MOVIMENTO

A mãe de Naomi Campbell

Jorge Pozzobon / Publicado em 9 de outubro de 2000

Ao apresentar sua coleção de outono para o ano 2000, Valérie Morris frustrou galhardamente o ceticismo inicial da crítica. Não conhecem Valérie Morris? É a mãe de Naomi Campbell, a qual dispensa apresentações. Agora, do alto de seus 49 anos de idade, esta mãe surpreende o mundo da moda com uma coleção ousada e chique. E surpreende o resto dos mortais com uma beleza tão espantosa quanto a da filha.

Gosto dos fashion shows, embora me dêm um certo arrepio. É neles que a beleza feminina se revela em toda a sua glória, mas é neles que se percebe a soberba do criador. Se não, qual é o sentido de por no mundo essas deusas efêmeras aterrorizadas com o envelhecimento precoce? Uma super modelo só dura até os 25, 27 anos. Se não manejar a própria fama, acaba enlouquecendo, como Gia Carangi, que se viciou em heroina, foi abandonada por versaces e gallianos, se prostituiu para obter drogas e acabou morrendo de AIDS. Não há lugar para as ex-top models no mercado da alta costura, nem aposentadoria para mulheres lindas de 26 anos. Há algo de perverso no conceito moderno de beleza.

Na Grécia Clássica, a beleza e o bem eram a mesma coisa: to on, o ser. Quando se passou a traduzir to on por ens realissimo, na Idade Média, perdeu-se a indissociabilidade da beleza e do bem. No lugar da beleza puseram a verdade revelada nas sagradas escrituras. Quod libet ens est unum, verum, bonum, diziam os escolásticos, todo ente (tudo o que dura no seio da criação) é uno, verdadeiro e bom. E o que dura pouco, passa a ser falso, maligno, diabólico. Num mundo desses, a beleza só podia ser coisa do demônio.

Alguma coisa que nos falta devia haver no conceito grego de beleza. Se não, como é que Penélope, mãe de um rapagão como Telêmaco, e portanto uma quarentona, conseguia despertar tanto interesse naquela turba de nobres pretendendes? Não acredito que as gregas quarentonas dos tempos homéricos fossem tão lindas quanto Valérie Morris, porque naquele tempo não havia dietas revolucionárias, body buildings e pitanguys. Acho que as divindades não as agraciavam apenas com a beleza efêmera da juventude. Para as gregas antigas, a idade não era sinônimo de decadência.

Não é difícil passar da condenação medieval da beleza efêmera para a metamorfose desta em mercadoria altamente desejada. A transformação de todo bem de consumo em mercadoria foi um passo fundamental para isso. Qualquer mercadoria é um fetiche para o comprador. Num mundo em que tudo se vende, os demais fetiches, sobretudo os que se ligam ao prazer, passam a gravitar em torno desse vórtice fetichista que é a mercadoria. A tirania da beleza adolescente é o triunfo mais novo desse fetichismo. Nas propagandas de carros, cigarros, bebidas, pacotes de férias, há um corpo feminino na glória da juventude. Essa boneca deslumbrante que a mídia nos empurra goela abaixo passou a ser um ideal obsessivo de beleza, de modo que até algumas das feministas mais aguerridas desejam sê-la ou devorá-la.

A pan-sexualização da mercadoria através do corpo feminino eternamente jovem e perfeito conseguiu transformar a culpa medieval em regozijo desesperado, em tirania estética e confusão mental.

Se não, porque as Penélopes modernas, sempre prontas a criticar nossas visitas à ninfa Calipso, se torturam com dietas, peitos de silicone, body buildings e cirurgias, que só fazem retardar a marcha inexorável do tempo, transformando-as em caricaturas de si mesmas? Deviam pensar é na própria saúde, numa alimentação correta e numa vida mais serena. E muitos de nós certamente devíamos evitar o papel de patrocinador de Calipsos adolescentes. Não digo que devamos rechaçá-las, que ninguém é de ferro.
Mas, a exemplo de Ulisses, não percamos a dignidade.

Vou narrar uma cena paradigmática. Estava eu em pé no corredor do avião recém aterrissado, no meio daquele abominável cutucar de maletas, frasqueiras e sacos de free-shop. Em frente a mim, um sujeito de bigodinho, uns quarenta anos de idade, bolinava uma garota que podia ser sua filha. Ele vestia calças brancas e blazer azul marinho, com uma âncora bordada no bolso superior. O tipo do emergente cafona e pretensioso. A garota, num prêt-à-porter caro e avançadinho, era uma verdadeira Calipso. A cada beijo que lhe dava, o sujeito de bigodinho imitava uns urros de leão, em voz baixa, e olhava de esguelha para trás, com ar maroto, querendo ver o efeito daquela babaquice em seus semelhantes. Também olhei para trás, em busca de alguma cumplicidade que me livrasse do embaraço de pertencer ao mesmo gênero que aquele imbecil. Uma senhora logo atrás de mim, num tailleur muito bem cortado, exibindo com dignidade umas belíssimas mechas brancas nas têmporas, sorriu de leve e me sussurrou uma ironia divina: “Interessante, não?”

Era Penélope. A de Homero.

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