MOVIMENTO

Em jogo, uma nova ordem mundial

Por Luiz Carlos Barbosa / Publicado em 25 de maio de 1999

A guerra nos Balcãs, longe de ser apenas um conflito localizado e marcado pelo delírio étnico de Slobodan Milosevic, interessa estrategicamente ao ocidente

Nunca se sabe quando o presidente russo Boris Yeltsin está blefando, mas o tom das declarações de Moscou é revelador dos muitos e complicados elementos que estão em jogo na chamada guerra dos Bálcãs, na Iugoslávia, envolvendo os separatistas da província de Kosovo, os sérvios e, há pouco mais de um mês, os países da aliança militar ocidental. Ao contrário do que tem sido dito pelos grandes órgãos de imprensa, o conflito envolve interesses estratégicos para a Comunidade Européia, os Estados Unidos, a Alemanha e a Rússia.

Para o historiador gaúcho Paulo Vizentini, um dos objetivos imediatos do conflito é colocar tropas terrestres da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) em Kosovo e promover a independência da província ioguslava de Montenegro (leia o artigo: A guerra da Otan contra a Iugoslávia ). Segundo o especialista em História Contemporânea Internacional, a Iugoslávia – com essa estratégia – ficaria sem acesso ao mar, os membros da Otan na região, da Hungria à Grécia, teriam ligação por terra e a Rússia ficaria isolada politicamente no contexto euroasiático.

Não se pode esquecer, no entanto, a importância da indústria militar russa. Segundo o historiador Luiz Dario Ribeiro, professor da Ufrgs (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), os aviões russos SU 2730 continuam sendo os mais eficientes em combate. Eles voam com muita velocidade e fazem manobras na vertical e em ângulo para trás. “O caça ou avião que o está perseguindo passa e depois ele sai atrás”, descreve o professor. A intervenção da Otan também pode ser o campo ideal para o teste de novas armas e equipamentos. “Na guerra do Iraque foi testado um localizador que entrou em funcionamento mundial. Hoje se compra até máquina calculadora com aquele chip”, completa.

Com a perda do território de Kosovo e a independência de Montenegro, a debilitada federação iugoslava estaria completamente dissolvida ao completar pouco mais de 50 anos. Sob o pretexto de ajudar os sérvios – seus aliados históricos -, a ameaça russa de recorrer às armas e desencadear uma eventual Terceira Guerra Mundial não passa da defesa dos interesses de um país que não deu certo sob o capitalismo. E que por isso mesmo, mais que um incômodo, é um entrave ao futuro da União Européia, principalmente a liderança da Alemanha.

Segundo Ribeiro, como liderança da Europa unificada, a Alemanha disputa hegemonia com os Estados Unidos. “Em parte esta disputa pode estar sendo travada ali. Do ponto de vista aeronáutico, a Alemanha é independente da Otan por causa das armas aéreas que herdou da extinta República Democrática da Alemanha (RDA)”, explica. Quando a RDA foi incorporada à Alemanha, descobriu-se que a aeronáutica da extinta Alemanha comunista estava dez anos à frente da aeronáutica ocidental. Como analisa o cientista político e professor da Ufrgs André Marenco, a Alemanha tem interesse em expandir ainda mais sua influência na região e controlar o movimento migratório que, explica ele, desestabiliza o mercado europeu.

Ribeiro assinala que, apesar da pobreza e de todas as perdas (em comparação ao Iraque, por exemplo), a Iugoslávia não se submeteu à nova ordem mundial acordada pelos Estados Unidos e as potências européias. “Ainda é um dos poucos países com um projeto próprio de desenvolvimento, mesmo que seja um projeto inviável e demagógico dos nacionalistas raciais de Slobodan Milosevic”, pondera. Para ele, é esse projeto e os conflitos gerados por ele que têm levado às intervenções da Otan. A Iugoslávia é uma área de instabilidade numa das regiões economicamente mais precárias da Europa.

A província de Kosovo – a mais pobre da Iugoslávia , onde predomina a economia rural de minifúndios – tem reservas hídricas que poderiam abastecer a Europa e parte do Oriente Médio de água e eletricidade, diante da escassez desses recursos e das crescentes restrições ao uso de energia nuclear. “Há uma possibilidade do interesse econômico – estratégico para a Otan e União Europeia a médio e longo prazo”, sugere Ribeiro. Nesta lógica, parte da região poderia ser transformada em grandes reservatórios de água potável com represas que gerassem energia hidroelétrica para a Europa e parte do Oriente Médio.

Na região do Mar Cáspio e Mar Negro, por outro lado, estão sendo descobertas novas jazidas de petróleo e gás natural. Para utilização comercial, elas devem ser trazidas para o Ocidente por meio de gasodutos e oleodutos que têm o limite norte na região conflagrada, passando pelo território turco. “Provavelmente a região tenha petróleo. A Croácia tem uma boa produção de petróleo em relação ao seu território”, especula Ribeiro. A região está cravada no limiar entre o Ocidente e o Oriente e, por isso, é um tradicional corredor do fluxo migratório dos miseráveis da Ásia para a Europa. Mais uma ameaça que pode ser contornada com a guerra.

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