OPINIÃO

Um olhar sobre as gangues

MARCOS ROLIM, DE BRASÍLIA* / Publicado em 28 de abril de 1999

Sempre entendi que deveríamos olhar a juventude como quem decifra signos. De fato, talvez a juventude seja um emblema. Naturalmente estranhada, sempre inadaptada, a juventude é este “vir a ser”; uma incompletude cujos sentidos devem ser descobertos. Os fenômenos das gangues e das galeras que povoam os espaços urbanos de países como o Brasil ainda está por merecer uma avaliação mais cuidadosa. Neste vazio, ganha especial relevo a obra de uma pesquisadora cearense de nome Glória Diógenes, que acaba de lançar um livro intitulado “Cartografias da Cultura e da Violência: gangues, galeras e movimento hip hop (Editora Annablume, 1998)”. Trata-se de um trabalho impressionante, que deveria ser leitura obrigatória para todos aqueles que trabalham com adolescentes.

A autora vai demonstrando como esse fenômeno de gangues funciona como um modo de inclusão social às avessas. Isso pode ser compreendido a partir de contradições marcantes de nossa época, como por exemplo a existência de um discurso de valorização do trabalho ao lado da dissolução do “mundo do trabalho” e da realidade efetiva ao lado da impossibilidade dramática de acesso a bens e serviços e de espaços urbanos já concebidos a partir de regras de segregação.

A organização do tipo gangue oferece a possibilidade de construção de sentidos que, mesmo pela negação muitas vezes violenta do outro, não deixam de expressar formas de resistência. Assim, a ética do trabalho passa a ser negada; o que é sensível nas gírias mais comuns. “Otário”, por exemplo, é aquele que trabalha muito e ganha pouco e, é claro, “o trabalho não compensa”; quem “se garante” é aquele que “descola a grana” que precisa para ter acesso aos bens de consumo que são sinais de distinção social.

O nomadismo das gangues, de outra parte, oferece “visibilidade” àqueles que jamais mereceriam qualquer “olhar” distinto da indiferença. Como se sabe, jovens da periferia costumam despertar a “atenção”, quando muito, da polícia. Antes das gangues, é como se eles não existissem. Para estes jovens, então, “consumir” a cidade da qual foram banidos, realizar sua inscrição nos registros dos quais foram proscritos (grafites), adornar-se com elementos estéticos dos quais foram expropriados é, finalmente, “ser jovens!”.

Nas galeras e gangues, especialmente nas periferias – mas não apenas nelas – concentram-se os impasses desta época. Os valores que estruturam esses movimentos são, muitas vezes, opostos àqueles sedimentados pela idéia de “civilização”. O problema é que é estra própria civilização que parece estar em cheque ao final do século. As gangues, por isso mesmo, talvez nos ofereçam mais do que uma ameaça, um lamento. Algo que é preciso escutar e compreender se quisermos ter alguma chance de intervir no processo para além da lógica da violência.

*Marcos Rolim é deputado federal pelo PT do Rio Grande do Sul

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