendo seus lotes a terceiros”, conta Souza. “Por aí, dá para ver como é difícil resolver esta questão. Não basta dar casa. As pessoas têm de ter emprego”. Neste ano, a prefeitura tem duas áreas desapropriadas, com 400 lotes, para reassentamento das famílias que moram em locais de risco. Para uma das áreas, a prefeitura está em tratativas com o governo do estado para a liberação de recursos. “Este projeto está bem encaminhado. Agora, o outro, está trancado na Metroplan e na Fepam”, queixa-se Souza.

Guajuviras: uma cidade dentro de outra

A casa 13, da Quadra L, Setor 2, do Guajuviras, foi ocupada pela doméstica Maria Santos, 39 anos, no início das invasões ao conjunto habitacional, em abril de 1987. Mora com o esposo Luiz Santos, 54 anos, vendedor.

“Estamos num lugar privilegiado do Guajuviras”, diz Santos: “Aqui não temos problemas com os alagamentos dos dias de chuva”. No entanto, este é o único privilégio de sua rua, localizada numa das áreas mais altas. “Água nas torneiras é uma raridade”, começa a apontar os problemas. “Tivemos de fechar a rua para ver se a prefeitura dava um jeito”. A rua foi asfaltada. Mas reclama: “a segurança é precária”.

Santos não acredita que a ocupação do Guajuviras algum dia será regularizada, apesar de pagar uma prestação mensal de cerca de R$ 10,00 para a extinta Cohab.

“Estou ficando velho e ouço todos os dias dizerem que vão regularizar e nada”.

Ocupado no dia 19 de abril de 1987, o Conjunto Habitacional Ildo Meneguetti (o Guajuviras) é uma das invasões de Canoas que apresenta mais problemas. São 26 mil pessoas em 5.924 mil moradias. Em dia de chuva, frequente alagamento das partes baixas, o sistema de esgoto derrama dejetos nas ruas.

Além das casas e apartamentos do residencial, as áreas destinadas para praças, ruas, escolas também foram ocupadas. “Cerca de 140 famílias construíram casas em cima das canalizações,” relata a arquiteta Iara Marina Waengertner, da Secretaria Municipal de Planejamento Urbano. Para arrumar os canos estas famílias terão de ser relocadas.

Nenhuma exigência requerida para o projeto inicial do Guajuviras foi cumprida pela construtora, segundo o secretário Gilberto Coelho de Souza.

“O projeto foi feito ainda na época do milagre brasileiro. Durante a construção, a economia do país foi mudando e eles acabaram reduzindo as despesas usando materiais de qualidade inferior”, explica. “Isso sem falar que não implantaram os serviços, como escolas, creches, hospital, segurança, correio e áreas de lazer, como estava previsto”, acrescenta. “Era para o Guajuviras ter uma vida independente de Canoas, mas se transformou numa grande área irregular dentro do município”.

O descrédito de Luiz Santos, morador da Casa 13, quanto à regularização do conjunto tem justificativas e é um sentimento comum aos demais moradores. Nos dez anos de ocupação, o problema rolou nas mãos dos governos estaduais e municipais, mas nunca foi resolvido. “Não é o município que tem de solucionar o problema”, defende-se o secretário Souza. “Mas também não podemos mais deixar a coisa daquele jeito. Está dentro de Canoas”.

A prefeitura e o governo do estado estão negociando uma parceria para pôr o Guajuviras em dia. A administração municipal se dispôs à assumir a pavimentação e o esgoto pluvial se o governo do estado e seus órgãos (Corsan, CEEE…) resgatarem o projeto original. O liquidante da Companhia de Habitação do Rio Grande do Sul (Cohab), Paulo Emílio Barbosa, acredita que o processo está bem encaminhado e estima que num prazo de 120 dias esteja pronta a regularização fundiária e imobiliária do Guajuviras. “É um trabalho de etapas. Aquilo que for viável, faremos”, ressalta.

Nem a prefeitura nem a Cohab revelaram o montante de recursos necessários para todo o processo. Barbosa calcula que para o esgoto cloacal será necessário um valor da ordem de R$ 2,9 milhões. Para a pavimentação e esgoto pluvial, a prefeitura acredita que terá de investir cerca de R$ 13 milhões. “Estamos viabilizando os recursos”, diz a arquiteta Iara, informando que 60% dos lotes do Guajuviras já foram para o Cartório de Registro. Segundo ela, até outubro deste ano ocorrerá a publicação da regularização do projeto. “Mas as obras têm de ser executadas primeiro, para depois recebermos o loteamento”, esclarece. Concluída esta etapa, os lotes serão individualizados, com escritura. Os moradores passarão a pagar o Imposto Territorial Urbano (IPTU) para a prefeitura e o imóvel ao estado.

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