GERAL

A moral e o limite da filosofia

Da redação / Publicado em 29 de junho de 2003

Embora tenha nascido em Brno, na antiga Tchecoeslováquia, de família alemã, Ernst Tugendhat é considerado um dos maiores filósofos alemães contemporâneos e o mais citado em sua área depois de Jürgen Habermas. Ele foi professor catedrático de Filosofia nas universidades de Heidelberg e de Berlim, depois de ter trabalhado ao lado do próprio Habermas, no Instituto Max Planck, de Starnberg. Segundo ele, a moral é um sistema de obrigações intersubjetivas. E foi partindo dessa idéia que Tugendhat, proferiu a palestra O problema da moral, realizada em maio, na PUCRS. Na sua produção filosófica figuram obras que se tornaram clássicas, como as lições introdutórias à filosofia analítica da linguagem, autoconsciência e autodeterminação, que tratam de problemas ligados à filosofia teórica. Entre as obras do filósofo estão a mais recente Egocentricidade e mística (2003), Não somos de arame rígido (2002), Problemas (2001), O livro de Manuel e Camila (2000) e Diálogo em Letícia (1997), cujo conteúdo trata de questões abordadas na palestra, como a fundamentação da moral.
Ao falar para estudantes e professores da PUC, o filósofo, que está no Estado como professor visitante do Pós-Graduação em Filosofia da Universidade, citou a moral como um conjunto de regularidades do comportamento que se baseiam na pressão social. Tugendhat, que contraria a concepção de Kant da obrigação moral sem reciprocidade, destacou que a mesma se estabelece dentro de um sistema de exigências recíprocas, sem o qual sociedades humanas não poderiam sobreviver. “Existem somente dois tipos de justificação recíproca de normas: o religioso (vertical) e o relacionado aos interesses dos membros da sociedade (horizontal). Nietzsche e Dostoiewski pensavam que, quando a justificação vertical se tornasse impossível, a moral simplesmente não seria justificável”, declarou.
Momentos antes da palestra, Tugendhat, concedeu esta entrevista ao Extra Classe, na qual falou sobre temas considerados fundamentais da filosofia, como moral, ética, solidão e felicidade, e fez considerações sobre os direitos humanos, o Fórum Social Mundial e a guerra no Iraque.

Extra Classe – Poderia se dizer que a moral está em crise?
Ernst Tugendhat
– É um problema puramente filosófico. Não é a moral moderna que está em crise. O que está em crise para mim é a teoria de que a filosofia faça uma boa teoria da moral. E não temos uma. Então, tenho discussões com Kant, com o contratualismo, composições filosóficas, com o utilitarismo. Eu desenvolvo uma teoria que é perto do contratualismo, mas, por isso, tenho que dizer como eu me distingo do contratualismo normal. Mas tudo isso é complicado para uma entrevista.

EC – Existe diferença entre moral e ética?
Tugendhat
– Em princípio, não. Isso é um problema puramente verbal. Os latinos traduziram a palavra ética dos gregos como moral. Na filosofia brigamos muito com esta diferença, problemas que são puramente problemas de palavras, quer dizer, de convenções: que coisa você quer denominar com que palavra. A diferença entre ética e moral é um problema puramente convencional. Há filósofos que fazem essa diferença e outros que não. Mas você tem razão. Eu posso de alguma maneira relacionar o que eu estou dizendo com o que você poderia chamar a crise da ética. Essa crise se pode caracterizar pelo fato de que, nos tempos anteriores, a moral foi justificada por autoridade religiosa. Então, desde mais ou menos duzentos anos, mais fortemente neste último século, sabemos que não podemos em geral, justificar a moral, mesmo que muita gente ainda tenha uma concepção moral e religiosa. Por isso, temos este problema filosófico, mas que é relacionado a um verdadeiro problema. Eu tomo como exemplo uma criança que pergunta aos pais: Por que existem essas regras, por que eu tenho que me habituar a elas? Isso é o problema da justificação. Então, quando eles não podem dar uma justificação religiosa, eles têm um problema em como justificar isso à criança.

EC – No livro Manuel e Camila, o senhor escreve sobre ética para crianças, poderia falar um pouco sobre isso?
Tugendhat
– Escrevi este livro no Chile, juntamente com um casal de amigos. Em contraste com tudo o que escrevi até então, não é um livro filosófico, mas pedagógico para que todos possam usar nas escolas, porque hoje se quer falar em moral nas escolas. Não nos referimos explicitamente a nenhum filósofo. O livro consiste em discussões entre os alunos mesmos, grupos de alunos entre si e com seus pais e professores sobre problemas morais.

EC – Seria a construção de um entendimento, seria um manual ou trabalho?
Tugendhat
– Não é um manual, seria mais como uma pequena novela, porque as crianças têm suas aulas, depois saem das aulas, têm algum problema, vão ao bibliotecário, falam com ele. Falamos para crianças de 13, 14 anos, mais ou menos, sobre em que consiste a moral e como se pode justificá-la. Me refiro à regra que fala que, assim como você quer que as pessoas atuem com você, você deve atuar com os outros, e essa é a questão central do livro. O problema da justificação naturalmente tem que ver também com a concepção cotidiana da moral assim como temos visto com uma criança e também em todas as questões concretas, se pergunta como se pode justificar e como se justifica. A minha posição é de que o núcleo de uma moral, que não é religiosa, é uma justificação recíproca.

EC – A justificativa se dá de acordo com o que se quer para si?
Tugendhat
– Isso seria pragmático. Estamos num sistema de exigências recíprocas. A pergunta é como estão justificadas essas exigências. Eu vou atuar assim ainda que os outros não atuem assim. Mas concretamente se diria que uma pessoa que atua normalmente só para que o outro faça a mesma coisa, não atua por razões morais, mas atua simplesmente por troca. A moral tem algo que ver também com reciprocidade, claro.

EC – O senhor também tem trabalhado com questões relacionadas aos direitos humanos. Como vê essa movimentação para a construção de um mundo mais justo?
Tugendhat
– Esse talvez seja o maior problema concreto que temos: o da justiça social e o problema ecológico. A dificuldade está naturalmente em como se pode fazer justiça inserido num sistema mundial capitalista. Trata-se de um problema grave e que deve ser enfrentado.

EC – Tem surpreendido o movimento pela paz no mundo, agora principalmente em função da guerra dos Estados Unidos contra o Iraque. Como o senhor vê isso?
Tugendhat
– Eu fiquei muito impressionado com tanta gente indo para as ruas, especialmente em relação à guerra contra o Iraque. Isso significa que a gente tem mais consciência, isso é muito bom. Tem gente que diz que o mundo está em baixa, mas por outro lado há esses movimentos.

EC – Por outro lado, tem surgido outros movimentos, como o Fórum Social Mundial, manifestações contra o cerceamento intelectual, discriminação racial, sexual. As pessoas estão indo para as ruas, dizendo “a minha verdade não é essa”.
Tugendhat
– Naturalmente, é muito mais fácil mudar a opinião da sociedade sobre a homossexualidade e também mudar os preconceitos sociais, do que chegar a uma boa concepção da justiça social. Faria isso, precisamente, dentro de um país só, então, tudo seria muito mais fácil. Mas, como hoje todos os países estão economicamente conectados a tal ponto que você introduz leis em favor de mais justiça social, a competição com os estrangeiros é mais difícil. Por exemplo, hoje na Europa, na Alemanha, na França, tira-se uma parte da legislação social porque as pessoas estão incapazes de competir. A realidade do Brasil, me parece absolutamente terrível pela grande pobreza e por esta situação econômica de viver com juros muito altos.

EC – A felicidade é possível numa sociedade cheia de normas morais, com tantas contradições?
Tugendhat
– Todo o preconceito deveria ser erradicado. Agora, a felicidade depende de muitas coisas, especialmente psicológicas. Você tem razão, nós queremos construir uma sociedade que seja mais feliz. Eu já estou velho demais e cético demais. Eu creio que o mundo está em baixa, especialmente com os problemas ecológicos, com o grande crescimento da população. Eu creio que virão problemas dos quais nós hoje nem temos idéia. Eu, ao contrário, me surpreendo quando eu passo na rua, seja aqui no Brasil, na Alemanha, e vejo que as pessoas estão felizes apesar de tudo. Na Alemanha é interessante. Eu moro numa cidade pequena, universitária, relativamente rica. Eu estou surpreso com as pessoas. Se vê muita satisfação. Aqui no Brasil também. Os brasileiros têm mais capacidade de estarem satisfeitos do que qualquer outra nação que conheço. Essa é uma característica do povo. Os brasileiros são bem menos ansiosos do que os europeus, especialmente nas regiões tropicais.

EC – A solidão humana se esconde nesta “satisfação”?
Tugendhat
– É verdade, se esconde. A gente sai na rua, então não está sozinho. Ao final, quando a gente está confrontado com a morte, sempre vai estar sozinho. Então, por isso você tem toda a razão de dizer que a solidão se esconde na satisfação.

EC – São os problemas da existência humana, a dor de existir, são difíceis de dissimular.
Tugendhat
– Em comparação com outras nações, os brasileiros são mais satisfeitos. A gente também pensa que a razão é porque no Brasil nunca houve uma revolução.

EC – Satisfeito ou resignado?
Tugendhat
– Satisfeito, facilmente satisfeito nas coisas pequenas. Você acha que eles são muito resignados?

EC – Carregam um sentimento de impotência.
Tugendhat
– Isso é uma coisa muito universal hoje. É interessante que a gente não se resigne completamente e faça estas demonstrações nas ruas. Mesmo assim eles vêem que podem fazer grandes demonstrações, mas, para o Bush, isso não significa nada.

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