GERAL

O mal menor das drogas

Valéria Ochôa / Publicado em 8 de agosto de 1997

O médico e especialista australiano acredita que o projeto Redução de Danos pode contribuir para a conscientização dos usuários de drogas evitarem a contaminação de doenças como a Aids. Ele assinala que a repressão pura e simples do tráfico não tem sido eficiente para diminuir a proliferação do consumo de drogas e as suas conseqüências no plano individual e social.

Alex Wodak conhece a situação do uso de drogas e da contaminação pelo vírus da Aids em vários países e sustenta que o modo mais eficiente para evitar a proliferação da infecção entre os usuários de drogas é o projeto Redução de Danos. Entende que o combate ao tráfico é importante, mas incapaz de interromper o crescimento dos índices de drogadição. Alerta que, se o Brasil não controlar a infecção pelo HIV, a epidemia da Aids será um dos maiores problemas do país nos próximos 25 anos, acentuando que só na cidade de São Paulo a situação é mais grave do que na capital do Zaire, onde a contaminação alcança índices desesperadores. Para ele, a educação preventiva é uma parcela importante para a redução de danos, mas considera que, de maneira geral, o trabalho desenvolvido pela escola não tem sido efetivo porque a intolerância com qualquer uso de drogas é exagerada e até mentirosa, produzindo descrédito e falta de confiança. Nesta entrevista, com tradução de Luiz Fernando Marques, da Coordenação Nacional da DST e Aids do Ministério da Saúde, ele explica as expectativas e os resultados já obtidos com o projeto Redução de Danos em alguns países.

Extra Classe – O que é o projeto Redução de Danos?
Alex Wodak – É uma estratégia para reduzir os custos econômicos, sociais e políticos do uso das drogas ilícitas, sem, necessariamente, contar com a redução no consumo. A maneira convencional de tratar a questão das drogas ilícitas até a chegada da epidemia de AIDS, sempre foi a diminuição do consumo. Com a redução de danos a gente aceita o uso da droga. Parte do princípio de que para alguns usuários de drogas a diminuição não é possível, mas é possível diminuir os danos ao indivíduo e à comunidade.

EC – Por que, para alguns, não é possível diminuir o uso de drogas?
Wodak – Alguns não querem mudar de hábito e outros não conseguem. Para alguns, as drogas ilícitas ajudam a conviver com a realidade horrorosa da vida em favela, do desemprego… Então, a troca de seringas é uma intervenção para a redução de danos. Não é uma tentativa de reduzir o consumo mas os resultados do uso das drogas. Quando as pessoas diminuem os comportamentos de risco, seguidamente acontece que elas até decidem que podem abandonar o uso de drogas. Isso também é uma maneira de mudarem sua conduta aos poucos.

EC – O projeto de Redução de Danos trabalha somente com o público usuário de drogas injetáveis?
Wodak – Não. Se aplica a grande quantidade de drogas, de uma forma geral.

EC – E consiste no que?
Wodak – Por exemplo, na Escócia, há uma grande quantidade de briga nos bares. As pessoas costumam quebrar garrafas para usar como arma e agredir outras pessoas. Então, existe uma legislação determinando que, quando quebradas, as garrafas têm de quebrarem totalmente (como os vidros de carro), para que as pontas não possam ser utilizadas como arma. Perceberam que não dava para impedir que as pessoas ficassem bêbadas e brigassem, mas que era possível reduzir os danos causados pela embriaguez. O cinto de segurança também é uma outra medida de redução de danos aplicada a quem dirige bêbado. A gente sabe que não pode eliminar os bêbados que dirigem, mas pode diminuir os danos que eles fazem a si próprios.

EC – Mas isso é muito polêmico. Dizer ok, você está bêbado, então dirija usando cinto de segurança…
Wodak – Sim. Mas nunca é uma única proposta. Vários processos que devem ser desenvolvidos simultaneamente.

EC – O programa procura conscientizar o usuário?
Wodak – Quando uma pessoa vem buscar a sua seringa, ela também está procurando um tratamento. Muitas das pessoas que são heroinômanos estão querendo o tratamento, que no caso é a metadona. O chiclete de nicotina é um bom exemplo. A pessoa recebe uma quantidade de nicotina sem precisar fumar. Isso funciona mesmo porque se está dando para a pessoa a nicotina, que é o próprio tratamento. Isso permite pequenas aproximações ao tratamento, não faz corte, mas desencadeia um processo. Você não tira os dois hábitos juntos: o da nicotina e o outro que é o ato de fumar.

EC – O que significa a redução de danos para o Brasil?
Wodak – A infecção pelo HIV no Brasil é muito séria. O Brasil nunca vai controlar a epidemia de AIDS se não controlar a epidemia entre os usuários de drogas injetáveis. Isso significa adotar a redução de danos. É a única maneira que existe no mundo todo.

EC – Como a maioria dos governos trata a questão?
Wodak – É muito difícil mudar o pensamento de que a única maneira é diminuir a oferta de drogas pela repressão. Em boa parte do mundo isso é o mais sério obstáculo para o controle da transmissão de doenças entre os usuários de drogas injetáveis. Na Ásia, por exemplo, quando houve a proibição do uso do ópio, entrou no mercado a heroína, que passou a ser muito procurada pelos jovens. Então, começou uma epidemia de AIDS pelo uso da heroína. Em dez anos desta lei anti-ópio, o fumo do ópio desapareceu e começou o uso injetável da heroína. E agora, em decorrência disso, há mais casos de infecção de HIV na Ásia do que em toda a África.

EC – Qual é a situação no Brasil?
Wodak – Minha impressão é de que a epidemia em São Paulo é a mais séria. Na cidade de São Paulo, então, é mais grave do que na capital do Zaire, onde a situação é estrondosa. Se o Brasil não conseguir controlar a infecção pelo HIV, este será um dos maiores problemas do país nos próximos 25 anos. É um grande erro pensar que isso é apenas um caso de saúde pública, porque uma infecção não controlada de HIV causa problemas sociais muito maiores e também afeta a economia brasileira.

EC – Quais são os países que implantaram o projeto de redução de danos e quais os resultados?
Wodak – Essa é uma pergunta difícil de ser respondida porque uns dizem que fazem e não fazem e outros não confirmam, mas desenvolvem o projeto. A Austrália é um país que tem uma política séria de redução de danos. A Holanda, a Suíça, Nova Zelândia, parte da Inglaterra, França, os países ocidentais da Europa também têm programas. Estas experiências têm sido muito favoráveis e têm trazido bons resultados. Os programas não são caros e têm tido bastante sucesso.

EC – Qual o custo do programa?
Wodak – A distribuição de seringas custa US$ 8 milhões por ano e o tratamento com metadona US$ 35 milhões. A metadona é uma droga sintética administrada por via oral que substitui a heroína. Um tratamento de metadona custa US$ 2 mil por ano. Ou seja, até aí somamos US$ 43 milhões por ano. Os governos gastam US$ 800 milhões/ano na parte da repressão, relacionada ao controle das fronteiras e ao narcotráfico interno. E gasta US$ 10 mil por pessoa para afastá-la da droga, para levá-la, por exemplo, a uma comunidade para ficar em contato com a natureza, trabalhar lá. Para manter uma pessoa na prisão, gasta US$ 50 mil. E, se deixar um pessoa usando livremente a droga, sem nenhum tipo de programa, gasta US$ 70 mil por ano. Ou seja, a metadona custa muito pouco e tem excelentes resultados.

EC – Quando estes países começaram a trabalhar com redução de danos?
Wodak – Austrália, em 1985. A Inglaterra no mesmo ano, mas não como política oficial de governo. A Holanda em 89 e o Canadá em 1992. Em todos estes países, se aplica o programa à heroína.

EC – Qual é a importância dos estados e municípios no projeto de redução de danos?
Wodak – Em países onde existe uma grande ênfase na questão da repressão, ao nível do estado ou do município, no poder público local existe apoio maior à questão da redução de danos porque têm maior sensibilidade, estão mais próximos das comunidades. As pessoas que vivem nas capitais dos países e tomam decisões políticas para o país inteiro, muitas vezes não estão sensibilizados, atentos para o que realmente está acontecendo nas ruas.

EC – Resultados que possam comprovar o projeto de redução de danos…
Wodak – Se você comparar os resultados da política norte-americana de repressão com a política que tem a Austrália fica muito clara a diferença. A política oficial de drogas nos EUA é aquilo que se chama “tolerância zero”. Significa que a política social de governo é de, absolutamente, não tolerar quantidade nenhuma de drogas. A política adotada pela Austrália, em abril de 85, foi a redução de danos. A infecção entre os usuários de drogas na Austrália com esta política é 80% menor do que no EUA.

EC – E antes do programa?
Wodak – Era muito baixo e permanece baixo o índice de infecção entre os usuários de drogas injetáveis na Austrália. Nos Estados Unidos, além de ser alto, continua aumentando. Um terço dos casos de AIDS nas Américas estão relacionados com o uso de drogas. Na Austrália é 1% ou 2%. Somente nos EUA é 33%. Lá há pouca prevenção da infecção pelo HIV entre os usuários de drogas injetáveis. Não há ainda nenhum tipo de apoio financeiro no nível federal para troca de seringas. Então, seringas e agulhas limpas são pouco disponíveis. Em oposição, na Austrália existe a oferta muito grande de seringas limpas. Além disso, nos EUA, diferente do Brasil e da Austrália, você não pode comprar seringas nas farmácias sem prescrição médica. É muito mais grave, muito mais perigoso ainda porque as seringas que existem, compradas no mercado negro, são compartilhadas entre os usuários.

EC – O programa prevê o aumento da capacidade de tratamento oferecido pelos países aos dependentes?
Wodak – Nos Estados Unidos, depois de 16 anos de epidemia de AIDS, a capacidade de tratamento instalada é a mesma que tinha antes do surgimento da AIDS. Na Austrália, a capacidade para tratamento (clínicas, metadona…) aumenta 15% a cada ano. Os EUA partem do princípio que vão conseguir controlar totalmente o tráfico, entram na Colômbia, minam campos… querem acabar com a droga no mundo. Quem for pego com uma pequena quantidade de droga é levado para a cadeia. Isso aumenta a oferta de drogas e a fabricação de novas drogas no mundo.

EC – Qual a política destes países que implantaram a redução de danos em relação ao narcotráfico?
Wodak – Não mudou. Se você chegar em qualquer aeroporto na Suíça, na Holanda, ou Austrália com cocaína na mala pode ficar 15 anos. Isso não tem de mudar. Mas muitos dos países que praticam a redução de danos, reduziram as penalidades para os usuários de drogas. Existe repressão ao tráfico, mas não extremada como a tolerância zero.

EC – Qual é o papel da escola no processo?
Wodak – A educação também é uma parte importante no processo de redução de danos. Infelizmente, boa parte da educação que se faz sobre drogas até agora não tem sido muito efetiva, pois a intolerância para com qualquer uso de drogas tem sido exagerada e até mentirosa. A maioria dos jovens, em função disso, nem escutam esta educação repressiva que ensinam por aí. Com a redução de danos você tem uma aproximação mais verdadeira e mais realista. Nós temos uma dificuldade em fazer com que as pessoas acreditem, que confiem na nossa mensagem. Não existe uma evidência científica que a educação contra as drogas possa baixar os níveis de drogadição, mas a educação para as drogas consegue pequenos ganhos. O nosso desafio é conseguir uma boa educação em relação às drogas. A ênfase é muito mais na questão de reduzir os comportamentos de risco e muito menos no consumo das drogas.

REDUÇÃO DE DANOS EM PORTO ALEGRE

O médico Alex Wodak, 52 anos, trabalha num hospital público de formação universitária na Austrália. Membro do Comitê Australiano da Aids, é especialista no projeto Redução de Danos, que procura diminuir os danos individuais e sociais causados pelo consumo de drogas. Esteve em Porto Alegre, no dia 26 de junho, a convite da Secre-taria Municipal de Saúde e Serviço Social (SMSS) e Ministério da Saúde, ministrando uma palestra so-bre o assunto para técnicos da saúde, monitores e agentes comunitários de projeto semelhante implantado pela prefeitura municipal de Porto Alegre em fevereiro de 1996.

Coordenado por Domiciano Siqueira, 38 anos, o programa garante a troca de seringas limpas por usadas e a distribuição de camisinhas para os usuários de drogas injetáveis (UDIs) de seis vilas da periferia do município. Com estes “equipamentos” também são fornecidos materiais informativos sobre Aids, sexo seguro, drogas e saúde. A região foi definida a partir do alto índice de miséria, do tráfico, do número de usuários de drogas e de casos notificados de Aids. A SMSS está fazendo um levantamento dos casos de Aids notificados em Porto Alegre. Até o momento, foi constatado que 22% das pessoas que foram contaminadas pelo vírus são usuários de drogas injetáveis. “É a ponta do iceberg”, diz Domiciano Siqueira. “Muitos têm o vírus e não sabem e outros não admitem que foram contaminados compartilhando seringas, pela própria ilegalidade do uso da droga”.

Com recursos do Ministério da Saúde, o programa é uma estratégia para diminuir a proliferação da Aids, bem como de outras doenças como a Tuberculose, Malária, hepatite B e C. O projeto em Porto Alegre é um dos únicos do país com ligação governamental e o que está num estágio mais avançado, atingindo uma média de 750 seringas limpas trocadas a cada mês e fornecimento de 15 mil preservativos. O projeto de lei com uma nova política sobre drogas, aprovado pela Câmara dos Deputados e em tramitação no Senado, poderá legalizar a troca de seringas. A lei atual leva à interpretação de que a troca ou distribuição de seringas incentiva o uso de drogas. No novo projeto, do deputado Elias Murad (PSDB/MG), isso foi mudado. No artigo 12º está escrito que incorre na pena de seis a 15 anos de prisão quem contribuir para o uso de entorpecentes, “ressalvadas as ações de saúde empreendidas pela

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