EDUCAÇÃO

A educação como direito

Estudos têm demonstrado que a educação escolar pública tem sido uma potencial fonte de injustiça social e de tensão no sistema educativo
Keli Boop / Publicado em 13 de março de 2002

A educação como direito, uma conversa com Stoer

Ilustração: Ricardo Machado

Ilustração: Ricardo Machado

No final de outubro de 2001, Stephen Stoer esteve em Porto Alegre participando como conferencista do Fórum Mundial de Educação, no eixo temático “Educação como Direito: o papel estratégico da educação pública na construção da igualdade e justiça social”. Foi nesses dias que Stoer concedeu entrevista exclusiva ao EC, falando sobre questões da sociologia da educação, o sistema educativo português, a educação como fonte de injustiça e exclusão social, as semelhanças entre o ensino português e o brasileiro.

A consolidação da escola de massas tem sido uma das lutas dos educadores no mundo todo. Para o professor Stephen Stoer, a concretização desse objetivo num país como Portugal, por exemplo, através de uma via restritamente meritocrática, corre o risco de colocar em perigo o próprio princípio sobre o qual a escola meritocrática sempre baseou a sua legitimidade moral e política: a igualdade de oportunidades educativas.

“O caminho para a consolidação do princípio de igualdade de oportunidades educativas envolve, por um lado, investimento na consolidação da escola pública (investimento financeiro, profissional e social), isto é, investimento nesse modelo, e, ao mesmo tempo, em novas formas de desenvolver a educação escolar. Isso envolveria a descentralização da escola pública e o desenvolvimento de parcerias da escola com outras instituições e entidades da comunidade envolvente. Isto implica que a escola pública sempre terá de ser uma escola que promove a excelência acadêmica, ou seja, um ensino de qualidade”, observa o professor.

Mas, ao contrário do que se possa pensar, para ele, está fora de instância a possibilidade da Escola Democrática incorporar a Escola Meritocrática. “Não se trata de incorporação, mas de um processo de oscilação entre os dois polos.

Isto é, a escola pública terá que ser simultaneamente uma escola monocultural baseada na democracia representativa e tendo como preocupação principal a igualdade de oportunidades de acesso e uma escola multicultural baseada na democracia participativa e tendo como preocupação principal a igualdade de oportunidades de sucesso”.

Estudos e pesquisas, em especial na área da Sociologia da Educação, têm demonstrado que, nas últimas décadas, a educação escolar pública tem sido uma potencial fonte de injustiça social e fonte de tensão no sistema educativo.

Segundo Stoer, as razões principais para essa realidade é que a escola não conseguiu resolver adequadamente a sua tendência de reproduzir a desigualdade socioeconômica.

“Basta ver as críticas feitas por sociólogos de educação durante os anos 70 e 80”, lembra ele e destaca, também, que a relação entre a escola pública e o mercado de trabalho alterou-se durante os últimos 20 anos “devido, sobretudo, à reconfiguração do mercado de trabalho que tornou esse mercado mais flexível, isto é, mais precário, mais instável, mais fluido (a flexibilidade é igual à empregabilidade)”.

Assim, prossegue Steve, “a escola teve que assumir responsabilidades acrescentadas: assegurar que os seus alunos não saíssem da escola sem estarem armados perante esta nova situação”.

Uma das formas de evitar a injustiça e a tensão no sistema educativo é através de um desenvolvimento da comunidade educativa, lembra o professor. Essa comunidade, entretanto, “não pode ser reduzida aos agentes do mercado e das empresas, num sentido que possa aproveitar um profissional de ensino que é cada vez mais relocalizado e globalizado.

Isto é, as alianças e as redes de cooperação e desenvolvimento integrado já não passam sobretudo pelo nível nacional, passam pelos níveis local, regional e global”, frisa. E de que forma o Estado poderia atuar nessa questão?

“Por meio da defesa dos agentes educativos perante o poder empresarial e do mercado ajudando criar os espaços necessários para o desenvolvimento de tais redes e alianças. O Estado também está a reconfigurar-se no que diz respeito à cidadania, passando de uma concepção de cidadania pensada a partir daquilo que é comum (mesma língua, mesmo território, mesma religião), para uma concepção de cidadania pensada a partir das diferenças (locais, pertenças étnicas, sexuais, etc.)”.

Entre a democracia e a meritocracia

Para se entender um pouco os significados, as características e as diferenças entre Escola Democrática e Escola Meritocrática, referidos pelo professor Sthephen Stoer em seus estudos e entrevistas, é necessário que se entre um pouco no túnel do tempo para lembrar que a transformação sofrida pela sociedade pré-moderna teve como sustentáculos dois pilares distintos: os pilares da regulação e da emancipação.

Segundo o professor Stoer, a escola pública desenvolveu-se ao longo da construção da modernidade entre esses dois pilares os quais, “em vez de se desenvolverem harmoniosamente, sustentaram a transformação da pré-modernidade de uma forma desigual, sendo o pilar da regulação o mais reforçado pela trajetória do desenvolvimento capitalista” ou seja, a hegemonia do princípio do mercado em detrimento do princípio do estado e de ambos em detrimento do princípio da comunidade.

O desequilíbrio no pilar da regulação, conforme o professor Stoer, resultou no campo da educação escolar, no que tem sido referenciado muitas vezes na literatura da sociologia da educação como a diferença entre a Escola Democrática e a Escola Meritocrática.

“A Escola Democrática, que projetava concretizar-se através da escola para todos, baseada no princípio de igualdade, vê-se refreada no seu desenvolvimento pela construção de uma nova hierarquia social. Na base desta, a Escola Meritocrática torna-se hegemônica, proporcionando, através do princípio de igualdade de oportunidades de acesso ao ensino, um terreno propício para o desenvolvimento e rentabilização do capital cultural. O desvio da escola para todos concretiza-se metendo no mesmo saco, para utilizar uma expressão de Pierre Bourdieu, o valor científico e o valor econômico e social dos títulos acadêmicos”.

Uma conversa com Stoer

A educação como direito e uma conversa com Stoer

Foto: Verás

Foto: Verás

A trajetória deste inglês teve sua guinada em 1975, quando estava terminando sua tese de licenciatura sobre a educação e a transição entre o regime salazarista e a democracia que constituiu a década de 70 em Portugal. Ao concluir a tese, para a Universidade de Londres, Stoer decidiu ir para Portugal juntar-se à Revolução dos Cravos e, desde então, vive na pátria de Camões.

Em 1986, mais de dez anos depois de concluída, a tese foi publicada pelas Edições Afrontamento com o título Educação e Mudança Social em Portugal: 1970-80, uma década de transição, dando início a uma série de publicações de livros e artigos (veja anexo).

Atualmente professor da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação na Universidade do Porto, Stoer é o diretor e pesquisador responsável do Centro de Investigação e Intervenção Educativas (CIIE), da mesma Universidade. O Centro é uma unidade de investigação financiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia do Ministério de Ciência. Criado em 1989, as atividades do CIIE estruturam-se em torno de linhas de investigação que identificam questões centrais no desenvolvimento e produção de conhecimento em educação.

Phd em Sociologia da Educação, Stephen Stoer é também diretor, desde a sua criação em 1994, da revista Educação, Sociedade & Cultura.

A revista, segundo Stoer, tem, entre outros objetivos, a divulgação do conhecimento produzido por todos os que trabalham nas Ciências Sociais (com destaque para a Sociologia, a Antropologia e a História), e que tomem como campo de estudo e/ou investigação o campo da Educação/Formação; é, também, entre outras coisas, um espaço para promover, quer nas suas páginas, quer através da organização de outras atividades, uma “vigilância sociológica” das políticas e das práticas realizadas, formal e informalmente no campo da Educação/Formação. Leia a seguir a entrevista realizada com o pesquisador.

Extra Classe – De que forma pode ser evitado o desvio da escola “para todos” e de que forma o Estado pode intervir nessa distorção?

Stephen Stoer – Tem que haver um desenvolvimento da comunidade educativa (que não pode ser reduzida aos agentes do mercado e das empresas) num sentido que possa aproveitar um profissional de ensino que é cada vez mais relocalizado e globalizado. Isto é, as alianças e as redes de cooperação e desenvolvimento integrado já não passam sobretudo pelo nível nacional, passam pelos níveis local, regional e global. O Estado tem que defender os agentes educativos perante o poder empresarial e do mercado ajudando a criar os espaços necessários para o desenvolvimento de tais redes e alianças. O Estado também está a reconfigurar-se no que diz respeito à cidadania, passando de uma concepção de cidadania pensada a partir daquilo que é comum (mesma língua, mesmo território, mesma religião), para uma concepção de cidadania pensada a partir das diferenças (locais, pertenças étnicas, sexuais, etc.).

EC – O senhor falou em sua conferência no Brasil sobre a passagem da educação de uma gestão controlada da desigualdade, que é gerada socioeconomicamente, para uma gestão controlada da exclusão social, que tem raízes socioculturais. O senhor poderia falar um pouco mais sobre essa questão?

Stoer – A gestão controlada da desigualdade implica para a educação escolar o desenvolvimento de uma educação compensatória que é, no fundo, mais da mesma coisa (aulas de recuperação, etc.). A gestão controlada da exclusão social implica para a educação escolar um investimento na educação inter/multicultural que é, sobretudo, um olhar sobre as diferenças para mais as controlar. Isto é, não se fala com a diferença mas com os discurso sobre a diferença (que já estão contaminados pelo poder vigente).

EC – Como o ensino português tenta resolver os problemas da desigualdade na escola e simultaneamente garantir a transição escola-mercado de trabalho? E qual seria a forma de a escola criar indivíduos capacitados para enfrentar o mercado mundializado e em vias de reconfiguração?

Stoer – O ensino português tenta resolver os problemas da desigualdade na escola e garantir a transição escola/mercado de trabalho através de programas de formação profissional (incluindo a criação das Escolas Profissionais – 10º ano até 12º ano); através da revisão curricular (que se apresenta como a “gestão flexível do currículo”), que pretende dar mais acompanhamento pelo professor ao aluno e tornar a escola mais capaz de lidar com a constante atualização dos saberes; através da organização de “territórios educativos” na forma de agrupamento de escolas; e através de mecanismos que têm como fim responsabilizar os pais dos alunos e os próprios professores. A forma da escola capaz de criar indivíduos capacitados para enfrentar o mercado mundializado e em vias de reconfiguração será um mandato renovado para a escola pública, enquanto parceira da comunidade, como lugar privilegiado de comunicações interculturais e que defende que um princípio ético e político de justiça social deve orientar não só as práticas pedagógicas dos agentes educativos como também a própria seleção do saber para o currículo.

EC – Como se desenvolve a educação escolar em Portugal? Na sua opinião, quais as semelhanças entre os dois países?

Stoer – Há algumas semelhanças entre a educação escolar portuguesa e a do Brasil. Em ambos os países a educação escolar (para todos) encontra-se num processo de simultânea crise e consolidação. Isto é, por um lado, esses países estão envolvidos na consolidação dos seus sistemas escolares públicos (a criação de uma cultura de escolarização; a fiscalização do direito de estar na escola e de ter sucesso acadêmico), por outro, já estão a sofrer uma crise, que também abala os sistemas escolares dos países centrais, que ameaça pôr em causa a escola pública, privatizando-a e/ou reduzindo a sua influência entre a classe média, classe essa fundamental para o bom desenvolvimento da escola pública.

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