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“Para mim existe só injustiça”

Márcia Camarano / Publicado em 2 de junho de 1998

Aracy Rosa da Rocha, 68 anos, perdeu sua casa, onde viveu por mais de 47 anos. A justiça é cega e determina que a lei seja cumprida. A lei, no caso, prevê que desapropriação não tem discussão; o que se discute é o valor a ser pago por terras desapropriadas.

Aracy não entende essas coisas de lei. E não acha justo. Ela, que foi morar numa área denominada Barro Vermelho, no município de Gravataí, quando ainda era menina, junto com os pais e os irmãos, não aceita que tantos anos depois, por não ter documento de propriedade da terra que sempre ocupou e por conta da instalação de uma montadora de automóveis, veja sua casa posta abaixo por máquinas.

Foi um baque, porque parecia que a vida seria eternamente boa. Pois foi lá que ela cresceu, viu o pai plantar, criar bichos, produzir tanto leite que até vendiam para indústrias de laticínios. Aprendeu com ele a tirar o sustento e a admirar a terra. Naquele pedaço de chão, teve sua filha, Rosa Maria, hoje com 41 anos que, por sua vez, casou e teve seus três filhos no mesmo lugar. A felicidade era eterna. Até que uma transnacional chamada GM resolveu instalar uma fábrica no Estado e decidiu que o terreno mais conveniente seria o que abrigava a família de Aracy, mais 52 pequenas habitações.

As propriedades com escritura de posse foram indenizadas, mas o caso dela era diferente. O Sítio Nossa Senhora dos Navegantes, de 3,6 ha sempre foi seu endereço, as pessoas sabiam onde achá-la. Era de fato, mas não de direito: um terreno sem escritura. Aracy foi a última a desocupar a área desapropriada. No dia 16 de setembro de 97, um oficial de justiça, acompanhado de policiais, advogados do Estado e seguranças deram a ordem de despejo. “Derrubaram tudo”. Ela chora cada vez que conta a história. À noite, só dorme por conta de calmantes e está sob os cuidados de um cardiologista e um neurologista.

“Eu estava com meus netos e eles chegaram dizendo para a gente desocupar a casa, que os nossos pertences iriam para um depósito e que não ia adiantar nada eu continuar chorando, porque eles iam me largar no hospital e continuar a mudança”, lembra. Quando foi despejada, ela ficou dois dias na casa de um irmão, junto com os três netos, a filha e o genro e três cachorros, um de cada garoto. Conseguiram levar os pertences para lá também.

SEM EIRA – Mas como estava tudo muito apertado, em seguida, eles tiveram que alugar uma casa: sala cozinha, banheiro e dois quartos, um para o casal e o outro dividido entre a avó e os netos adolescentes. Ao custo de R$ 300,00. Aracy tem uma aposentadoria de R$ 120,00, a filha é professora e o genro motorista. O colégio dos garotos está atrasado, a família endividada.

Apertada na pequena casa, a mulher sente a falta de espaço. “Tinha 54 pés de frutas, tinha eucalipto, eu tinha tudo, não comprava leite, banana, nada”. Por conta da pendenga judicial, ela não consegue receber indenização pelas terras. A equipe do governo avalia que a terra valha R$ 43.900 e as benfeitorias, R$ 48.700. “Até hoje, não tem nem notícia do meu dinheiro. Eles estão me oferecendo R$ 13 mil pelas benfeitorias, mas eu não compro nenhum terreno com isso”.

O diretor do Departamento de Patrimônio do Estado, Mário Anderson Ferrari, diz que, de fato, a área em que Aracy morou está avaliada em R$ 92.000. “Esse valor está depositado em juízo, pois cabe à justiça determinar quem é o dono daquele terreno”, observa. Na verdade, os 3,6 ha estão em litígio, pois há um irmão de Aracy que contesta a sua legitimidade na posse. “Conversei várias vezes com dona Aracy e o irmão. O problema é que eles não se acertam, são intransigentes, acham que um tem mais direito que o outro”.

Ela não nega a briga com o irmão, mas afirma ter ação de usucapião, o que sempre lhe foi negado. Ela guarda com cuidado os impostos de propriedade rural que pagou durante anos ao Incra. “Para mim, não existe justiça, só injustiça. Eles me tiraram tudo o que vivi e construí. Agora, eu sou uma sem-terra, sem-teto e sem-dinheiro”. Na sua lembrança está registrado que as máquinas passaram por cima da casa, do açude, das plantas, de sua vida e a de sua família.

Antes de Mário Ferrari, o diretor de Patrimônio do Estado era Jorge Renato de Souza, que negociou as indenizações com os proprietários. Rosa, a filha de Aracy, diz que nunca vai esquecer as palavras do representante do governo. “Ele disse que não podia fazer nada por nós, porque entre o mar e o rochedo, quem perde é o marisco”. Jorge Renato perdeu seu cargo no final do ano passado. Foi demitido quando participava de um programa de TV, tentando explicar a exploração de um estacionamento particular em terreno público nas imediações do Theatro São Pedro.

Seu sucessor acompanha as negociações desde o início, quando atuava na Divisão Jurídica. Mário Ferrari diz se lembrar bem do caso de Aracy. “Ela já nos recebeu de arma na mão, colocou os cachorros em cima de nós”. Do ponto de vista legal, ele sustenta que não há nada a fazer. Desde fevereiro de 97, as 53 propriedades atingidas sofreram a ação do governo, que pagou por elas um total de R$ 8 milhões e 600 mil. A maioria foi indenizada, mas existem 10 casos na justiça.

“Quando uma área é declarada de utilidade pública, ela é enquadrada de duas formas: desapropriação amigável ou judicial”, explica. Havendo concordância em relação ao valor e o proprietário estando com os documentos do imóvel em dia, o acordo é feito. Já a desapropriação judicial é feita em dois casos. O proprietário está com os documentos em dia, mas não concorda com o valor, ou concorda com o valor, mas não pode vender.

“No caso em questão, eram posseiros. Morreu o pai e nunca se preocuparam em regularizar o terreno; não tinham propriedade, só a posse”, sustenta Ferrari. Ele acrescenta que a família só não recebeu o dinheiro porque não tinha o documento para provar a propriedade. “O Estado não pode pagar na dúvida”.

SEM BEIRA – Dentro de um processo de desapropriação, é comum a discussão pelo valor mais justo, informa Ferrari. “A metodologia e os dados, combinados, nos indicam um valor. Há pessoas que não concordam, por isso é que o perito faz uma avaliação e em cima dela o juiz determina o valor a ser pago”. O diretor de Patrimônio do Estado revela estar passando novamente pela mesma situação no processo de desapropriação da futura área da Ford, em Guaíba.

Questões legais à parte, os ex-vizinhos não têm dúvidas de que Aracy e sua família estão com a razão. Mesmo quem foi indenizado está inconsolável. É o caso de Augusta da Rosa, 59 anos, que, no lugar de seus 4 hectares repletos de figueiras e árvores de todos os tipos, vive hoje em um terreno 10 x 30 com uma casa pré-fabricada de quatro peças. “Tinha três anos quando meus pais foram morar lá. Foi onde me casei e tive três filhos. Por último, estava criando os cinco netos. Agora, estou sozinha, porque nesta casa não cabe todo mundo”.

Sua intenção era deixar a propriedade de herança. Ela reclama que o governo custou a pagá-la e pagou quanto quis. Ao todo, foram R$ 130 mil, divididos por cinco lotes (cinco famílias). Para ela, coube 27 mil, gastos na casa e no terreno. “Eu não sei dizer ao certo quanto aquilo valia, porque para mim, não tinha valor em dinheiro, era a minha vida. Ficaram com o que era meu, com o meu sustento, agora vou ter de trabalhar de empregada. Vê se pode, nós velhas, tendo de trabalhar no fim da vida”. Ela é viúva e sobrevive com uma pensão de R$ 120,00. “Que saudades das minhas bergamotas”, lamenta. Eram mais de 100 pés. “Tínhamos o que comer lá, lutamos com suor para adquirir aquilo, para que? Para o governo tomar conta”. Augusta sente-se tão só e desgostosa que desabafa: “não sei se vou agüentar muito aqui”.

DESGOSTO – Maria Ivanete Palhano, 44 anos está sentida não só com a perda de sua moradia, mas com o impacto negativo no ambiente causado pela terraplanagem. “Eles fizeram um Eia/Rima – diagnóstico de impacto ambiental – mas foi tudo balela. Foi só para dar uma satisfação, o Rio Gravataí vai sofrer muito com o que eles fizeram”. Ela morava com a mãe, dois irmãos e três sobrinhos. Possuíam 6 ha e, com o dinheiro da indenização, conseguiram adquirir só 0,5 ha. “Foi um péssimo negócio. Acabaram com o núcleo de pequenos agricultores, todos plantavam para comer”.

Era um núcleo forte, recorda Ivanete. Pessoas católicas que rezavam a novena, um freqüentando a casa do outro. “A santinha passava lá há mais de 100 anos”. Mas o que ela mais sentiu foi a destruição da natureza. “Em outubro, plena primavera, os passarinhos, na época do acasalamento, já não encontravam mais árvores. Perderam seus pontos de referência, ficaram estressados com o barulho das máquinas; só brigavam nos fios elétricos”.

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