GERAL

A burocracia que mata

Rosane Butho / Publicado em 2 de outubro de 2002

O mesmo Brasil que é elogiado no exterior por sua política de prevenção e tratamento à AIDS ainda não consegue atingir a população de rua, que continua morrendo pelas complicações decorrentes da doença. Para essas pessoas, ter ou não remédio grátis não faz diferença. O que os afasta da saúde é a dificuldade de aderir a um tratamento quando a fome e a falta de um teto para se abrigar falam mais alto sem contar com a forma burocrática e a linguagem pouco adequada com que são atendidos nos centros de referência.

Em setembro deste ano, enquanto a Coordenação Nacional de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) e AIDS, do Ministério da Saúde, recebia da Organização Panamericana de Saúde (OPAS) uma menção honrosa “por sua determinação, conhecimento e dedicação à saúde pública no Brasil”, Neri Martins Carvalho, 20 anos, fazia pela terceira vez a primeira consulta como portador de HIV. Desde que soube que era soropositivo para o vírus, em março de 2000, Carvalho tentou usar os medicamentos antiretrovirais duas vezes. Numa delas, quando começou a sentir os primeiros efeitos colaterais, deixou de tomá-los até que, um dia, sob efeito do álcool, ingeriu 50 comprimidos de uma só vez.

Carvalho passa seus dias na rua. De vez em quando, dorme no abrigo noturno, em Porto Alegre. Usuário de loló e de maconha, diz que contraiu o vírus numa relação sexual. Mesmo sabendo que tem HIV, compartilhou seringas com cocaína injetável. Como é HIV positivo, quer agora conseguir a carteira de passe livre nos ônibus e se aposentar pela doença. Ainda não conseguiu encaminhar os papéis porque perdeu o documento de identidade. Nesse meio tempo, abandonou novamente o tratamento. Usou os remédios durante cinco meses, mas se sentia enjoado, sem fome – efeitos do próprio medicamento – e parou de tomá-los outra vez.

Na turma de Carvalho, ele não é exceção. As dificuldades de convencer os moradores de rua a se tratarem são parecidas. O primeiro desafio é ir fazer o exame do HIV. Além do exame de sangue, é preciso não sucumbir ao sono ao ouvir uma palestra com nomes estranhos, nem sempre muito bem explicados. O que significa mesmo CD4? Que bicho é esse que pode acabar com as células de defesa do organismo? Segundo passo: pegar o resultado. Quem quer saber sem tem o vírus da AIDS quando, para muitos, ele é sinônimo de morte, por mais que os médicos digam o contrário? Se for positivo, tem de marcar uma consulta. E depois, fazer mais exames. Carga Viral. CD4. Tuberculose. Hepatite. Algumas vezes, dá até para fazê-los no mesmo lugar. Quando não dá, começa a peregrinação rumo aos locais indicados. Alguns têm de ser feitos em jejum. O pessoal encarregado de dar as instruções às vezes é impaciente. Como lembrar do dia de voltar para receber os resultados? Onde guardar os papéis para não esquecer? Depois, marcar nova consulta. Não dá para descuidar da data em que abre a agenda de marcação, senão perde a chance de ser atendido, talvez no mês seguinte, porque geralmente não há vaga para o mesmo mês.

Essa via crucis faz com que boa parte dos moradores de rua não chegue até a metade do caminho. É mais fácil começarem a se tratar encaminhados pela emergência, em situações-limite (infecções, principalmente), do que buscarem os postos de atenção básica.

Para estas pessoas, o HIV é só mais um problema. Não há o que comer, onde morar, nem relógio para saber o horário de tomar a medicação. Quem está nos abrigos e albergues ou mantém contato com o pessoal da abordagem na rua tem mais possibilidade de aderir ao tratamento. Alguns precisam pedir ajuda até para pegar o ônibus e ir ao posto de atendimento, porque são analfabetos. Como vão conseguir então ir de um lugar a outro para fazer todos os exames necessários?

“Pode haver necessidade de conduzir alguém pela mão”, admite Marcelo Araújo Campos, presidente da Associação Brasileira de Redutores de Danos (Aborda). Às vezes, isso é necessário para quebrar o círculo vicioso “não me atendem, então não vou”. Na visão de Campos, esse “levar pela mão” serve para educar tanto o usuário como os servidores públicos, que nem sempre sabem lidar com alguns pacientes, como os de drogas injetáveis, e podem ter uma atitude defensiva, causando constrangimento. Os “bons” serviços (e principalmente os trabalhadores que lidam diretamente com as populações marginalizadas) podem atuar como ponte entre usuários e os locais de atendimento, permitindo a essa parcela da população se apropriar dos bens sociais disponíveis, e aos serviços se tranqüilizarem para recebê-los de maneira não (ou menos) segregante.

A segregação impede avanços: “Os profissionais que estão nos locais de referência para atender são os primeiros a te ignorar”, reclama Fátima Machado, 42 anos, portadora do HIV e conselheira do Conselho Municipal de Entorpecentes de Porto Alegre. Quando não se é bem recebido, não há estímulo para voltar. Para quem usa drogas, o acesso é mais difícil porque existe muita discriminação, diz Fátima. Márcia Colombo, do Programa de Redução de Danos de Porto Alegre, reconhece: em algumas unidades, há entre os profissionais de saúde, despreparo, preconceito e medo de ser agredido por essa população. Para amenizar o problema, estão sendo feitos cursos de capacitação.

Ministério admite não ter políticas para este público

O médico Luiz Fernando Marques, consultor da Organização Mundial de Saúde para AIDS, recomenda ir além. “Ninguém vai conseguir ajudar o outro se ele mesmo está mal – se não se pode dar um aumento ao funcionário público, por que não ouvi-lo e oferecer algo gratificante, que o faça aderir a uma nova proposta de atuação?”. A saída, na visão de Marques, é acolher as pessoas e responder às suas demandas.

Por um lado, deve haver mais abrigos e locais onde quem está na rua possa se lavar, se alimentar, encontrar ajuda jurídica e médica. Por outro, os lugares de referência para exame e tratamento de HIV/AIDS devem ser centralizados, sem burocracia, com mais profissionais capacitados, mais espaço em sua agenda para as “primeiras consultas” e flexibilidade para atender também os pacientes sem consulta marcada. Além disso, é preciso ter uma assistência social para ajudar com algum benefício, pelo menos de alimentação ou transporte.

Quando há distribuição de ranchos nos centros de referência para HIV, eles não são suficientes. “Temos de fazer a escolha de Sofia”, desabafa Neiva Isabel Raffo Wachholz, coordenadora do ambulatório do Serviço de Assistência Especializado de DST/AIDS da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre. Só o ambulatório onde ela trabalha distribui cem cestas básicas, mas como dar conta da demanda, já que, conforme seus cálculos, 70% da população que se trata ali deveria receber ajuda?

O abandono freqüente do tratamento pelos moradores de rua tem feito os médicos reavaliarem suas orientações. “Se a pessoa não tem como aderir ao tratamento de forma efetiva, ela pode se complicar ainda mais, começando a usar o remédio e deixando de tomar, porque cria resistência ao medicamento”, esclarece a enfermeira Isete Maria Stella, coordenadora da Política Municipal de DST/AIDS de Porto Alegre. “Agora só se inicia a medicação se o paciente estiver convencido da necessidade, sabendo que vai enfrentar efeitos adversos”.

Isete observa que o soropositivo cria uma espécie de “condição mágica” em que ignora o problema de saúde, mesmo sabendo que tem o vírus. “Monitoramos há dois anos uma menina que vive na rua, mas fazê-la vir a cada quatro meses para a revisão é difícil, porque não sente necessidade”, conta Isete. Quando alguém começa a tomar o antiretroviral e a ter efeitos colaterais, tende a pensar que aí sim é que está ficando doente. Fátima cansou de ouvir moradores de rua dizerem que tomar o remédio para AIDS é pior, porque um amigo usou o medicamento e morreu. Ela tenta desmistificar: “Quem morreu depois de tomar o remédio é porque já estava muito debilitado, e aí não há antiretroviral que reverta a situação”.

Os técnicos do Ministério da Saúde admitem que existe um vazio para tratar desta população e têm buscado suprir a demanda com a ajuda de organizações não-governamentais. Mas começam a pensar em outras alternativas para ampliar seu alcance. Em outubro, será lançada uma pesquisa em seis capitais – Porto Alegre, Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Recife e Belém – para fazer uma contagem e definir a situação de saúde de quem vive em situação de rua. Segundo Henriette Ahrens, assessora técnica da área de Prevenção, foram elaborados questionários para detectar os casos de tuberculose, hepatite e DST/AIDS. O Levantamento das Pessoas em Situação de Rua está sendo organizado pela Secretaria de Estado da Assistência Social, órgão do Ministério da Justiça. Ao mesmo tempo, o setor de prevenção da Coordenação Nacional de DST/AIDS está propondo organizar equipes móveis para ir até a população de rua e dar encaminhamento às suas necessidades de vacinas e exames médicos, no molde do Programa de Saúde da Família, já em funcionamento.

A proposta só será possível se tiver apoio dos órgãos de Assistência Social e Saúde dos governos estaduais, diz Henriette. Mais do que isso: se estiver de acordo com o que querem e do que precisam os moradores de rua. “Quem pode nos dizer como incluir populações marginalizadas não são apenas os técnicos dos serviços, mas principalmente os usuários”, ressalta Campos, da Aborda. “Aliás, só assim essas pessoas vão tomar o remédio: quando virem que não se trata de “ordem do médico”, mas de benefício próprio”, acredita.

R.R.O., 24 anos, soube que era positiva para HIV quando ganhou sua filha, há dois anos. “Não pude amamentar”, explica. Começou a tomar remédio, mas o medicamento acabou e ela não voltou mais para buscar. Está sem documentos, avisa que tem “problema na cabeça” e não consegue trabalho

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