GERAL

Vende-se sonhos

Paulo César Teixeira / Publicado em 17 de maio de 2002

O espaço público virou multimídia. O espetáculo das logomarcas preenche a paisagem urbana com mensagens contínuas e compulsórias. Os símbolos das grandes corporações são ícones compreendidos em qualquer canto do planeta. Houve época em que as empresas eram feitas apenas de gente, máquinas e instalações físicas. Na sociedade de consumo, elas se apresentam dotadas de consciência, sentimento, atitude e estilo de vida. Os produtos têm “espírito” – as marcas invadem o invisível, o vasto campo do imaginário, e tentam se apropriar do coração e da cabeça das pessoas. Montar barricadas é uma tarefa urgente. Mas como e onde? De que forma defender a sociedade da comercialização de seus anseios mais íntimos?

A pergunta atravessa as mais de 500 páginas de Sem Logo: A Tirania das Marcas em um Planeta Vendido (No Logo: Taking aim at the brand bullies), da canadense Naomi Klein, de 31 anos, publicado no Brasil pela Editora Record há poucos meses (lançado oficialmente durante o FSM 2002). Lançado no Canadá poucas semanas após as manifestações de Seattle, durante a reunião da Organização Mundial do Comércio, em novembro de 1999, virou “bíblia” da militância antiglobalização espalhada em todo o mundo. Jornalista especializada em marketing, Naomi mostra como as corporações mais poderosas do planeta oferecem condições subumanas de trabalho, em países do Terceiro Mundo (hoje rebatizados de países em desenvolvimento), enquanto vendem conceitos de democracia e ética.

Microsoft, Volkswagen ou Nike passam a idéia de que não são companhias de computadores, carros ou sapatos, mas de ideais e identidades. Cada vez mais, os produtos do nosso dia-a-dia são vendidos não como necessidade, e sim como significado. Benneton significa diversidade racial, Body Shop, meio ambiente, Nike, força”, afirma Naomi. Os produtos passaram a representar tanto, que estão sendo vendidos quase como movimentos políticos, no vácuo das ideologias que perderam visibilidade.

A Nike é o caso mais evidente de corporação que não tem ativos físicos e é só design. É pura marca, que representa força e prestígio, a ponto de pessoas matarem outras pela posse de um calçado. Na realidade, o símbolo de poder é praticamente tudo o que a companhia tem. A empresa terceirizou inteiramente a produção, executada em países da periferia da economia global, onde os subsídios fiscais são fartos e a mão-de-obra custa quase nada. Um alto executivo da Nike declarou, no final dos anos 80, que o objetivo não era comercializar calçados, e sim melhorar a vida das pessoas com a prática de esporte e exercícios físicos. Apesar do altruísmo, a companhia foi acusada de vender tênis produzidos com trabalho infantil no Terceiro Mundo. A inversão de valores aparece também nos salários miseráveis pagos aos que, efetivamente, fabricam o produto. Em 1992, destinou US$ 20 milhões ao astro do basquete americano Michael Jordan para divulgar a marca, quantia muito superior ao que receberam naquele ano 30 mil trabalhadores indonésios envolvidos na produção.

Para a jornalista canadense, a apropriação do imaginário coletivo pelas “marcas” é resultado do colapso de formas de identidade que eram fortes até 20 anos atrás, como ideologias políticas, religiões e até o sentimento de comunidade, varrido pela globalização. “As corporações se apropriam das aspirações de liberdade e autonomia da sociedade e as mercantilizam”, anota Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida, professor do Departamento de Política da USP. “O fenômeno da inversão de sentido aparece com mais nitidez na propaganda dos bancos, que procura passar a sensação de calor humano, dando a idéia de que o cliente não é apenas um número e, por isso, tem direito a uma relação personalizada. Entretanto, nada mais impessoal do que um banco”, acrescenta Lúcio Flávio, também coordenador da revista Lutas Sociais, do Núcleo de Estudos de Ideologias da USP.

Sem Logo arrebatou uma platéia numerosa e eclética – o livro saiu em 19 idiomas. Na última metade da década de 90, em reação ao enorme crescimento da onipresença das marcas, surgiram levas de militantes com um inimigo comum: as grandes corporações. No guarda-chuva da antiglobalização, cabem desde o camponês francês José Bové, em guerra contra o McDonald’s, até “hackers” que atacam a organização virtual das multinacionais. Têm lugar ainda artistas-guerrilheiros, que depredam os logos das marcas em via pública, e “laboratórios de desobediência”, como o do grupo italiano Tute Bianche, que costuma comparecer a manifestações públicas com trajes medievais ou roupas brancas feitas de esponja. Na primeira quinzena de abril, a tribo liderada por Luca Casirini ajudou a paralisar 2 milhões de trabalhadores, em protesto contra a flexibilização das leis trabalhistas na Itália. Sem falar nos adeptos do “arremesso político de tortas”, a exemplo do belga Noel Begin, que alveja as estrelas do mundo corporativo, como Bill Gates, da Microsoft, e Robert Shapiro, da Monsanto.

No Brasil, a musa da antiglobalização ainda é pouco conhecida. “Tenho dificuldade de achar interlocutores para conversar sobre o tema”, diz a jornalista Carla Ferreira, pós-graduada em Marketing na ESPM/RS. Ela é coordenadora do núcleo gaúcho do grupo ATAC – Ação para Tributação de Transações Financeiras Internacionais em Apoio aos Cidadãos –, criado a partir de um editorial do Le Monde Diplomatique, em 1997, com representação em 39 países. Carla está de malas prontas para uma viagem à Venezuela e a Cuba, onde pretende colher subsídios para uma tese de doutorado sobre a “tendência de monopolização do espaço do imaginário” e as alternativas de uma política pública de comunicação. No início dos anos 90, ela criou marcas para a prefeitura de Porto Alegre, como a do Porto Sol, instituição comunitária de crédito voltada para microempresas.

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