CULTURA

Kraunus e Pletskaya vão cair no samba

Após 14 anos de sucesso nos palcos do país, Tangos e Tragédias vão enfrentar a passarela do samba em Porto Alegre
Por Valéria Ochôa / Publicado em 30 de setembro de 1998

Depois de 14 anos em turnê pelos palcos brasileiros cantando, chorando a história da fictícia Sbórnia e ensinando o copérnico – uma espécie de dança na qual só é permitido mexer a cabeça -, Kraunus Sang e o maestro Pletskaya, personagens de Hique Gomes, 39, e Nico Nicolaiewsky, 41, na peça musical Tangos e Tragédias, vão enfrentar a passarela do samba em Porto Alegre.

Escolhida como samba-enredo pela Sociedade Recreativa Beneficente Cultural Imperatriz Dona Leopoldina, que já levou à avenida temas como o papel (1997) e o relógio (1996), a terra de Kraunus e Pletskaya será apresentada no carnaval na Augusto de Carvalho por cerca de 1.600 integrantes, perto de 16 alas e seis carros alegóricos: A Ilha da Sbórnia, Sklercs de Bisuwin, A grande lixeira cultural, A Faculdade de Ciências Fictícias e o Castelo do Barão de Satolep, A Sbórnia é aqui, O Theatro São Pedro com o Kraunus e o Pletskaia.

“Nada mais justo do que fazer esta homenagem”, assegura Álvaro Machado, carnavalesco da escola e mentor do tema-enredo. Ele assistiu ao espetáculo três vezes.

“A Imperatriz tem a característica de apresentar temas culturais. Então, pensei que seria um diferencial no carnaval levar o espetáculo para a avenida. Fomos muito felizes na escolha. Afinal, é um espetáculo gaúcho que se mantém no palco há 14 anos e com sucesso. Isso não é pouco”, expõe.

Edson Brum dos Santos, 37, conselheiro e integrante do Departamento de Carnaval da Imperatriz diz que a iniciativa gerou euforia na quadra da escola.

“A maioria não assistiu ao espetáculo no teatro, mas está ansiosa por conhecer”, revela.

Vai ser uma festa

Hique e Nico se dizem surpreendidos.

“Eu nunca imaginei que o nosso trabalho fosse se tornar o samba-enredo de uma escola”, revela Nico. “Ficamos assombrados “.

Em agosto do próximo ano, o espetáculo completa 15 anos ininterruptos de apresentações em todo o país. Já a Imperatriz completa 18 anos em janeiro e figura como uma das principais escolas de samba do Estado. “Vai ser uma festa”, diz Nico.

Tangos e Tragédias foi criado por Nico Nicolaiewsky, ex-integrante da banda Saracura, e Hique Gomes para ser apresentado no bar do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB), em Porto Alegre.

Os dois estudavam violino juntos. A ideia do show brotou a partir do arranjo de alguns tangos.

“Era para ser um showzinho de final de semana”, conta Nico. A peça estreou no mês de agosto de 84, o público gostou e os artistas não pararam mais, ganhando os palcos até de países vizinhos.

No espetáculo, Kraunus e Pletskaia executam obras de compositores brasileiros, como Vicente Celestino, Alvarenga e Ranchinho e Cláudio Levitan. Pérolas do cancioneiro brasileiro, recicladas das enormes lixeiras culturais da Sbórnia.

Eles já tentaram várias vezes estimar quantas apresentações fizeram até hoje, mas sempre acabam se perdendo nos cálculos.

“Ih, foram tantas… E o incrível é que tem gente que ainda não viu”, comentam. Fazem o teste durante o show: perguntam para a plateia quem está assistindo pela primeira vez. “Boa parte levanta a mão”, conta Nico.

O retorno da crítica

Considerado um sucesso de público e de permanência, o espetáculo cativou a crítica do país.

Sérgio Augusto de Andrade, da Folha da Tarde de São Paulo, escreveu: “Para qualquer pessoa inteligente, esta é uma chance como poucas – uma chance, talvez, como nenhuma outra: assistir um show como quem recebe uma homenagem, ganha um prêmio ou é surpreendido por uma alegria inesperada. Tangos e Tragédias é um show que nos faz sentir inesquecivelmente felizes”.

Já Luís Fernando Verissimo disse “a Sbórnia tem muito a ensinar ao Brasil, e não apenas o Copérnico, sua dança nacional. Eles expulsaram de lá os maestros Kraunus e Pletskaia, e o exemplo deveria ser seguido aqui, onde os dois anarquistas musicais, disfarçados de Hique Gomes e Nico Nicolaiewsky, com seu Tangos e Tragédias, ameaçam nossos valores musicais, nossa compostura e nos matam de rir. Fora com eles!”.

Para se ter uma ideia do poder da dupla de atrair público, nas temporadas de verão, em que normalmente os teatros ficam vazios em função das férias, Hique e Nico encarnam seus delirantes personagens e conseguem a façanha de lotar o Theatro São Pedro.

Também, já foram ao ar nada menos que onze vezes no programa Jô Soares Onze e Meia, do SBT. No ano passado, os artistas pararam o trânsito da Corrientes, uma das principais avenidas de Buenos Aires, Argentina, onde apresentaram o espetáculo todo vertido para o espanhol.

O ridículo no palco Klaunus

Assim como se assombraram com a notícia de que a Imperatriz tinha escolhido o show como samba-enredo, Nico e Hique afirmam que a permanência do espetáculo em cartaz por estes anos todos também os assombra. “A gente faz show várias vezes no mesmo lugar e o teatro esta sempre cheio”, expõe Nico.

Os artistas atribuem boa parte deste sucesso por eles brincarem com o ridículo no palco.

“O ridículo, aquilo que todo mundo, inclusive nós, tenta esconder no cotidiano, a gente mostra no teatro. E, na verdade, este ridículo vem a ser a graça e a graça nada mais é do que o errado”, filosofa Hique… ou será que Kraunus. “Quando a gente toma consciência do errado e do ridículo, eles se tornam engraçados. Então, a luz em cima do erro é a graça, que é uma graça divina”.

Eles também destacam o formato do show como um ponto a favor de tantas apresentações.

“Somos duas pessoas. Se não tem palco a gente se ajeita, se não tem equipamento de som a gente faz no grito”, explicam. “Então, vamos levando o espetáculo para vários lugares. Mesmo se tiver pouca gente, não deixamos de nos apresentar porque não perdemos. Nosso custo é baixo”.

Mas destacam: “Nós somos trabalhadores. Juntou a fome com a vontade de comer. Em todo lugar que vamos, nos adaptamos. Trabalhamos muito por iniciativa própria porque acreditamos totalmente no nosso trabalho”. O retorno de tudo isso é grande. “Na saída do espetáculo, muitas pessoas vêm felizes nos agradecer. É aí, nos olhos delas, que a gente vê o poder do trabalho”.

Sobrevivendo da arte

Nico diz que Tangos e Tragédias superou as expectativas financeiras. “Rendeu acima da média. Nós conseguimos sobreviver da música”, afirma.

Hique compara a situação deles com outros artistas do país. “Se tu fores ver o panorama, vais ver que são raros os artistas que conseguem sobreviver apenas da música. Eu tenho vários amigos hiper talentosos, criativos, originais, que têm de fazer outros trabalhos para sobreviver”, acentua Hique. “E a gente teve esta sorte, de dizer: vamos cair na estrada, caímos e conseguimos sobreviver legal. Graças a Deus”.

Mas o trabalho de Hique e Nico não se encerra nos shows de Tangos e Tragédias. Em 1988 fundaram o selo Sbórnia Recórds e lançaram o disco do espetáculo.

Compositor, cantor, ator e instrumentista, Hique Gomes já compôs trilhas para teatro, cinema e publicidade. Atuou com vários músicos e artistas e, em 1994, lançou o seu espetáculo individual chamado O teatro do disco solar e um CD de mesmo nome e com as músicas do show. Acabou ganhando o prêmio Açorianos na categoria melhor compositor e também de melhor espetáculo.

Em 97, retorna com O teatro do disco solar – Fase 2, com algumas novas canções e performances. O video-Clip, com a música de O mundinho, canção inspirada na obra de Caldeirón de La Barca O teatro do mundo, foi exibido pela MTV.

Nico tem formação em piano clássico. Ficou com o Saracura até o final da banda, na década de 80. Conhecido como um romântico incorrigível, em 96, lançou seu primeiro CD solo, no Theatro São Pedro. Entre as músicas, Poeta analfabeto, Feito um picolé no sol e Canção das mulheres do harém de Lampião, que confirmam a sua verve cômica.

Em suma, Nico e Hique vão muito bem, obrigada. E, Tangos e Tragédias continua alegrando os corações Brasil afora.

Samba-enredo
Compositores: Nego Isolino e Nego Paródia
Intérprete: Porto Aléx

A visita de Dona Leopoldina ao reino da Sbórnia,
Uma imperatriz entre Tangos e Tragédias

Zumbiu, oi zumbiu e numa grande explosão
Virou dia da kapunga, oi!
Nasceu uma nação, eu naveguei
Com Dona Leopoldina naveguei
E desembarquei na Sbórnia

Com a comitiva dessa minha imperatriz
Um ancoradouro no chu rio eu achei
Kraunus Sang, o embaixador
Organizava nossa recepção
No grande baile da irmandade
Entre personalidades apresentava
Satolep, o Barão

Essa mistura de raças… em profusão
(BIS) O gringo, o negro, o gaúcho… e o alemão
Descobriram que a Sbórnia é aqui
E num repente aportaram no Lami… com a Gos

Celebrando a amizade entre as pátrias
Fazendo a côrte balançar de emoção
Pletskaya desdobrava um copérnico
Nos lares da Sbórnia emocionava essa canção

O povo vivia na mais santa paz
Com as novelas mexicanas na TV
(BIS) Vivendo dia a dia o lixo cultural
E tudo é festa nesse nosso carnaval

Bravoriginalíssimo!
São quinze anos de sucesso… Eu sou feliz
Só alegria no São Pedro
Com Tangos e Tragédias
Na passarela vou sambar com a Imperatriz

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