POLÍTICA

Impasses e caminhos

José Luis Fiori / Publicado em 16 de setembro de 2002

O insólito está se transformando num hábito matinal. Num dia é Paul Krugman – um dos principais gurus da década de 90 – que afirma nos jornais que “há dez anos, Washington garantiu aos países latino-americanos que, se eles se abrissem para bens e capitais estrangeiros e se privatizassem as estatais, viveriam um grande crescimento econômico que não aconteceu [..] e agora é hora de avaliar minhas crenças nos mercados”. Noutra manhã é Kenneth Maxwell – velho amigo da causa tucana – quem nos desperta com a informação de que “muitos dos problemas graves enfrentados pelo governo brasileiro são conseqüência do modelo de FHC que já estava errado há quatro anos […] e é por isto que ele sairá do governo em uma situação desastrosa, dentro de uma crise financeira de grandes dimensões”.

Pouco a pouco, todos vão concluindo que o ‘modelo de crescimento neoliberal’ provoca uma fragilidade externa e desajustes estruturais internos de tais proporções, que acabam eliminando o próprio crescimento. No início, os novos governos liberais supunham que as reformas institucionais, somadas a uma política macroeconômica ortodoxa e à desregulação dos mercados, produziria a convergência dos preços internacionais e uma situação de equilíbrio. Ambas seriam condições mais do que suficientes para o bom funcionamento do carro chefe do novo modelo de desenvolvimento, isto é, o fluxo constante e massivo de investimento direto estrangeiro. Na segunda metade dos anos 1990, contudo, este Consenso perdeu força, mesmo nos organismos multilaterais de Washington, na medida em que se sucediam as crises financeiras de 1994, no México; 1998, no Brasil; 2001 na Argentina e agora em 2002, de novo no Brasil. Hoje, as projeções de crescimento para 2002 são negativas e a região já amarga uma queda de 30 % no volume de entrada de investimento estrangeiro direto. A Argentina deve fechar o ano de 2002, com uma queda de 12% do PIB, liderando uma recessão e/ou desintegração econômica que atinge também o Uruguai, o Paraguai, o Equador, a Bolívia, o Peru e a Venezuela, enquanto a Colômbia enfrenta um processo de guerra e desintegração territorial. Resumindo, uma certeza percorre a América Latina: a década liberal foi um retumbante fracasso, e deixou o Continente sem rumo, como acabaram concluindo Krugman e Maxwell. Neste contexto, fica difícil de aceitar o apelo do presidente Fernando Henrique Cardoso, para que os candidatos presidenciais assumam, pura e simplesmente, um compromisso de lealdade com as mesmas políticas que foram as responsáveis pelo impasse em que o país está metido. Para não falar na dificuldade do presidente compreender o que até Paul Krugman reconhece: que “a desigualdade se agravou muito e a maioria das pessoas está em pior situação do que há 20 anos, e, portanto, não deve surpreender o fato de que a população não tolere mais chamados pela austeridade”.

Depois de uma década de liberalismo econômico, estamos entrando numa crise internacional que relembra a situação vivida pelo sistema capitalista, na segunda metade do século XIX. Ali também, os ingleses e demais países europeus tiveram que enfrentar e resolver o problema das falências e moratórias de suas periferias, que haviam se endividado, após uma rodada de políticas desregulacionistas, muito parecidas com as da década de 1990. A grande diferença com o que está passando agora, na América Latina e no Brasil, é que, em 1880, já havia consenso entre as grandes potências sobre o que fazer: elas já haviam deixado de lado o caminho do imperialismo do livre-comércio, e decidido seguir o caminho da expansão territorial e do colonialismo. Hoje, pelo contrário, os governos das Grandes Potências não querem mais se envolver com qualquer tipo de dominação colonial direta, que as comprometeria com problemas políticos e administrativos fora dos seus territórios. Mesmo assim, está sobre a mesa, dentro dos organismos multilaterais de Washington, uma proposta da economista Anne Krueger, diretora-adjunta do FMI propondo a criação de um Tribunal de Arbitragem que viria a ser a instância responsável pela reestruturação das dívidas dos países que estivessem em situação falimentar, proposta muito parecida com a dos Comitês de Administração das Dívidas, criados no século XIX. Mas as resistências de Washington têm sido muito grandes, porque a posição dominante dentro da Administração Bush ainda é a do Secretário do Tesouro, Paul O’Neil, partidário de que se deixe os mercados castigarem os governos e países que não obedeçam nem se comportem segundo as regras da “ economia global”. Até nova ordem, ainda são consideradas exceções estratégicas as ajudas concedidas ao Paquistão e à Turquia, e agora ao Uruguai e ao Brasil.

Fora do governo Bush, no meio acadêmico e nos organismos multilaterais cresce a força e a importância dos que criticam o Consenso de Washington. Destaca-se neste debate, a figura de Joseph Stiglitz, ex-Presidente da Acessoria Econômica de Bill Clinton e economista–chefe do Banco Mundial. Em 1997, ele publicou um artigo que provocou enorme polêmica, com o nome de”Post-Washington Consensus”, e mais recentemente, em 2002, o livro “Globalization and its Discontents”. Stiglitz, que também foi Prêmio Nobel de Economia em 2001, defende nestes dois trabalhos a tese de que o Consenso de Washington não ofereceu respostas adequadas à questão do desenvolvimento porque se submeteu à uma obsessão antiinflacionária baseada em convicções não-comprovadas sobre a própria natureza do processo inflacionário. Por fim, Stiglitz questiona a eficácia dos programas de privatização e defende o papel ativo do estado na regulação da economia, na implementação de políticas industriais e de políticas de bem-estar social para a população. Mas esta segue sendo uma posição minoritária dentro da política econômica internacional dos Estados Unidos.

Da mesma forma, na periferia do sistema, e sobretudo no Brasil, ainda existem fortes núcleos de resistência e apoio às políticas liberais. Acreditam que as crises são passageiras, e seriam o preço inevitável pago em nome de um futuro promissor, que não tardará em chegar, desde e quando os governos se mantenham fiéis e imóveis na defesa do rigor fiscal e monetário. Outros da mesma linha, talvez mais realistas, já não crêem neste sonho e acham que a crise cambial se prolongará. Por isto, já voltaram a trabalhar, dentro e fora do país, a favor da tese da dolarização da economia brasileira,o que poderia se transformar numa versão moderna do que passou no século XIX, sobretudo no caso do Canadá, Austrália e Nova Zelândia.

Contra este pensamento, é cada vez maior o número dos que defendem uma revisão e mudança da política econômica, e da estratégia do Brasil dentro da geopolítica do império americano. Sabem que a globalização financeira não alterou algumas condições e contradições básicas do capitalismo, e que o desafio da pobreza e da exclusão econômica e social segue sendo um problema dos estados nacionais, onde se geram e acumulam os recursos capazes de alterar a distribuição desigual da riqueza e do poder entre os grupos sociais. Daí sua defesa de uma nova estratégia nacional, que não incorra nos erros do velho desenvolvimentismo e que se sustente nos princípios da igualdade e da soberania. Dois problemas, entretanto, colocam-se no caminho desta mudança de rumo e devem ser objeto de uma urgente reflexão dos “mudancistas”:

O primeiro, e mais imediato, tem a ver com o compromisso do país de honrar a promessa de um superávit fiscal de 3.75%, estabelecido no Acordo com o FMI. Como manter este superávit e cumprir com a meta de crescimento e diminuição do desemprego? Dificilmente as exportações constituirão uma demanda suficiente para gerar uma taxa de crescimento (dada a relativa estagnação da economia mundial) capaz de reduzir a restrição externa de falta de divisas. Mas, ao mesmo tempo, se o compromisso fiscal é também impedir o gasto em reais, dificilmente o emprego subirá, mesmo se a taxa de juros cair, apesar de que, neste caso, possa haver uma reativação de alguns setores, como a construção civil. Na maioria dos setores, entretanto, não há razão para que os empresários retomem os investimentos, se a economia se mantiver deprimida. É verdade que a substituição de importações, imposta pela necessidade de melhorar o desempenho das contas externas, poderá dar algum ímpeto ao crescimento, mas será limitado seu impacto, sobre o crescimento global e sobretudo sobre o nível de emprego. Nesse sentido, o compromisso com o FMI acaba criando um círculo vicioso: se forem mantidas as metas do superávit fiscal, não dá para crescer e muito menos para gerar emprego, e, portanto, tampouco será possível criar o próprio superávit que foi estabelecido pelo Acordo.

O segundo problema é de mais longo prazo e tem a ver com os ensinamentos da história do sistema capitalista. Nenhum projeto de desenvolvimento nacional foi possível, apenas com base na soma dos interesses imediatos de grupos e classes sociais. Na prática, esses projetos só se viabilizaram quando uma situação de desafio externo gerou uma vontade política e uma solidariedade capaz de sustentar uma orientação estratégica, que se manteve ativa por muito tempo, a despeito dos seus custos imediatos. Nesse caso, existe um problema análogo ao que foi proposto por Georg Lukács: da passagem da consciência de classe ‘em si’, para a consciência ‘para si’. Um processo ainda muito mais complexo, no caso dos povos, territórios e nações.

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