MOVIMENTO

Os herdeiros do Iluminismo

Flávio Silveira / Publicado em 16 de julho de 2000

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Fotos Luciano Quirino/Diário de Sorocaba/AE

Fotos Luciano Quirino/Diário de Sorocaba/AE

De um modo geral, manifestar-se contra autoridades públicas é um direito legítimo das democracias. Não deve ser diferente, então, quando um estudante resolve estourar um ovo na cabeça do ministro José Serra, mesmo constituindo-se, este, num protesto primário, numa agressão meramente personalizada. É evidente que ela tem um efeito simbólico. E é evidente, também, que atingir um ministro com um ovo não é recurso democrático, ainda que com esse ato não se queira ferir ou lesar a integridade de quem quer que seja.

Analisando o episódio, entretanto, pelo aspecto da legitimidade, se estabelece um limiar muito tênue para um tipo de manifestação entre o primitivo e o ineficaz. O Estado faz com muita freqüência esse tipo de intervenção autoritária, em que prevalece a força em detrimento da negociação. E não é por outro motivo que as manifestações oficiais em torno do caso indicaram um dimensionamento superior ao fato em si, próximo do apelativo. Afinal de contas, deve-se considerar que as pessoas não estão se manifestando contra o governo gratuitamente, já que professores e servidores púbicos estão sem aumento salarial há muito tempo.

O problema todo está em que este governo não se reconhece como alvo das críticas e dos protestos, como um organismo que está em posição de enfrentamento e divorciado do movimento social, incapaz de lidar com as reivindicações – legítimas ou não – de uma parcela da sociedade. Ele, governo, não se vê como parte desse processo de deterioração das condições materiais do país porque é formado por um grupo de intelectuais e professores que se auto percebe como alguém que está fazendo o melhor possível nessa corda bamba entre um Congresso e uma opção de aliança conservadores, de um lado, e uma perspectiva social-democrata, de outro. Na sua representação, as autoridades deste governo estão cientes de que criam as condições necessárias para desenvolver o país.

Então, a quem interessa descaracterizar essas manifestações como parte, ainda que primária, do jogo democrático? Nesse caso, é preciso discutir o alcance efetivo da democracia e o papel da autoridade nesse cenário institucional. Se temos uma estrutura fortemente personalizada, como a nossa, perder um presidente ou qualquer outra autoridade central é um trauma. Quando os movimentos sociais descambam para esse lado, ficam numa situação muito delicada, no limiar de algo que seja o oposto ao objetivo que se pretende alcançar.

Na verdade, não há nenhum grupo organizado no país hoje capaz de usar politicamente episódios dessa natureza. Episódios como esse podem criar condições para ações de grupos dessa natureza? Eventualmente, sim. Mas não se vislumbra, no momento, uma liderança conservadora capaz de aglutinar, em curto prazo, os personagens interessados em explorar fatos desse tipo. Mesmo entre as Forças Armadas não existe mais aquele medo de ascensão dos grupos à esquerda que persistia nas décadas de 50 e 60, ainda que haja descontentamento salarial e uma espécie de sentimento anti-popular por parte da corporação.

No episódio da queima do Relógio dos 500 Anos, em Porto Alegre, a intenção clara dos manifestantes era ter um efeito simbólico de crítica a uma versão dominante da História. O fato, entretanto, virou uma bomba de efeito retardado e contrário, que afetou de maneira inversa os integrantes do movimento social vinculados a uma visão crítica dos 500 anos e até mesmo o governo estadual. Isso revela um segundo aspecto do episódio: a incapacidade de o movimento construir alternativas de pressão que não o levem ao isolamento. Afinal, não consta que o ovo estralado na cabeça do ministro José Serra tenha resolvido algum dos problemas reivindicados pelos manifestantes.

* Doutor em Sociologia pela USP, coordenador do Programa de Mestrado em Ciências Sociais da PUC/RS

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