POLÍTICA

América Latina, de novo, na instabilidade

Luiz Carlos Barbosa / Publicado em 22 de março de 2000

O programa neoliberal agravou ainda mais os problemas históricos do continente, como mostra a crise que derrubou o presidente do equador Jamil Mahuad

 

Estava anunciada a queda do presidente do Equador Jamil Mahuad. Dos 17 meses que governou, nos últimos 15 a instabilidade cresceu paulatinamente até o dia 21 de janeiro, quando indígenas e militares tomaram o parlamento e o palácio do governo com apoio do movimento sindical. O estopim foi a dolarização da economia anunciada dia 9 de janeiro. Mas as causas da crise são muito mais remotas e transcendem o próprio presidente. “O Equador vivia no limite, com greves gerais que paralisavam o país como não se vê em lugar nenhum”, afirma o professor de História da Ufrgs Paulo Vizentini, especialista em relações internacionais e diretor do Instituto Latino- Americano de Estudos Avançados (Ilea).

“Dois meses depois da posse, o governo apresentou medidas econômicas contrárias ao discurso de campanha e a população imediatamente se mobilizou em uma crise quase insurreicional”, lembra Vizentini. Uma greve geral, em 16 de março de 1999, transformou a capital, Quito, em praça de guerra, enquanto pesquisas mostravam que 87% da população já estava descontente. O erro de Mahuad foi repetir o que se tornou comum no continente. “A eleição de líderes populistas com propostas sociais e depois uma administração rigorosamente de acordo com o consenso de Washington, que leva à ingovernabilidade”, explica. Esta instabilidade logo repercute nos quartéis. “Os militares são afetados pela política neoliberal de desmontagem do Estado”, ensina o professor, alertando que não se trata apenas de uma conduta corporativa, mas de uma perspectiva política dos quartéis que conta com apoio popular, que é a concepção de soberania nacional.

O episódio no Equador é mais um exemplo dos reveses do neoliberalismo no continente, que se manifesta sob outras formas, menos violentas, em países como Argentina, Uruguai, Chile e Venezuela. Afora os períodos de ditadura militar, inspiradas no combate ao comunismo, nunca a América Latina passou por um alinhamento político tão hegemônico quanto nos anos 90. A doutrina neoliberal se impôs não apenas no discurso e na ação da direita de sempre, mas também entre a social democracia morena e mesmo em parte da esquerda, neste território onde 33% da população de 230 milhões de habitantes vivem abaixo da linha da pobreza.

Vizentini entende que nos anos 90 ocorreu uma conversão da América Latina ao neoliberalismo. Com a queda do muro de Berlim, a esquerda se desarticulou sob o impacto da globalização. “Mesmo lideranças expressivas abandonaram a esquerda ou admitiram premissas neoliberais para buscar vitórias eleitorais”. O efeito foi oposto: derrota dos sandinistas na Nicaraguá, desmontagem dos modelos desenvolvimentistas mexicano e brasileiro, falência da Venezuela exportadora de petróleo que tinha um governo social-democrata. Até mesmo o legendário comandante Zero, Eden Pastora, que comandou a tomada da Câmara dos Deputados em 1978 e derrubou o ditador Anastácio Somoza da Nicaraguá, diz que pretende chegar à presidência e apresenta uma plataforma neoliberal.

“Chegamos a ter a conversão de governos”, diz o professor. É o caso do Partido Revolucionário Institucional (PRI) do México – desde 1929 no poder – que trocou seu projeto social pelo neoliberalismo. Seu candidato, o ex-secretário do Interior Francisco Labastida, deverá se eleger presidente nas eleições de 2 de julho deste ano. O Partido Revolucionário Democrático (PRD), de Cuauhtémoc Cárdenas, à centro-esquerda, concorre sem qualquer chance.

Na metade da década de 90, a América Latina retrocedeu em todos os indicadores sociais: aumento do desemprego, queda nos índices de saúde e de escolaridade, crescimento da violência e da instabilidade. “Tudo isso fez a população opor um certo freio”, diz Vizentini. Em 92, por exemplo, houve um plebiscito no Uruguai, onde a população votou contra as privatizações. “O neoliberalimo não chegou a se impor no Uruguai como nos outros países”, concorda o professor de História da Ufrgs, o uruguaio Enrique Serra Padrós. O Uruguai protagonizou uma das eleições mais disputadas do continente, opondo uma alternativa ao neoliberalismo. A expectativa não se confirmou, mas pela primeira vez na história do país um projeto de esquerda ameaçou o revezamento, desde 1836, dos dois tradicionais partidos de centro-direita, o Blanco (Nacional) e o Colorado.

Tabaré Vázquez, 59 anos, transformou a Frente Ampla unida ao Encontro Progressista na segunda maior força política do Uruguai. No primeiro turno da eleição presidencial, a coalização fez 38,51% dos votos contra o segundo colocado, Jorge Batlle, 73 anos, que teve 31,32% dos votos para o Partido Colorado do atual presidente Julio María Sanguinetti. O jornalista escritor uruguaio Eduardo Galeano definiu seu país como milhões de anarquistas conservadores que resistem a mudanças, mas quando mudam é para valer. No segundo turno, em 28 de novembro passado, Jorge Batlle venceu Tabaré Vázquez com 51,59% a 44,07% dos votos, agregando o eleitorado do arquiinimigo mas também conservador Partido Blanco. Mas se a direita se unificou e obteve três quintos do Congresso, Frente Ampla aliada ao Encontro Progressista se fortaleceu a ponto de influir no quórum para a aprovação de emendas constituicionais. Com 10 senadores e 33 deputados colorados e sete senadores e 22 deputados blancos, o governo terá de negociar com a frente de esquerda que ficou com 12 senadores e 44 deputados, alcançando o status de maior bancada. “O Uruguai já não é mais o país dos três terços”, resalta Padrós.

Para Vizentini, o refluxo do neoliberalismo demorou a se exprimir politicamente, eleitoralmente. Mas agora vários indícios apontam que cada vez mais países que compraram neoliberalismo com euforia estão querendo devolver o embrulho. Apesar disso, com todos os recursos de que dispõe, o capital internacional consegue sustentar que a validade mercadoria ainda não venceu. O exemplo mais gritante disso está na Argentina. A derrota Carlos Menen representa revés importante para a política neoliberal do ponto de vista população. Porém, a vitória Fernando de la Rúa não significa uma ruptura com o modelo, mas a sua continuidade em outros parâmetros.

Vizentini sustenta que a estratégia neoliberal apresenta três estágios. O primeiro é eleger forças de centro-direita que apliquem o pacote e se mantenham. “Isso aconteceu em praticamente toda a América Latina na primeira metade da década e explica as reeleições Menen, FHC, Fujimori e outros não tiveram cacife para tanto”, diz. O segundo estágio, caso Argentina, seria a alternância política, com a oposição assumindo sem mexer no projeto econômico.” Menen não se reelegeu porque isso só seria possível mexendo no projeto econômico e quando ele falou isso veio o sinal vermelho da comunidade financeira internacional: ‘Chega de Menen’”, enfatiza. A terceira etapa seria tornar os pacotes completamente irreversíveis, com a criação de compromissos formais em âmbito internacional, como a Alca. “Desta forma, os países ficariam amarrados por macropolíticas econômicas”. O Mercosul é um exemplo modesto disto. Em nome desta integração entre países periféricos, abre-se mão de medidas internas necessárias às economias nacionais. “Na Alca seria muito pior, pois é a integração com os grandes interesses dos EUA”.

Até mesmo o Chile, que foi o pioneiro em aplicar o projeto neoliberal no continente, a partir de 1973 com a ditadura Pinochet, deixa de ser exemplo. O crescimento econômico do país está arrefecendo. Em 1998 o PIB caiu pela metade, passando de 7% para 3,5%. Pesquisa realizada em outubro de 1998, com 1.500 pessoas, mostra que a primeira preocupação para 52% dos chilenos é o desemprego e a segunda é a pobreza (44,3%), seguinda da insegurança (41,1%), um termômetro do aumento de 30% nos assaltos a casas e roubo nas ruas de Santiago.

Isso explica que a coalização de centro-esquerda que governa o Chile desde o fim da ditadura de Pinochet, em 1990, tenha disputado eleição com o socialista Ricardo Lagos em detrimento do democrata-cristão Andrés Zaldivar, que perdeu nas prévias. Apesar de carregar o desgaste do governo Eduardo Frei, Lagos conseguiu derrotar o candidato da direita Joaquín Lanvín. Mas tomou um susto no primeiro turno, quando obteve apenas 30 mil votos a mais do que Lavín (47,96% a 47,52%) e ganhou apertado em 17 de janeiro, com 51,32% dos votos contra 48,68%. Em 1993, Eduardo Frei fez 58% do votos contra 34% da direita. Lagos assume em 11 de março, mas terá dificuldade para aprovar suas reformas. Tem maioria na Câmara, mas só um voto a mais no Senado enquanto Pinochet não regressar ao país e reassumir como senador.

América Latina, de novo, na instabilidade

Dois outros fatos extraordinários se sobressaem nesta ebulição social. O primeiro é a entrega, pelos EUA, do Canal do Panamá – que liga os oceanos Atlântico e Pacífico – ao governo panamenho, em 31 de dezembro passado, depois de um século de controle político, administrativo e militar da obra e da região. Amaravilha da engenharia do século 20, inaugurada em 15 de agosto de 1914, que matou 25 mil pessoas e custou mais de US$ 400 milhões, era concessão perpétua aos EUA, revista em 1977 no tratado Torrillos- Jimmy Carter. Com 14 bases militares, o canal tem sido ponta-de-lança das tropas norte- americanas em uma região estratégica para os interesses econômicos e militares de Washington.

O segundo deles transcorre na Venezuela. O presidente Hugo Chávez está mudando o regime político do país com absoluto apoio popular e dentro da ordem jurídica estabelecida. Ele convocou uma Assembléia Nacional Constituinte e já conseguiu aprovar uma nova Constituição, rechaçando o programa neoliberal.

Vizentini entende que a ameaça de intervenção norte-americana na Colômbia se inscreve neste quadro, como uma medida disciplinar em uma região estratégica, entre o Panamá e a Venezuela, sem contar o abalado Equador e o Peru, onde Fujimori não se sustentará eternamente. “É uma advertência, um recado para a Venezuela e o nacionalismo panamenho”. Vizentini analisa que o combate ao narcotráfico e à guerrilha não justificam uma intervenção agora. “Nada disso é novo. A guerrilha atua há 40 anos e não tem esperança de tomar a capital e constituir um goveno popular revolucionário. O governo Andrés Pastrana – eleito em 1998 – substituiu o governo antiamericano de Santero”.

Declarações do negociador do governo Pastrana com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) reforçam esta hipótese. Fábio Valência Cossio disse que o presidente da Venezuela é mais perigoso do que a guerrilha. Ele denunciou o diálogo de Chávez com as Farc para a segurança de fronteira e processo de paz. O diário colombiano El Espectador noticiou uma suposta aliança de Chávez e Fidel com as guerrilhas para enfrentar uma eventual intervenção dos EUA na Colômbia. As Farc, que têm cerca de 15 mil militantes armados e controlam 40% do território do país, estão negociando a paz e inclusive colaborando com a ONU, trabalhando junto aos camponeses para substituir a coca pelo plantio de outras lavouras. “É pós-Guerra Fria mas nem tanto. As velhas questões da América Latina continuam de pé.”

Golpe e contragolpe no Equador
Golpe e contragolpe, amparado pelas normas constitucionais, é uma hipótese do desfecho da situação no Equador em um intervalo de 36 horas, em que militares nacionalistas deram mais um susto no projeto neoliberal. Por isso mesmo, a intenção inicial não era empossar o vice Gustavo Noboa e manter o mesmo projeto, como avalia o professor Paulo Vizentini. Forças Armadas e indígenas se desentenderam e o governo dos EUA pressionou, ao emitir nota afirmando que a ruptura com a democracia seria desastrosa para a economia do país.
Diante destas ameaças de retaliação de Washington, os militares recuaram na madrugada de 22 de janeiro, preparando a entrega do poder ao vice-presidente Gustavo Noboa. Dissolveram a incipiente junta governamental que dirigiu o país por três horas e reuniu o advogado Carlos Solorzano, membro da Suprema Corte de Justiça, e o líder indígena Antônio Vargas, presidente da Confederação da Comunidades Indígenas. Vargas liderou a marcha de 8 mil índios que ocupou o parlamento e o palácio do governo na noite de 21 de janeiro, quando o presidente do país Jamil Mahuad se refugiou em uma base militar. O coronel Lúcio Gutiérrez, líder militar do movimento, proclamado presidente da junta, logo que o movimento militar refluiu, foi preso junto com mais uma dezena de oficiais – outros 300 militares estão sendo investigados.
Os indígenas se dizem traídos pelos militares com a entrega do poder a um político. “Eles queriam uma ditadura militar e nós dissemos”, denunciou Vargas, ameaçando: “Vamos voltar às ruas se o governo não barrar a corrupção endêmica e a pobreza”. Ele anunciou que a Confederação Indígena não reconhece o governo do então vice-presidente Gustavo Noboa, que assumiu a presidência sob a tutela dos militares, especialmente do general Carlos Mendoza, ex-ministro interino da Defesa, que fez a interlocução com as Forças Armadas, o poder que precipitou a crise ao pedir a renúncia de Mahuad.
“Manipularam os indígenas e traíram o presidente”, disparou Mahuad, que antes havia denunciado pressão das Forças Armadas para que seguisse o caminho de Fujimori no Peru dando um autogolpe. Sem a renúncia formal de Mahuad, o vice Gustavo Noboa assumiu dia 23 de janeiro em uma base militar com uma resolução de respaldo da OEA. Quatro dias depois foi homologado presidente pelo parlamento e fez um apelo dramático à unidade do país, reafirmando a dolarização da economia e pedindo paciência à população.
O país de 12 milhões de habitantes, metade deles de origem indígena, passa por instabilidade há mais de uma década. O presidente anterior eleito, chamado de “El loco”, era o cantor de rock popular no país Abdallá Bucaram. Ele foi deposto em 1997 por insanidade mental, depois de manifestações de rua. Entre os líderes estava o advogado Jamil Mahuad, formado em Harvard, ex-dirigente estudantil e duas vezes prefeito de Quito que, eleito presidente em 1997, agora teve o mesmo destino de seu antecessor.
A crise equatoriana é considerada a pior dos últimos 70 anos. A inflação de 1999 fechou em 61%, a maior da América Latina, o Produto Interno Bruto 7,5% menor, com 15,8% de desemprego e 54,4% da população economicamente ativa subempregada. A situação do país foi agravada pela crise financeira internacional, que derrubou as bolsas de valores em 1997 e 1998. Até mesmo a desvalorização do real no Brasil afetou a economia do país, assim como a queda no preço do petróleo, principal produto da minguada pauta de exportação do Equador, que inclui também a banana. A dolarização, recurso desesperado do presidente Mahuad, foi o golpe de misericórdia que acabou com a tolerância da população.

Na Venezuela, ruptura
Nem as inundações que deixaram 120 mil venezuelanos desabrigados abalam o respaldo político do presidente Hugo Chávez. Coronel do Exército, aos 44 anos, e depois de duas frustradas tentativas de golpe, em 1992 e 1996, ele elegeu-se presidente em dezembro de 1998 com 57% dos votos e está realizando uma proeza na América Latina. Um ano depois da posse, em 2 de fevereiro de 1999, com um programa de reformas que chama de revolução radical e pacífica da Venezuela, ampliou sua aprovação para uma estimativa entre 70% e 80% da população, apesar do desemprego de 15,4% e do PIB cair 7,2%. Mas a inflação retrocedeu para 18,1% – a mais baixa dos últimos 13 anos –, a balança comercial apresenta um superávit de US$ 724 milhões e o país tem US$ 15 bilhões de reservas internacionais. Este desempenho assusta e nutre a desconfiança internacional à direita e à esquerda porque Chávez virou o país pelo avesso. “Esse governo botou abaixo o conjunto do sistema político que dá sustentação aos pacotes de ajuste neoliberal”, afirma o professor Paulo Vizentini. Dentro das normas legais, através de consultas populares como o referendum e o plebiscito, está remexendo na estrutura do poder político do país, atingindo instituições em geral intocáveis como o Legislativo e até mesmo o Judiciário da Venezuela, que é considerado um dos mais corruptos do mundo.Chávez convocou uma Assembléia Nacional Constituinte e tem o apoio de 95% dos 131 constituintes. Em 15 de dezembro passado consegiu aprovar, com 71% dos votos, uma Constituição diametralmente oposta ao projeto neoliberal. A manutenção do monopólio público da maior riqueza e estatal do país, a Petroleos de Venezuela, por exemplo, é quase um sacrilégio nesta era de privatizações. “Não é um modelo econômico suficientemente claro, mas é uma confrontação ao neoliberalismo como ainda não havia acontecido”, assinala o professor. Entre os 389 artigos está a reeleição para presidente e a ampliação do mandato presidencial de cinco para seis anos, além do direito a voto aos militares, reconhecimento das terras e direitos dos indígenas, extinção do Senado – passando o Legislativo a ser unicameral – e a obrigatoriedade do Banco Central prestar contas à Assembléia Nacional.Por conta de tudo isso, Hugo Chávez tem sido ridicularizado pela mídia como um paladino demodê que investe contra a democracia representativa. “A grande imprensa insiste em tratá-lo com preconceito, vinculando-o à idéia de mais um militar aventureiro da América Latina”, podera o professor. A hostilidade da direita é constante. O representante do governo colombiano de Pastrana – pró-EUA – nas negociações de paz com a guerrilha disse que Chávez é mais perigoso do que a própria guerrilha.”Em um país que detém uma das maiores reservas de petróleo do mundo, esta situação contraria os interesses dos EUA e não é um ‘bom exemplo’ na região para a estratégia norte- americana”, diz Vizentini. Surpresa: parte da esquerda questiona seu perfil político e quais os seus compromissos com a democracia e o socialismo. Vizentini define Hugo Chávez como um militar nacionalista com uma visão terceiro-mundista. Mas considera inúteis as dúvidas da esquerda. “Não é um homem de partido. É um um líder que vem da base, um político antipolítico que chefiou um golpe militar e que botou o dedo na ferida, dizendo: aqui o que está errado é o conjunto deste sistema político, não um partido, não só um regime econômico”, interpreta o professor, reconhecendo que faltam informações sobre o verdadeiro quadro na Venezuela. “Mas isso é proposital. No início, era matéria diária na CNN, depois sumiu do noticiário porque se deram conta de que isso acabava fortalecendo Hugo Chávez.”

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