OPINIÃO

Um abraço ao tarado

Elisa Lucinda / Publicado em 8 de novembro de 2000

As meninas de minha época passaram toda a infância e adolescência e algumas, grande parte da juventude assim dita, à espera medrosa, curiosa e fatal de um personagem criado pela estrutura repressora do prazer, em especial o prazer feminino, anunciado pelos nossos pais, vizinhos, tias, avós e principalmente pelas madrinhas e mães. Trata-se portanto do Sr. Tarado.

Aquele que estaria em cada esquina da rua, em cada portão de colégio, em cada festa sem escolta paterna ou mesmo do irmão, em cada piquenique, acampamento, viagem, excursões, enfim, em cada possível espaço de liberdade. Esse homem monstruoso tinha várias técnicas diferentes de ação; todas marginais.

Uma delas era de extremo perigo: ele lançaria sobre nós inesperadamente uma fumacinha que nos deixaria tonta e aí pronto, perderíamos a razão e lá se iria a flor.

A imagem desse ser era como a de um Deus às avessas, cujo nome era sempre evocado como uma forma coercitiva de lei. A lei do medo. Que te castra dentro. Que nos proibia ou pelo menos tentava, em nossos próprios bastidores de meninas. Então ele era sempre lembrado para que jamais nos esquecêssemos… Por isso até hoje me recordo. Tenho certeza de que todas nós nos arrumávamos com fervor e medo; cheirosas e medrosas.

Em nome da nobreza da “coisa imaculada”, do modelo de uma tal virgem Maria, a virgindade estava por algum tempo assegurada em relação aos nossos possíveis namoradinhos; porque ser virgem era uma valorização da mercadoria disfarçada em nobreza ou pureza espiritual. Portanto, nesta hora em que os hormônios ricocheteavam no embrião do desejo, nesta hora em que se adormecia menina e se amanhecia moça já, de peito e tudo, nesta hora o único homem que poderia violar essa dificuldade da realização do desejo seria exatamente o Tarado. Só ele poderia considerar sem o saber, a nossa vontade escondida e não a vontade manifestada dos que nos queriam matar libidinosamente. Só ele poderia habitar nossas fantasias eróticas onde ele é que seria o culpado e nada melhor do que pecado que já vem com um culpado de brinde. Ora, então era para ele, o único violador corajoso para quem nos adornávamos, por quem batiam nossos coraçõezinhos “ingênuos” e assanhados em cada caminho escuro de volta para casa. Era pra ele a taquicardia, o susto.

Mesmo porque os namorados desta época amavam a essas moças de família sem poder desejá-las. Se excitavam com elas para irem gozar nas mulheres verdadeiras, que nunca éramos nós. Nós éramos apenas aquecimento.

Então era para ele… ele, o Louco… ele, o Maníaco… era para ele o pó de arroz, o batom que a gente passava na boca só lá na rua longe das mães e derivados… Era tudo deliberadamente para ele. Aquele que numa esquina iria surpreender a nós com seu modo grosseiro, com seu instinto desenfreado, com seu barbarismo danado de nos devorar sem pedir licença como o Lobo Mau que comeu a neta e a avó numa casinha bucólica no meio da floresta, perto do rio… Era para ele as saias dobradas no cós pra que encurtassem, também longe das mães e das freiras do colégio.

Eu mesma tinha um plano. Quando ele viesse, eu iria fingir que queria. Se conseguisse escapar de sua fumacinha mágica, eu o beijaria (por mais monstruoso que fosse, dizia o estatuto do meu plano) e quando eu pudesse alinhar meu joelho direito entre suas pernas, no torpor do beijo planejado eu lhe desferiria um golpe baixo!

Mas como esse monstro era também uma espécie de super-herói imbatível, eu tinha medo de que o golpe não doesse muito e ele por isso se tornasse subitamente mais feroz. Bem, o certo é que até cheguei a ensaiá-lo diante do espelho, algumas vezes, mas ele nunca veio.

Nos espalhávamos cada uma nas respectivas esquinas de nossas respectivas ruas perigosas e ele nunca veio. Nunca apareceu pra nenhuma de nós. Os exemplos usados eram sempre casos fantasmas que nunca conhecemos de perto: nem os lobos nem as chapeuzinhos. ELE nunca veio.
Inúteis os perfumes… inúteis as pinturas… ele nos deu um enorme bolo. Hoje sei que nós o desejávamos mais que ele a nós. Porque apesar da guarda do medo consciente, apesar do medo ser o escudo que ia à frente, nós o desejávamos na grande cama do inconsciente onde não há moral nem lei.

Além do que, há que se considerar que o grande trabalho de marketing feito em prol dele pela nossa família era altamente eficiente: as sórdidas peripécias desse moço eram contadas e repetidas sempre por essas que diziam ter experiências de vida, diziam que tivéssemos cuidados com drogas postas no copo de Coca-Cola.

Eles tinham o saber, sabiam que o monstro era implacável, mas ele, na sabedoria de cão excitado, devia saber bem a força de um cio represado, até a chegada absoluta de seu amor. Então ele próprio teve medo.

Fugiu de todas as esquinas, dos portões dos colégios, sumiu no meio das hóstias pra não ser devorado por cada uma de nós.

As meninas foram pontuais! Estiveram em todos os perigos infalíveis… mas ele… ele nunca veio!

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