GERAL

Uma escola para voar

Ana Esteves / Publicado em 18 de março de 2002

Professor, escritor, teólogo, psicanalista. Aos 68 anos de vida, Rubem Alves é tudo isso, mas acima de tudo um sonhador. No bom sentido da palavra, ele sonha com a construção de uma escola ideal, que “dê asas” e ensine as crianças a pensar e a gostar de aprender. Sobre este sonho escreveu até um livro A escola com que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir.

Carismático entre os professores, o escritor demostrou certa resistência na hora de responder às perguntas formuladas pela reportagem do Extra Classe. Segundo ele, seria preciso mais espaço para comportar tantas idéias, o que é absolutamente compreensível vindo de um escritor como ele. Rubem Alves é daquelas pessoas que costumamos dizer ter o dom da palavra, com dezenas de crônicas e livros editados. Entre os títulos de maior destaque estão Conversas com quem gosta de ensinar, Cenas da Vida e Estórias de quem gosta de ensinar. Todos eles define como fotografias, feitas para ajudar as pessoas a ver.

Doutor em filosofia pela Universidade de Princeton (EUA), é professor emérito da Unicamp, bacharel em teologia pelo Seminário Presbiteriano de Campinas, também é Membro da Academia Campinense de Letras e psicanalista pela Associação Brasileira de Psicanálise de São Paulo.

Extra Classe – O senhor costuma dizer que a escola ideal é aquela que dá asas. Como a define?
Rubem Alves – É uma escola que encoraja os seus alunos a pensar, que não corta a sua imaginação. É uma escola que os faz confiantes em si mesmos. É uma escola que cria, entre os alunos, um espírito de solidariedade e cooperação. São escolas que ajudam as crianças a ver. Insisto nessa palavra ver: “A primeira missão da educação é ensinar a ver”, dizia Nietzsche, ensinar a se assombrar diante das coisas do mundo e da vida, e ensinar a pensar. Não existe nada mais fatal para o pensamento que uma resposta pronta.

EC – Qual o contraponto dessa escola?
Rubem – Infelizmente há também escolas que são gaiolas. As crianças se sentem dentro delas como pássaros. Não podem voar. São engaioladas pelos programas e pelos professores a que se referiu Brunno Bettleheim, um dos maiores educadores do século XX. Numa entrevista que deu já no fim de sua vida, ele disse o seguinte: “na escola os professores me ensinavam coisas que eu não queria aprender e do jeito como eles queriam ensinar.” Por isso as crianças sofrem. Mas os professores são engaiolados também dentro da mesmice dos programas que têm de repetir ano após ano. Esses professores são como aqueles guias de excursão que, diariamente, são obrigados a repetir as mesmas informações para os turistas. Ao final é um tédio, uma impaciência, uma irritação, um desejo de aposentadoria.
Hermann Hesse disse que na escola ele aprendeu duas coisas: aprendeu latim e aprendeu a mentir. Gabriel Garcia Marques, num artigo que escreveu para os jovens, com conselhos sobre como se tornar um escritor ou um artista, diz que a primeira regra é: não fazer o que as escolas mandam.

EC – Esta escola que dá asas existe?
Rubem – É uma escola que visitei e por que me apaixonei, em Portugal, num lugar chamado Vila das Aves. Chama-se “Escola da Ponte” e sobre ela escrevi um livro A escola com que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir. É absolutamente fantástica, contraria tudo aquilo que eu imaginava sobre educação. Uma escola onde não há professores dando aulas, não há quadro negros, não há professores pedindo silêncio, não há turmas, não há campainhas separando as aulas ( pois não há aulas), uma escola onde crianças com síndrome de Down estão normalmente junto a outras crianças.

EC – Esta dificuldade de “ensinar a pensar” pode ser considerada como um dos principais problemas da educação no Brasil?
Rubem – Sim, acho que esse é o maior problema da educação brasileira: ela não está ensinando o povo a pensar. O objetivo da educação é ensinar a pensar, não é dar informações. As informações são como a peças de um jogo de xadrez. Quem só tem as peças não sabe coisa alguma. O que importa é a dança das peças nos espaços vazios. Assim é o pensamento. Conheço pessoas que sabem uma infinidade de coisas – parecem-se enciclopédias – mas não sabem pensar. O seu saber é inútil.
A questão é que o corpo, que é o sujeito da educação, só pensa coisas que lhe são vitais. Ele pensa para viver. Teríamos, então, de estar a cada dia fazendo a pergunta: o que é vital para essas crianças e adolescentes?

EC – E o que é vital para essas crianças e adolescentes?
Rubem – Faz algumas semanas andei pelas praias de Alagoas e fiquei amigo de crianças que lá viviam. As questões vitais, as curiosidades e os desafios que aquelas crianças enfrentam são completamente diferentes daqueles que enfrentam as crianças do Rio de Janeiro ou do Rio Grande do Sul. Mas todas elas se encontram engaioladas num mesmo currículo, como se elas morassem num mesmo mundo. Os programas escolares pressupõem que as crianças são todas iguais, têm os mesmos interesses, vivem em contextos semelhantes, e aprendem no mesmo ritmo. Essas pressuposições são simplesmente absurdos e proibidas pelos mais elementares conhecimentos de psicologia e sociologia. No entanto, é assim que acontece. Recursos financeiros são necessários para a educação. Mas só os recursos financeiros não melhoram a educação. Pode-se educar bem com poucos recursos e educar mal com muitos recursos. Por vezes o excesso de recursos perturba a inteligência.

EC – Qual o processo ideal de aprendizado e como os programas escolares costumam ensinar?
Rubem – As crianças, por natureza, são curiosas. Elas se espantam diante dos objetos mais simples, uma minhoca, um caracol, um ninho, uma nuvem. Quando menino eu me deitava no capim e ficava olhando para as nuvens, assombrado, com mil perguntas na minha cabeça. O que são elas? Por que aparecem e, de repente, desaparecem? O que faz com que umas sejam como flocos de algodão e outras com longas tiras? Por que se transformam em chuva? Na minha cabeça estavam as perguntas que são o início do espírito científico. O aprendizado é sempre assim: primeiro a curiosidade, a pergunta. Depois, a busca da resposta. Por isso aquilo que é aparentemente aprendido (tiram notas boas nas provas) é rapidamente esquecido. O que restou, em nossa memória, de tudo o que tivemos de estudar e sobre o que fizemos provas e tiramos notas boas? Quase nada.

EC – Qual seria então a saída para que as crianças gostassem realmente da escola?
Rubem – As crianças amariam as escolas se as escolas as ajudassem a entender as perguntas que elas fazem. Um amigo, grande educador de Portugal, me contou que certa vez pediu às crianças que escrevessem em folhas de papel as perguntas que gostariam de ver respondidas. As crianças, sem exceção, fizeram perguntas que tinham a ver com coisas simples da vida. Era a vida que as fascinava. Perguntas do tipo: “Por que a água fervendo endurece o ovo e amolece a cenoura?” “Por que os dedos ficam enrugados quando ficam muito tempo dentro da água?” “Por que as bolas de sabão têm a forma de bolas de sabão?” Aí ele pediu que os professores fizessem o mesmo. E todos eles fizeram perguntas do programa das disciplinas que ensinavam. Eles já não tinham nem olhos e nem cabeças para a vida.

EC – Como assim? Explique melhor.
Rubem – Vou devolver a pergunta. Que criança ama a escola? É preciso não se iludir. Quando as crianças se alegram por ir à escola, em 99% dos casos, elas se alegram porque a escola é melhor que suas casas ou por causa das brincadeiras no recreio. A prova de que uma criança realmente ama a escola, eu a encontraria se visse dois alunos conversando animadamente sobre a aula anterior. Vocês já viram alunos conversando animadamente sobre a aula anterior? Na verdade, o grande desejo dos alunos é que os professores fiquem doentes e faltem às aulas. Porque, na maioria absoluta dos casos, o assunto do programa não os interessa, absolutamente.

EC – E em relação à leitura: existe alguma fórmula para fazer crianças e adolescentes gostarem de ler?
Rubem – Quando menino, o meu único prazer na escola era a aula de leitura. Na verdade não era uma aula, porque a professora não ensinava nada. Ela só lia para nós livros de literatura, Monteiro Lobato, aventuras… E o maravilhoso é que não se pedia nada. Era um puro exercício de prazer e vagabundagem. Não havia testes de compreensão a serem respondidos. E nem exercícios e interpretação. Na “Escola da Ponte” – referida no início da entrevista – há um pôster com os direitos e deveres das pessoas em relação aos livros. E o primeiro é: “Toda criança tem o direito de não ler o livro de que não gosta.”

EC – Neste sentido, qual a sua opinião sobre a obrigatoriedade da leitura imposta por muitas escolas? Ela realmente pode incentivar as crianças a desenvolveram o prazer pela leitura?
Rubem – O que se consegue obrigando a criança a ler um livro de que não gosta? O mesmo que se consegue obrigando a criança a tomar óleo de fígado de bacalhau: ela vai odiar óleo de fígado de bacalhau. A criança aprende a odiar os livros. Tenho sugerido às escolas que elas façam concertos de leitura. Isso mesmo. Concertos. Pois não há concertos de piano, de violino e de rock? Leitura é arte. O executante, o leitor, em tais concertos, deveria se preparar como um artista. Trabalhar o texto com a mesma seriedade com que um pianista prepara uma sonata. E ao final não haveria testes ou perguntas: apenas as conversas provocadas pelo que se ouviu.

EC – Qual a relação entre a sua atividade de escritor e sua atividade como educador?
Rubem – Para mim, minhas atividades de escritor e de educador são a mesma coisa. Escrevo para ajudar as pessoas a ver. Meus textos são “fotografias”. E escrevo para fazer as pessoas pensarem. Por isso eles nunca terminam com conclusões, mas com aberturas. Textos científicos fecham, levam o pensamento a uma conclusão. Textos literários abrem: inauguram um novo espaço de pensamento.

EC – Como analisa o fato de um analfabeto ter sido aprovado duas vezes no vestibular?
Rubem – Num sistema de avaliação baseado em múltiplas escolhas, essa possibilidade existe sempre. É uma questão de estatística. Um analfabeto passa no vestibular segundo as mesmas leis estatísticas que fazem com que uma pessoa acerte na Sena.

EC – O senhor está com algum livro saindo do forno? Quais os lançamentos, tanto na literatura infantil, quanto adulta?
Rubem – As Cores do Crepúsculo: A Estética do Envelhecer, recém lançado. O Médico e Livro Sem Fim . O livro “aAs Cores do Crepúsculo” contém uma série de crônicas que tenho estado a escrever através dos anos sobre a experiência de ficar velho. Quando a gente fica velho, passa a pensar de forma diferente… mas eu acho uma pena responder a sua pergunta dessa forma, porque a resposta não diz nada, há coisas que não podem ser resumidas. O mesmo é verdadeiro dos livros a serem publicados: O Médico e Livro Sem Fim. O primeiro é sobre o médico. Mas como vou resumir o que está lá. Literatura não pode ser resumida. Uma sinfonia não pode ser resumida.

EC – Há algum tipo de dificuldade ou diferença em escrever para crianças ou adultos?
Rubem – Não há dificuldade maior ou menor. Os textos aparecem na cabeça e o que faço é apenas copiá-los. Acontece que os textos para crianças aparecem mais raramente.

EC – Da totalidade da sua obra, existe algum livro de que o senhor goste mais?
Rubem – Se você me perguntasse: das músicas escritas, há alguma de que o senhor goste mais? – eu não poderia responder. Tudo depende de como a alma se encontra, no momento. Às vezes, é um, às vezes é outro. Mas, para não deixar a pergunta sem resposta: Livro infantil: A Menina e o Pássaro Encantado e o adulto O Retorno Eterno.

EC – O senhor continua dando aulas?
Rubem – Aposentado, faz tempo…

EC – O senhor é bacharel em teologia, porque decidiu formar-se psicanalista? Atua na área?
Rubem – Me deu vontade… Muitas coisas acontecem sem que haja razões claras para elas. Angelus Silésius, místico, disse: “A rosa não tem porquês; ela floresce porque floresce.” A mesma coisa: resolvi ser psicanalista porque resolvi.

EC – O que o levou a escrever uma carta para o diretor das Organizações Globo, Roberto Marinho?
Rubem – Está dito no texto, e no livro “Entre a ciência e a sapiência”. É tão curtinho. Três páginas. Sugiro que se leia o texto que se encontrará a resposta. A resposta não pode ser dada em duas linhas. Além disso, não tenho a menor idéia se ele leu a carta.

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