GERAL

O Oscar perto de nós

BETO RODRIGUES / Publicado em 6 de março de 1998

O mais internacional entre os diretores do cinema brasileiro, Bruno Barreto, poderá realizar a façanha de conquistar, com O que é isso, companheiro?, um Oscar de melhor filme estrangeiro na Academia de Hollywood. Se tiver êxito na festa do dia 23 de março, não apenas coroará sua carreira aos 43 anos, que completa este mês, mas colocará o cinema nacional num patamar de produção profissional e sistemática, consolidando um movimento de retomada da atividade que soma apenas três anos.

A indicação de O que é isso, companheiro?, de Bruno Barreto, para competir ao Oscar de melhor filme estrangeiro não é um fato cultural isolado. Com um intervalo de poucos dias, o cenário cultural brasileiro recebeu outra novidade auspiciosa: o filme Central do Brasil, de Walter Salles Jr., conquistou o Urso de Ouro, prêmio maior do prestigiado Festival de Cinema de Berlim, até então inédito para o cinema brasileiro. Em um país acostumado com a constante perda de referenciais culturais e com a escassez de memória histórica, estes dois eventos podem parecer fragmentos incidentais de um mosaico cultural incompleto. Os indícios de realidade, entretanto, têm se encarregado de mostrar que por detrás desta aparente fortuidade existe um movimento vivo e crescente. Desde o Quatrilho, dirigido pelo irmão de Bruno, Fábio Barreto, e também indicado ao Oscar, em 1996, assistimos a uma progressiva reaparição do cinema nacional em nossas telas e nos festivais internacionais de cinema. Este movimento de renovação de nossa cinematografia, iniciado há apenas três anos, não é obra puramente do acaso ou do exclusivo esforço e talento individual de uns poucos cineastas. Ele está apoiado na tradição de uma cultura cinematográfica sólida que já gerou inúmeras obras de arte e foi uma das cinematografias mais ativas e férteis nas décadas de 60 e 80.Contando histórias bem brasileiras, mas com as ferramentas da dramaturgia contemporânea, a produção nacional começa a se eqüivaler em qualidade técnica e narrativa a qualquer outra cinematografia desenvolvida. O cinema brasileiro está redescobrindo sua vocação cosmopolita e resgatando a universalidade do discurso cinematográfico.Em outras palavras, estamos profissionalizando nossa produção e capacitando o cinema brasileiro a competir no mercado mundial em época de globalização. Pouco a pouco se instaura a idéia de que arte cinematográfica, além de arte, também é um vetor da indústria de entretenimento – o setor econômico que mais cresce neste final de século.Indo mais além, esta nova fase do nosso cinema representa a ponta de um emergente movimento de reafirmação da cultura brasileira no cenário internacional. A possibilidade de conquistar o tão cobiçado Oscar, portanto, pode significar o salto definitivo a um outro estágio de produção e maturidade para a indústria cultural do país. Superar a irregularidade e os ciclos espasmódicos e conquistar um patamar industrial de produção, eis o novo desafio do cinema brasileiro. O que é isso, companheiro? pode inaugurar esta nova etapa e, também, coroar a carreira do mais internacional de nossos diretores, Bruno Barreto.

Extra Classe – O que é isso, companheiro? aborda um fato político extremamente importante – o seqüestro do embaixador norte-americano por um grupo armado de esquerda, em 1969, no Rio de Janeiro. Até que ponto o filme é fiel aos fatos?
Bruno Barreto – O que é isso, companheiro? é um filme de ficção como todos os que fiz, alguns mais realistas do que outros. Embora inspirado na realidade, o filme não é um documentário, mas uma interpretação ficcional da realidade. O próprio livro do Gabeira estava longe de ser um documentário. Por ter sido escrito dez anos depois dos fatos, na Suécia, já era uma memória distante e tinha um caráter reflexivo. O filme é uma reflexão em cima da reflexão do Gabeira, mas uma reflexão através da ficção. O filme é baseado em fatos reais, mas a realidade não é dramaturgia. O cinema narrativo utiliza elementos dramatúrgicos como o desenvolvimento, o conflito e a interação entre os personagens. Foram esses os instrumentos que utilizei para contar uma história.

EC – Como diretor de filmes de ficção, você sempre exerceu uma liberdade muito grande ao contar uma história. Desta vez, você mexe com a História recente do país e com muitos personagens que ainda estão vivos. Você fez este filme com menos liberdade, com medo de ferir susceptibilidades, preocupado com erros e acertos históricos?
BB – Tinha certeza que estava caminhando sobre uma linha muito tênue entre a liberdade como ficcionista e a responsabilidade de abordar um fato tão marcante na história do Brasil. Acho que o filme ainda vai criar muita polêmica e levantar muitas perguntas, o que acho extremamente saudável nesta fase em que o Brasil está desenterrando os ossos do período da ditadura. O Brasil tem uma coisa muito parecida com os Estados Unidos. Cultiva pouco a memória do país e adota o “seguir em frente”; e essa não é sempre a melhor maneira de se lidar com as coisas. É importante olhar para trás e não repetir os erros. Em uma entrevista à revista Veja, o ex-guerrilheiro Carlos Eugênio Paz falava de uma “guerra suja de ambos os lados”, o que corrobora com meu filme, sobretudo em relação ao personagem mais polêmico que é do torturador. Em certo momento, ele diz que se “eles chegarem ao poder, não vai ser tortura, vai ser fuzilamento sumário”.

EC – Você se impôs algum tipo de patrulhamento para lidar com uma história que pode ter tantos donos, no sentido de que vários participantes estão vivos e têm reclamado que a história não foi bem assim? Que cuidados você quis tomar?”
BB – O que mais me preocupou foi a clareza da história. Cada personagem tem a sua própria identidade, a sua diferença do outro. Além da preocupação de não ser irresponsável, não me patrulhei nem um pouco. Eu nem moro mais aqui, mas aqui é o meu país, é a minha cultura, vou voltar a filmar aqui. Não saberia fazer um filme me patrulhando – se você se patrulha, perde a liberdade. E tomei liberdades, por exemplo, como a seqüência do tiro ao alvo na praia. A maior parte desses treinamentos era realizada em sítios fechados, mas eu queria colocar no filme um lugar bonito, paradisíaco. Foi uma licença poética para quebrar a claustrofobia e não acho que seja tão grave. Quanto a ser dono da História, eu não sou, de maneira nenhuma. Como já disse, o filme é uma reflexão dramática sobre um momento, através de alguns personagens. E a maior parte dos personagens do filme é uma combinação de vários personagens da história real, alguns foram fundidos em um só. Mantive os nomes Toledo, Jonas e Fernando, ou o codinome de Marcão. Alguns nomes são verdadeiros, mas não a maioria dos personagens.

EC – A história de O que é isso, companheiro? tem uma divisão muito clara: esquerda X direita, guerrilheiros urbanos X regime militar. O filme toma partidos?
BB – Minha maior preocupação foi a de não cair na armadilha dos que sempre tendem a dividir o mundo entre bons e maus, vítimas e carrascos. O filme não tem um personagem principal e minha preocupação básica foi encontrar a motivação das pessoas envolvidas, do torturador aos seqüestradores. Entre esses, estavam Fernando, que abre mão da casa e do nome para entrar na luta armada; René, que não era amada pelo pai e entra para a clandestinidade; Júlio, um rapazinho que quer pegar na metralhadora como personagem de história de quadrinhos; Cézar, que é ex-seminarista. Os conflitos se acirram quando chegam de São Paulo os militantes mais experientes: Toledo, que lutou na Guerra Civil espanhola, e Jonas, um recalcado social, que abomina aqueles ‘meninos’ de classe média.

EC – A que gênero cinematográfico se filia O que é isso, companheiro?
BB – Não fiz um filme sobre política mas sobre as pessoas, sobre seres humanos. Não fiz um filme sobre idéias, mas sobre medos, vontades e as tensões envolvidas em um episódio específico. Até porque ninguém agüentaria um filme que reproduzisse as falas das pessoas como eram na época – seria insuportável. Acho que esta humanização dos personagens é a maior vitória do Leopoldo Serran e dos atores que existem como pessoas. É provável que muita gente esteja esperando um thriller político, como filme de Costa Gavras, a que tendem a um confronto de good guys e bad guys. Não fiz um filme de mocinho e bandido. Até o torturador é um personagem conflituado, e embora seja um personagem terrível, o discurso dele faz sentido, ele é de carne e osso – não é um arquétipo.

EC – A maior parte dos seus filmes – sobretudo os realizados no Brasil – eram centralizados em personagens femininos e com uma carga de sensualidade muito forte. O que lhe atraiu nesta história?
BB – Não sei muito bem porque, mas desde 1986 me envolvi neste projeto, queria muito fazer esse filme. Na época, passamos por seis roteiros diferentes, dois feitos por americanos e quatro por brasileiros, e eu sentia que não chegavam a lugar nenhum. Em 1994 quase abandonei o projeto, achava que, por aqueles roteiros, não teria filme. Voltei ao livro do Gabeira. Mas é curioso notar que uma reflexão sobre os fatos não rende um filme. Era preciso estabelecer conflitos, criar personagens, o que não havia no livro, que por ser uma reflexão intelectual, não tinha uma estrutura dramática. Consegui, finalmente, convencer o Leopoldo Serran, com quem já tinha trabalhado em Dona Flor, A estrela sobe e Amor bandido, a fazer o roteiro. Ele foi para Los Angeles e ficamos quatro semanas olhando um para o outro, tentando achar a motivação por trás dos personagens. Todos os filmes que fiz – e este é o 12º – eram calcados em personagens, no sentido de que a trama vinha das pessoas. Para mim, uma história funciona quando estabelece uma relação orgânica com os personagens, mas ainda não tínhamos chegado a esta relação. Três semanas depois do Serran ter chegado a Los Angeles, andando de carro, ouvi a música de Casablanca no rádio “it’s still the same old story, a fight for love and glory”. Embora a abordagem da história seja mais complexa do que esta frase, achei que no fundo a questão de O que é isso, companheiro? era essa: aquelas pessoas queriam salvar o país, ser heróis.

EC – Houve outras fontes de inspiração indiretas, além do próprio livro?
BB – Na época da elaboração do roteiro li um livro muito interessante sobre a questão da sexualidade no terrorismo, chamado The demon lovers, que inclui o caso de Patty Hearst, que acaba se casando com o segurança. Esta relação torturado/ torturador é mencionada no filme, quando o torturador Henrique comenta que uma presa política acabou casando com um torturador chamado Peçanha. Esses pontos foram importantes na interrelação entre os personagens. Depois fomos para Washington abrir o baú e ver o que tinha dentro. Conversamos com a filha de Charles Elbrick, Valery, e com ex-funcionários da Embaixada dos Estados Unidos na época do seqüestro.

EC – Qual a maior contribuição destas conversas?
BB – Valery nos deu um exemplar de O que é isso, companheiro? com anotações feitas pelo pai. Ele anotara, por exemplo, que o livro que recebera no cativeiro era de Amo Se Tuna e não de Ho Chi Min. Ela reforçou as posições políticas do pai, como a de ser contra apoiar governos que não eram legitimamente escolhidos. A polícia achou um tape das conversas de Elbrick com os seqüestradores, na qual ele expunha suas idéias, digamos, liberais. Valery confirmou que ele era um liberal e que ficou uma persona non grata nos meios diplomáticos depois do seqüestro. Sem dúvida, aquele seqüestro foi um divisor de águas na carreira e na vida de Elbrick, que teve um final de vida muito infeliz. As conversas com Valery foram úteis menos na questão da trama e mais na elaboração do personagem. Ela contou, por exemplo, do ciúme que sentiu dos seqüestradores que teriam o pai só para eles. E também de uma sensação de agradecimento, pois depois da liberação do pai, eles se abraçaram pela primeira vez em muitos anos. Ele era extremamente obsessivo, e voltou mais humanizado.

EC – Que memórias você tem daquela época? Esta história é próxima ou muito distante de você?
BB – Por um lado, a história está muito próxima. Em 1969, eu tinha 14 anos e lembro que participei da passeata dos 100 mil, de situações envolvendo o Hélio Pellegrino, que era amigo da família. Lembro também do Glauber Rocha filmando uma entrevista com o Vladimir Palmeira no porão da minha casa e eu era o operador de câmera. Também tenho outras lembranças, muito ligadas a um amigo de infância que acabou se engajando politicamente. Há coisas no filme ligadas a este amigo. Por exemplo, o boné militar na cena de tiro na praia. O meu amigo realmente se fantasiava de Che Guevara, o que era uma coisa naif mas também muito enternecedora. Ele tinha lido O capital aos 15 anos e tinha úlcera aos 17. Fomos ao Chile juntos, em 1973, um pouco antes do golpe que derrubou Allende. O Chile vivia uma fase de grande efervescência política e acabamos nos defrontando com uma passeata. Eu fiquei admirando as meninas – as chilenas eram lindas – e ele foi para o comício. Naquele momento, tomamos caminhos diferentes. Talvez, tenha feito o filme em nome desta amizade.

EC – O que é isso, companheiro?, pela própria história, tem um personagem norte-americano e seqüências faladas em inglês, que tem sido uma marca de vários filmes brasileiros da fase da retomada. Você fez o filme pensando no mercado externo?
BB – Acho que a história de O que é isso, companheiro? interessa tanto ao Brasil quanto ao mundo inteiro, mas não fiz o filme com uma preocupação de agradar lá fora. Até porque, eu acho, que o mercado externo espera outro tipo de filme brasileiro, como a carga social de Pixote, o realismo mágico de Dona Flor e Tieta. Realmente espero que o filme viaje, até porque esta é uma característica natural do cinema, que cada vez circula mais.

EC – Você fez três filmes nos Estados Unidos em seis anos. Como foi esta experiência?
BB – Fascinante. No início foi um pouco frustrante, mas depois fui me adaptando. Saí do Brasil como diretor de Dona Flor, o maior sucesso de bilheteria do país, e cheguei lá para começar do zero. Ralei muito. Agora, depois das boas críticas de Atos de amor (Carried Away), talvez as coisas fiquem um pouco mais fáceis. Estou mais experiente, e acho que adquiri um prazer ainda maior de contar uma história. Aprendi muito sobre a importância do casting, que é uma das coisas mais importantes para um filme. Em O companheiro, o trabalho com os atores foi fundamental – trocamos muito, e ouvi muito o que eles tinham a dizer e a propor sobre seus personagens. Ensaiamos muito, e a troca com os atores foi fundamental.

EC – Como foi a escolha do elenco?
BB – O personagem do Gabeira foi o mais difícil. De todos os personagens do livro, ele é o menos definido, até porque é o narrador, e se define pela forma que narra. É um personagem polivalente, que está dentro e fora da ação o tempo todo. Pensamos que precisávamos de um ator esquivo, oblíquo, escorregadio, e não era fácil. Escalei outras pessoas, mas havia a dicotomia se o autor deveria ser star quality ou não. Acabei escolhendo o Pedro Cardoso. Acredito que Pedro tenha interpretado esta ambigüidade com grande talento, e que sua atuação surpreende.

EC – Por que um fotógrafo argentino e não um brasileiro?
BB – Hoje em dia tem uma piadinha correndo em Hollywood que para um fotógrafo conseguir um emprego precisa de um sotaque polonês. Eu queria trabalhar com o Felix Monti desde que vi A história oficial. Também gosto muito de Tangos, o exílio de Gardel, que ele também fotografou. Eu sugeri Felix para O Quatrilho, e o considero um fotógrafo excepcional – por isso quis trabalhar com ele. Por que o Woody Allen trabalha tanto com Carlo Di Palma, um fotógrafo italiano? Por uma questão de preferência, de admiração pelo trabalho, só isso.

EC – E quanto à música?
BB – Stewart Copland fez a música de O selvagem da motocicleta (Rumble Fish), Talk Radio, Wall Street e recentemente Fresch. Ele ia fazer a música de Carried away, mas estava ocupado. E me disse que gostaria de fazer a música do meu próximo filme. Mostrei o projeto de O companheiro para ele, que se apaixonou e resolvi chamá-lo. É uma questão de química – de gostar do trabalho da pessoa. Ele tem um background de música clássica, e para o filme ouviu dúzias de discos de música brasileira. Também não me patrulhei neste sentido – o filme não vai ser menos brasileiro por causa disso – a qualidade musical é fundamental, seja o autor japonês, como Ryuichi Sakamoto, que fez a música de O último imperador, de Bertolucci, por exemplo, ou do polonês Zbrgniew Preisner, que fez a música de Brincando nos campos do Senhor, de Hector Babenco.

EC – Ainda pesa ser o diretor do filme recordista de público do Brasil?
BB – Um pouco. Quero me superar, mas aquele mercado não existe mais. Quanto mais sucesso se faz, mais sucesso quer fazer. Sem dúvida, seria legal um outro Dona Flor.

EC – Como você vê a retomada do cinema brasileiro?
BB – Acho que qualquer euforia é perigosa. Voltou a se fazer cinema, mas a qualidade dos filmes e a resposta do público é que dirão se há uma retomada ou não. Por enquanto, há bons filmes, mas não basta retomar a produção, é preciso fazer filmes melhores – e o público é que vai legitimar essa retomada. Gostei muito de voltar a filmar no Brasil, e apesar de viver nos Estados Unidos, pretendo fazer outros filmes no meu país.

* Beto Rodrigues é videomaker e produtor cultural

Filmografia
Brasil:
1972 – Tati, a garota
1974 – A estrela sobre
1976 – Dona Flor e seus dois maridos
1978 – Amor bandido
1980 – O beijo no asfalto
1982 – Gabriela, cravo e canela
1987 – O romance da empregada
1996 – O que é isso, companheiro?

Estados Unidos:
1990 – A Show of Force (Assassinato sob duas bandeiras)
1992 – Heart of Justice (O coração da justiça)
1995 – Carried Away (Atos de Amor)

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