GERAL

Dólar é moeda falsa!

César Fraga / Publicado em 17 de agosto de 2002

José Walter Bautista Vidal é um cientista, engenheiro nascido na Bahia e formado em Santiago de Compostela na Espanha, na Bahia e em Stanford, nos Estados Unidos. Foi por três vezes Secretário de Tecnologia Industrial e encabeçou a implantação do Pro-álcool. Ele é conhecido como um físico pós – maxista, pois para ele o fator determinante é energético e não financeiro. É autor, entre outros, de “A Reconquista do Brasil”, RJ, 1997, Editora Espaço e Tempo e co-autor de “Poder dos Trópicos”, SP, 1998, Editora Casa Amarela.Segundo ele, a humanidade enfrenta situação das mais difíceis de sua história com o ocaso dos combustíveis fósseis e as conseqüências ambientais decorrentes da queima descontrolada desses combustíveis. As atuais nações hegemônicas,todas situadas em regiões temperadas e frias do planeta e, por isso, carentes de energia limpa e permanente, basearam seus projetos de poder e desenvolvimento no uso extensivo desses combustíveis, carvão mineral e petróleo.

Extra Classe – Em seus textos e declarações, predomina o ponto de vista de que a questão energética precede à questão do capital. Em outras palavras, a questão energética é que é determinante e não a financeira. O senhor poderia explicar isso para os nossos leitores?
Bautista Vidal – A energia precede o trabalho. Não há trabalho sem energia. Mesmo o capital sendo resultante da ação do trabalho, a tudo isso precede a energia. A energia está na origem de todas as transformações e de todos os movimentos. Não se pode pensar em transformar rochas e pedras em metais ou computadores sem a energia… Então o ente físico mais importante no processo da produção de bens, dos fatos econômicos e não-econômicos é a energia. Ela até mesmo transcende a tudo isso , pois é ela que mantém o cosmos em equilíbrio e funcionamento, principalmente se você acrescentar a isso o conceito de Einstein de que a matéria nada mais é do que energia concentrada. Já o capital é uma forma simbólica de representar bens materiais por meio de símbolos, que são as moedas, que nada mais são do que uma representação dos bens da natureza, ou pelo menos deveriam ser.

EC – Seria correto dizer que as disputas internacionais estão diretamente relacionadas à questão energética?
Bautista Vidal – Hoje o mundo vive em um sistema monetário deteriorado em que a moeda não representa mais a riqueza natural do mundo. A moeda de referência é o Dólar, que é uma moeda sem lastro em uma proporção de 10 para 1. Por isso vivemos um momento preocupante, semelhante à crise de 1929, só que muito mais grave, com o risco de implosão do sistema financeiro. Devemos lembrar que em 29 não havia crise energética e hoje esses fatores estão acoplados. Com a extinção iminente dos combustíveis fósseis, entre eles o petróleo, com sobrevida de 30 anos, no máximo, podemos estar rumando para a debacle. E não seria a primeira vez que isso ocorre ao longo da história. Já ocorreu no Império Babilônico, no Império de Ku Blai Kan, durante o Reinado de Carlos V, da Espanha, quando imperava sobre a Europa. Ou seja, a humanidade já viveu esse processo inúmeras vezes. O próprio Ku Blai Kan, primeiro emitiu moeda representando o ouro do império, depois passou a utilizar a prata e depois o cobre. Bom, chegou a um ponto em que não havia mais lastro e a moeda se deteriorou e com isso o seu império.

EC – E como funciona isso hoje?
Vidal – O problema é que os EUA emitem o dólar desbragadamente em quantidades lastreadas por coisa alguma. E não sou eu quem está dizendo, são analistas sérios que afirmam isso. Assim torna-se necessário voltar a um sistema mais consistente. Nada é mais consistente na natureza do que a energia, que é o que permite transformar os bens da natureza em bens de utilidade e poder. O Brasil estaria em uma posição estratégica nesse contexto, pois as regiões tropicais possuem recursos energéticos em abundância.

EC – Como assim?
Vidal – Quem tem energia tem poder de transformação e esse poder é dado pela natureza, não se trata de uma convenção. O Brasil está em posição privilegiada, mas não no atual contexto em que a moeda sem lastro tem mais valor do que a riqueza real, porque está convencionado assim. Enquanto o sistema financeiro internacional seguir esta lógica, repito, nos encaminhamos para essa “bolha” que é o apocalipse econômico. O preço que o País pagará por estar dentro desse sistema é altíssimo. É preciso transformar estas fontes de energia em fonte de riqueza.

EC – O ex-secretário de estado americano Henry Kissinger afirmou tempos atrás que os países industrializados teriam de montar sistemas mais requintados e eficientes de pressões e constrangimentos para a busca de seus objetivos referentes à obtenção de recursos energéticos. Como o senhor relacionaria essa visão do ex-secretário e a realidade conjuntural da política externa americana dos dias de hoje?
Vidal – Ele definiu com todas as palavras a política do Império. Os próprios EUA não têm uma situação muito tranqüila, pois as suas reservas de petróleo eram da ordem de 180 bilhões de barris e hoje são menos de 20 bilhões. Resta-lhes, então, apoderar-se das reservas dos outros países. As reservas Argentinas, por exemplo, foram “compradas”; o México, de certa maneira, já dominaram pelos acordos do Nafta; o Oriente Médio também, excetuando Iraque, Líbia e Irã. Querem o petróleo brasileiro também. A Petrobrás está sendo internacionalizada, pelo menos no que se refere às suas reservas. Realmente vivemos um problema, pois não há petróleo sobrando e a demanda está crescendo. Até alguns anos os EUA importavam 30% de petróleo proveniente da América Latina e 70% do países árabes. Isso se inverteu. As importações passaram a ser bem maiores da América Latina, muito em conseqüência da mudança nas legislações dos países que passaram a permitir maior quantidade de exportações de petróleo. Obviamente isso acelerará o esgotamento das reservas. Com isso cresce também o papel das reservas energéticas alternativas ao petróleo, renováveis.

EC – Com toda essa riqueza devemos temer uma pressão militar como sofrem os árabes?
Vidal – Uma coisa é você dominar militarmente campos de petróleo concentrado no subsolo e outra é produzir energia renovável por meio da agricultura. Seriam necessários exércitos descomunais para controlar isso. A não ser que consigam interferir diretamente nos Estados Nacionais por meio de uma classe política corrupta e servil aos seus interesses, assim como vêm tentando e conseguindo fazer no Brasil. Essa é situação em que o mundo se encontra e o Brasil particularmente. O Brasil tem um potencial fantástico em se tratando de fontes de energia renováveis e já deu provas disso. Assim poderemos emitir uma moeda verdadeira. Este é um momento histórico importante em que, ou caminhamos para nos tornar uma nação independente, rica, próspera e soberana ou caminhamos para desaparecer como nação, vil e escravizada, objeto de exploração para garantir a hegemonia das nações militarmente poderosas.

EC – O senhor esteve no Iraque em abril em um seminário que discutiu a questão energética e soberania dos povos. Esteve, inclusive, com Sadan Hussein. Estamos às vésperas de um ataque mais efetivo dos EUA contra o Iraque. Como os iraquianos esperam por esse ataque?
Vidal – O Iraque tem a segunda maior reserva de petróleo depois da Arábia Saudita, cujo controle do petróleo pertence à empresa Aranco. Já o Iraque, Líbia e Irã administram, por enquanto, suas próprias reservas apesar de toda a região estar ocupada militarmente.

EC – Mas existe o risco de ocupação iminente de tropas americanas no Iraque?
Vidal – Esta possibilidade existe há bastante tempo. O pai de George W. Bush desistiu de sua investida depois que percebeu que os iraquianos resistiriam até o último homem. Temos de entender que falamos de uma nação estruturada, milenar, plenamente consciente de sua riqueza e que vai defender essas riquezas com unhas e dentes até as últimas conseqüências. Não adianta os americanos bombardearem de longe como fizeram como Afeganistão ,pois o que será destruído é o próprio petróleo. Basta lembrar o que os iraquianos fizeram antes de abandonar o território do Kuait. Mas é preciso entender duas questões fundamentais: como os norte-americanos ocupam o Oriente Médio militarmente e como as compras de petróleo são feitas exclusivamente com o dólar, tornando esta moeda “de valor”. Então esta moeda passa a ter valor porque está relacionada ao petróleo que pode comprar. Mas, quando o petróleo acabar, como fica? A que tipo de riqueza o dólar vai estar relacionado?

EC – Em alguns dos seus textos o senhor fala em ditadura financeira. Como ela se dá e como o Brasil é afetado por ela?
Vidal – É justamente isso que já falei anteriormente. Repare no seguinte. Um sistema financeiro baseado em uma moeda é legítimo desde que essa moeda seja verdadeira. Ou seja ,essa moeda deve resultar de uma riqueza real como já falei. Desde que superamos o sistema de trocas, os escambos, a civilização troca os bens naturais e utilitários por símbolos autenticados emitidos por estados soberanos que dão garantia sobre sua validade. Com a dolarização das relações comerciais no mundo depois do pós-guerra estabeleceu-se uma tirania à qual o Brasil também está sujeito. Um só país emite toda a moeda mundial de referência, enquanto a riqueza está localizada em todos os países. Bem, durante um tempo eles (os EUA) se responsabilizaram em ter lastro para esta moeda em ouro no Tratado de Breton Wood (após a 2ª Guerra). Em 1968 o presidente De Gaulle, da França, exigiu o lastro para os saldos em dólar do seu país e não havia. Bem, o resultado foi a queda de De Gaulle. Daí em diante o sistema financeiro baseado no dólar perdeu todas as referências. Virou um arbítrio, uma ditadura. E o sistema americano com essa moeda falsa irá entrar em colapso mais cedo ou mais tarde. Conforme as crises vão surgindo, vai sendo enviado dinheiro de um lado para outro do mundo, foi assim com a Ásia, com o México. Vejam o que ocorreu com a Argentina. E infelizmente o Brasil corre sérios riscos. Como se sabe, em janeiro de 1999, quase falimos, quando nossa moeda foi desvalorizada em 40%.

EC – Em 2000 o senhor divulgou um texto chamado Alerta à Nação. Nem todos os nossos leitores tiveram acesso ao seu conteúdo. Qual seria o principal alerta que o senhor propõe nele?
Vidal – Vários pensadores , alguns detentores do prêmio Nobel, falam da debacle do sistema financeiro muidial. Mas ninguém vai tão fundo em oferecer alternativas. Este documento apresenta alternativas. O que o Brasil tem que outros países não têm é a possibilidade, inclusive, de oferecer saídas para o mundo. Nosso potencial energético é fabuloso. O grande problema é que a classe política tem se demostrado absolutamente servil, seguindo orientações estranhas aos interesses do país, transferindo este imenso potencial para o controle internacional.

EC – O senhor foi um dos mentores do Pró-álcool e afirma que a iterrupção do projeto foi “dolosa”. O senhor poderia explicar melhor que tipo de pressão existiu para barrar essa iniciativa?
Vidal – Ora, o Brasil foi o único país que conseguiu oferecer uma alternativa para os combustíveis derivados de petróleo com total sucesso. Mesmo assim o projeto do Pró-Álcool foi esmagado pela via financeira. Essas pressões existem e são imensas. Mas isso não significa que, quando elas surgem as coisas não devam ser levadas adiante baseadas no interesse da nação. Só que para isso é preciso existir um governo soberano, o que não houve durante o Pró-álcool. O projeto foi descreditado durante a ausência de governo (refere-se ao período da Abertura no mandato de João Batista Figueiredo). Os militares obedeceram às instruções externas mesmo contra os interesses do país, o que não ocorreu durante o governo Geisel, quando existiu um nacionalismo maior. Mas a verdade é que estamos totalmente preparados tecnologicamente para substituir o óleo diesel, por exemplo, por óleos de origem vegetal (da mamona, do dendê, de soja, etc). Foi aí que entrou a tal tirania financeira.
EC – Explique melhor?
Vidal – Por meio de empréstimos que nunca existiram, o Brasil sacou do FMI fábulas de dinheiro que nunca vieram para o Brasil, mas eram sim para supostamente cobrir dívidas anteriores. Assim se criou um bola de neve, e sob o argumento que se precisaria pagar essas dívidas, retiraram-se os investimentos que estavam sendo empregados na montagem de uma estrutura energética baseada em nossa riqueza. E hoje a situação é essa. Temos a tecnologia, os recursos naturais. Falta-nos uma estrutura do Estado que leve avante as suas responsabilidades. O neoliberalismo começou no governo Figueiredo e culminou com o Plano Real. Foi justamente com ele que deixamos de ter moeda própria, aí se deu a dominação completa sob o pretexto de anular a inflação, que, diga-se de passagem, foi anulada no mundo inteiro. Não foi o Fernando Henrique que acabou com a inflação, foi o próprio FMI, que não tinha mais interesse nesse modelo de dominação. A inflação foi anulada na Bolívia, em Israel, na Turquia, inclusive no Brasil e foi substituída por um sistema de juros altos e taxas de câmbio arbitrárias, que estão nos levando a ruína, obrigando -nos a entregar empresas estratégicas de economia mista da área siderúrgica, energética, o próprio patrimônio genético pelas leis de patentes e por aí vai. E isso inclui o maior patrimônio mineral do planeta que é Vale do Rio Doce.

EC – Depois do 11 de setembro, ainda é possível o surgimento do chamado E 9 que seria mais poderoso e influente do que o G-8? Ou a conjuntura aponta um futuro mais negro do que o World Watch Institute previa há alguns anos?
Vidal – Sim, hoje se trata de uma outra conjuntura. Isso é mais assustador pelo fato de os EUA terem se recusado participar do Tratado de Kioto. Quando o país que mais despeja gases causadores do efeito estufa e que consome mais de 25% da energia do mundo se recusa a pensar num processo que reduza a produção de CO2, a coisa fica assustadora.

EC – Por outro lado o senhor também fala que o Brasil pode se tornar o grande exportador de energia limpa renovável do mundo. Por que nós mais do que os outros?
Vidal – Aí surge uma perspectiva que pode ser produtiva que é uma aproximação maior do Brasil com a China para que possamos fornecer aos chineses alternativas energéticas limpas para que eles não precisem queimar tanto carvão mineral, reduzindo assim a emissão de CO2. Outro país que poderia tirar vantagem com uma associação com o Brasil nesse setor seria o Japão. Se o Brasil conseguir despertar este interesse das nações em buscar alternativas energéticas que ele pode oferecer, passará a ter um peso de poder mundial muito grande junto com esses países somados à Alemanha, Índia. Só que para isso precisa ter governo, interlocutor. Esse tipo de coisa não se faz com bagrinhos, moços de recados e dirigentes servis. Isso se faz com autoridade e líderes verdadeiros que representem seu povo e que tenham a força de negociar pelos grandes interesses nacionais.

EC – Quem seriam esses garotos de recados? Que lógica eles seguem?
Vidal – Quem manda no Brasil não é o Presidente da República nem o Congresso. É a área financeira,o Banco Central. Simplesmente não existe lógica. Quando os interesses econômicos rejeitam a ciência, não há mais lógica , pois deixa de existir compromisso com o avanço da humanidade, com a cultura, com a espécie humana.

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