MOVIMENTO

A inclusão pela palavra

Embora vivam em condições sub-humanas, como animais, diria-se até, como os cães-da-rua, são gente e gente pensa, e, se pensa, quer falar, que a palavra
Por César Fraga / Publicado em 4 de abril de 2001

Homeless, sem abrigo, sin techo, sem teto. Não importa a língua, o país. Em qualquer lugar do planeta, tanto faz, se do primeiro, segundo ou terceiro mundo, gente que mora na rua passa fome e vive a falta de condições mínimas para o exercício da cidadania.

São homens, mulheres e crianças invisíveis. Porém, invisíveis de tanto serem vistos, assimilados e banalizados pelo olhar da sociedade transeunte que já não os percebe. Embora vivam em condições sub-humanas, como animais, diria-se até, como os cães-da-rua, são gente e gente pensa, e, se pensa, quer falar. Sempre têm o que dizer, mesmo que suas histórias de amor, drogas, sexo, violência e crime não agradem aos incautos.

Jornal Boca de Rua

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Exemplo: A experiência de Big Issue deu tão certo, que foi seguida em vários locais do mundo todo

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Para dar voz e vez ao povo da rua, jornalistas, artistas, publicitários, pessoas ligadas a ONGs e afins, estão viabilizando, em dezenas de países, a publicação dos chamados street papers, em bom português, jornais de rua.

A finalidade destas publicações é a mesma: incluir as pessoas que estão do lado de fora da pirâmide social. Alguns projetos ainda engatinham; outros, já maduros, relatam seus resultados.

Com a palavra

Tudo começou com a Big Issue, revista inglesa que editou seu primeiro exemplar em setembro de 1991. A ideia foi inspirada na iniciativa do Street Journal, um jornal vendido pelos sem-teto de Nova Iorque.

A Big Issue, por sua vez, também acabou servindo de modelo e exemplo para pessoas de diversas partes do mundo que viram na iniciativa, uma forma viável e autossustentável de fazer algo por e com estas pessoas.

Hoje a Big Issue possui uma fundação que gerencia e orienta uma rede de revistas espalhada em quatro continentes: América do Norte, Europa, Oceania e Africa. É a Big Issue Foundation, que coordena as iniciativas do Reino Unido. Atualmente a revista é feita em 15 países. As 23 publicações inspiradas pela Big Issue, a grande maioria na Europa, seguem um padrão semelhante ao de franquias.

Todas fazem parte da International Network of Street Papers (INSP), uma rede internacional de jornais de rua que oferece subsídios e permite o tráfego de informações e experiências necessárias para a realização de projetos semelhantes. Todas as publicações possuem boa apresentação, são editadas em papel de boa qualidade e apresentam projetos gráficos atuais.

Porém, cada região executa um projeto distinto com independência de atuação e conforme a própria realidade. Os vendedores recebem treinamento, uniforme e crachá de identificação, além de serem orientados dentro de um código de conduta. O conteúdo da revista inglesa, por exemplo, além de um espaço reservado às questões da rua, trata fundamentalmente de assuntos ligados a arte, entretenimento e eventos jornalísticos do momento. Cada vendedor fica com 60% do preço de capa. Para retirar a revista nos postos de distribuição, deposita 40 penes por exemplar que será revendido para o leitor final por 1 libra.

Com integração

Já a Cais ou Círculo de Apoio à integração dos Sem-Abrigo, versão portuguesa da BI, feita em Lisboa, segundo a jornalista Matilde Cardoso, que coordena o projeto, possui várias diferenças tanto na atuação como na forma.

“A ideia básica é a mesma, porém enquanto a Big Issue possui centros de distribuição próprios, nós utilizamos instituições de apoio às pessoas carentes para isso”.

A Cais é membro do INSP, mas estendem seu campo de atuação beneficiando pessoas que sofram qualquer tipo de exclusão social, e não apenas os sem abrigo, é assim que são chamados os sem teto em Portugal. Dependentes de drogas, sem teto, deficientes físicos.

Com isso, criou-se a possibilidade de os vendedores ficarem com 80% do preço de capa (350 escudos) e os 20% restantes ficam com instituição. A outra diferença gritante é editorial, Cais se preocupa menos em ter uma abordagem social e preferiu preencher uma lacuna no mercado português.

“A ideia é que as pessoas comprem a revista não só pela sua função social, mas porque ela é um bom produto”, explica Matilde. Muitas fotos, textos bem cuidados e um projeto visual primoroso fazem de Cais, 34 mil exemplares/mês, um sucesso editorial em seu país. Não tem fins lucrativos.

Conforme relatório divulgado pela Associação Cais, referente ao ano passado, alguns números impressionam. Por exemplo, cada escudo que o Estado e os patrocinadores investiram na Cais geraram 3 escudos para os vendedores.

A Cais apoiou, em 2000, 180 vendedores que beneficiaram da oportunidade de integração social por meio de um trabalho digno e útil. Cada vendedor, em média, usufruiu de um salário mensal de 60 mil escudos. Anualmente são integrados cerca de 25% dos vendedores.

Durante o ano passado, as 10 edições de Cais geraram um lucro de 86,4 milhões de escudos, destes 69,12 milhões ficaram com os cerca de 120 vendedores. Os custos de produção ficaram em 25,58 milhões de escudos e uma receita de 23,99 milhões metade de subsídios públicos e outra metade de donativos. As vendas superam 90% da produção.

“Não há número que reflita o valor humano da integração de cada uma destas pessoas”, diz a coordenadora.

Histórias de rua com final feliz

O vendedor Carlos, de 32 anos, nascido em Lisboa, foi abandonado pela mãe quando pequeno. Aos 14 anos a avó, com quem vivia, morreu. Foi para as ruas.

“Tenho mãe, mas ela nunca quis saber de mim”, lamenta. Ainda a procurou, descobriu que tinha um irmão, mas nunca teve ajuda de ninguém. Assim tornou-se um Sem Abrigo, mendigou e ganhou vícios que o faziam gastar todo o dinheiro que conseguia ao pedir esmolas pelas ruas de Lisboa.

Sobreviveu como pode. O desejo de constituir uma família levou-o a pedir ajuda. O que buscou em uma das instituições que servem de centro de distribuição da revista Cais. “A minha vida me deixou marcas profundas, jamais irei esquecer”, conta.

Passado algum tempo, com o dinheiro recebido com a venda das revistas, já tinha um quarto numa pensão. Com residência fixa pode passar a receber o Rendimento Mínimo Garantido (programa de renda mínima português). Mas não dispensou, no entanto, a venda de Cais.

“A minha vida é razoável, gasto menos, poupo mais, estou me organizando”, diz. Atualmente trabalha durante a noite em um albergue. Há cerca de 1 ano casou-se e agora tem uma filha, tem casa própria e vive em Lisboa. Embora já inserido, Carlos ainda vende a Cais para ajudar nas despesas da família e da casa.

Francisco, com problemas de alcoolismo, tem hoje 53 anos e um passado duro de relembrar. Começou a beber bastante cedo. Tornou-se um alcoólatra. Sem saber como, um dia envolveu-se numa briga e só deu por si na cama de um hospital, “todo machucado”.

Foi encaminhado para um tratamento de desintoxicação e acabou por ir parar na Casa Abrigo Padre Américo, em Coimbra, onde começou a ser vendedor da Cais. Sentiu-se bem na função, começava a ter de novo, o contato com a sociedade, a pertencer a ela.

Também tornou-se mecânico de automóveis. “Vendia a Cais mas naquelas horinhas em que tinha folgas”, recorda.

Na Casa Abrigo fez muitos amigos. Foi lá que conheceu a família da Olívia. A Olívia tem hoje 51 anos e 5 filhos entre os 24 e os 15 anos. O marido sofreu um grave acidente, ficou paraplégico. Passado pouco tempo a casa onde moravam em Coimbra incendiou. Olívia ficou sem nada além de 5 filhos e um marido numa cadeira de rodas. Foi viver na Casa Abrigo.

Agora, Olívia tinha uma família inteira dependendo dela. Começou a vender a Cais. Foi difícil, “não estava habituada a andar na rua. Francisco foi um grande amigo”, começou a vender com a Olívia e ainda hoje vendem juntos.

Há um ano, com a venda da Cais e algumas ajudas, conseguiu arrendar uma casa onde mora agora com a família toda.

O Francisco é como se fosse da família, todas as semanas vai lá na casa “cuidar da hortinha porque o dinheiro não chega para comprar tudo no mercado” e agora também já há uma neta e uma nora.

A casa fica longe de Coimbra. De qualquer forma “vou todos os dias para ver se levo qualquer coisinha”, diz ela. J

á Francisco, hoje em dia, trabalha numa pensão, “já há 13 meses”. Trabalha de noite e vende a Cais de dia. “Muitas vezes o que ganho é para a família da Olívia, eles precisam… mesmo com alguns filhos já trabalhando, mas os rapazes também querem comprar as suas coisinhas.”

Francisco já está integrado sócio profissionalmente mas agora quer ajudar a Olívia. “O passado foi passado, agora a minha vida é esta e eles são como se fossem a minha família.”

Recuperar a palavra é fundamental

Em Buenos Aires, os hermanos argentinos, desde junho de 2000, publicam a revista Hecho en Bs As (H.B.A). A iniciativa partiu de um grupo de jornalistas, artistas plásticos, poetas e outros colaboradores. Assim como as demais, tiveram a Big Issue londrina como referência.

“Porém, sem as verbas milionárias dos ingleses”, destaca Patrícia Merkin, diretora editorial. A revista é repassada aos vendedores por 10 centavos e revendida nas ruas por 1 peso. Os vendedores buscam seus exemplares na própria redação de Hecho e nos locais e ONGs de apoio aos excluídos.

“Nossa revista é de interesse geral, mas prioriza os temas sociais com uma ótica própria. Defendemos os direitos civis das pessoas que vivem nas ruas e da comunidade em geral”, acrescenta Patrícia. A tiragem é de 10 mil exemplares e beneficia cerca de 70 vendedores.

As páginas dedicadas a livre expressão das pessoas que vivem nas ruas, segundo Merkin, são bastante comentadas pelos leitores comuns da revista. “Estas páginas despertam a inquietude nas pessoas e o questionamento”, diz. “As manifestações ocorrem livremente, por meio de poemas, opiniões, escritos em geral. Tudo sem seleção ou edição de qualquer tipo”, garante.

“O objetivo é dar oportunidade concreta de inserção social aos excluídos com vistas a autogestão, independência e responsabilidade individual de seus beneficiários”. Patrícia diz que a todos os casos de inclusão, a partir da revista são representativos.

Para ela, assim que os moradores de rua iniciam-se na atividade de vendedores da HBA, acabam por recuperar, aos poucos, sua autoestima e o contato direto com a comunidade. Recuperam assim, o principal, que é a palavra, depois de, em alguns casos, muitos anos de marginalização, violência, pobreza e discriminação.

Cita o exemplo de Maria Ester, que por estar vendendo a revista, conheceu gente de livrarias e bancas, com as quais estabeleceu parcerias na forma de consignação. Ela mesmo administra sua pequena rede de vendas. Logo conseguiu um local vazio para se estabelecer.

O know how, obteve nas ruas de Buenos Aires. Hoje, embora faça parte da economia informal, é dona de seu próprio negócio.

Boca de Rua: made in Porto Alegre

A Agência Livre da Infância Cidadania e Educação – Alice, foi formada em 1998 por um grupo de jornalistas profissionais. Todos com experiência na grande imprensa e com interesse por matérias na área de direitos humanos.

Há três anos reúnem-se semanalmente para discutir e fazer análises críticas da mídia e de que forma as informações estão sendo veiculadas. Além disso dedicam-se à criação de projetos vinculados à questão social, considerada por eles um tema básico do jornalismo.

“A ideia é dar voz a alguns segmentos da população que historicamente não têm espaço para comunicação na grande imprensa, a não ser nas páginas policiais ou nas reportagens-denúncia, que geralmente não dão continuidade aos temas”, diz Clarinha Glock, jornalista.

Um destes projetos é o jornal Boca de Rua, iniciado no ano passado, sem que o grupo tivesse conhecimento de trabalhos semelhantes em outros locais.

Os jornalistas promovem encontros de trabalho, aos sábados, com jovens moradores de rua, em uma das praças de Porto Alegre para viabilizarem, assim, a feitura do jornal.

A grande diferença das outras iniciativas espalhadas pelo mundo, é que todo o conteúdo publicado no Boca, textos, entrevistas, reportagens, opinião e até mesmo as fotografias são obra dos moradores de rua.

“O jornal funciona como um canal de comunicação entre eles e a sociedade, até para reduzir o preconceito existente para com a população da rua”, acrescenta Clarinha.

“Na verdade estes meninos que fazem parte do projeto, são jovens-adultos. Já passaram da fase em que estariam protegidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Estão na faixa dos 18 anos e não existe nenhum programa público que atenda estas pessoas”, complementa Rosina Duarte, também jornalista. Eles não têm documentos, casa e nem emprego. Também não constam nas estatísticas do IBGE.

Foi este o gancho para a manchete do primeiro exemplar do jornal que circulou nas ruas da capital no início deste ano: “Vozes de uma gente invisível”. Carlos, 23 anos, um participantes do projeto diz: “O jornal representa uma oportunidade para mostrarmos a realidade da rua. Ninguém vê o nosso lado da fome, da violência. É uma maneira de a gente falar às pessoas o que está acontecendo aqui. Pra mim não existia família, irmão”.

Em SP, uma experiência bem brasileira

Quem nos explica a trajetória da experiência paulista é o jornalista filósofo, teólogo e mestre em comunicação, Arlindo Pereira Dias, que também é presidente da Rede Rua de Comunicação e editor do jornal O Trecheiro.

EC – Como surgiu O Trecheiro?
Arlindo – A proposta faz parte do projeto maior que é a Rede Rua de Comunicação. Na década de 80 um dos criadores do projeto, Alderon Pereira da Costa, participava de um grupo católico, a OAF (Organização de Auxilio Fraterno) que desenvolvia atividades junto à população de rua no centro da cidade. Da presença na rua ele começou a dar-se conta da riqueza cultural e intelectual que havia lá. Com o grupo sentiu necessidade de resgatar de alguma forma a riqueza que havia na rua. Iniciou através da produção de fotos, slides e resgate de poesias. Em 1990 após deixar a OAF, juntou-se a um grupo que desempenhava atividades na rua para a criação da Rede Rua. De uma parceria com a Prefeitura de São Paulo, na gestão do PT, nasceu o CDCM (Centro de Documentação e Comunicação dos Marginalizados) que em 1994 passou a se chamar Rede Rua, já sem a parceria. Do projeto nasceu a ideia de se produzir notícias sobre a população de rua e as instituições que desempenhavam atividades na rua. Inicialmente, de maneira tímida tratava-se de uma folha sulfite com notícias sobre a rua. O projeto foi crescendo, conseguiu apoio da Editora Paulus. Atualmente contamos com uma tiragem de 5 mil exemplares mensais, distribuídos na rua, nas instituições que oferecem serviço aos moradores de rua, em grupos solidários, comunidades e contamos com 400 assinaturas.

EC – Que tipo de participação os moradores de rua tem no projeto?
Arlindo – Participam de maneira indireta através de reportagens, pesquisas sobre temas, elaboração de poesias e textos, distribuição na rua. O objetivo do jornal é documentar o que acontece na rua, com abertura à participação dos moradores de rua. Sem, no entanto, ter no momento a pretensão de que sejam os produtores do jornal.

EC – O que é a Rede Rua e como ela é composta?
Arlindo – Ao longo dos últimos 11 anos a Rede Rua tem desenvolvido atividades junto à população de rua e na grande São Paulo. Em paralelo às atividades de documentação e comunicação, a entidade assumiu o gerenciamento da Casa de Convivência do Brás, de atendimento para alimentação, banho e curativos. Ajudou na gestação e concepção do Cascudas Restaurante e nas diversas atividades da Fraternidade Povo da Rua, que presta serviços a portadores de Aids, Sem terra e população de rua. Atualmente a Rede Rua coordena o projeto “Refeitório Comunitário” conveniado com a prefeitura Municipal. Nos últimos anos a Rede conseguiu construir uma infraestrutura e aprimorar seus serviços. Conta com duas casas na rua Sampaio Moreira 110 – casas 9 e 12, uma ilha de edição, uma videoteca comunitária e diversos instrumentos comunicacionais como computadores, câmeras, máquinas fotográficas. Organizamos uma Rede de Comunicação e resgate da cultura entre os moradores de rua, entidades que desenvolvem atividades junto à população de rua e poder público através de vídeos, impressos e exposições fotográficas. A Rede Rua conta com um setor de produção e divulgação de vídeos sobre exclusão, uma videoteca comunitária; um arquivo amplo de fotos sobre rua e exclusão; captação de matéria, diagramação e distribuição do jornal.

EC – Como funciona a troca de experiência entre os jornais de diversas partes do mundo? Há essa comunicação?
Arlindo – No ano de 1997 conheci a experiência do jornal La Farola ( não faz parte da rede mundial de jornais de rua), na Espanha, através de visita ao projeto. Dessa visita surgiram discussões na Rede Rua no sentido de se começar um projeto similar. Em 1998 recebemos visita do editor do Jornal Terre de Mezzo que nos propôs parceria para que O Trecheiro adotasse os mesmos moldes dos jornais da Rede, com a promessa inclusive de ajuda econômica. Devido às dificuldades vividas naquele momento, preferimos deixar amadurecer a discussão. Em 2000 um grupo de pessoas do Rio e São Paulo, com a equipe da Rede Rua iniciaram a discussão de criação de uma revista que contemplaria aspectos da rua, porém, não teria linha editorial fechada nos temas da rua. Este grupo está em vias de execução do projeto já em fase final de concepção.

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