POLÍTICA

Notas para um debate democrático sobre o “Plano Plurianual 2004 -2007”

José Luis Fiori / Publicado em 29 de julho de 2003

Construir uma sociedade dinâmica e moderna, tirar o país da letargia, gerar empregos e riquezas e estabelecer justiça social são objetivos que só serão alcançados com um crescimento firme e duradouro e não se faz uma mudança deste porte sem planejamento. Plano Plurianual 2004-2007, Ministério do Planejamento.

I – Orientação Estratégica: objetivos e prioridades

1.
O ponto de partida do PPA é absolutamente correto e não deverá ser esquecido, em nenhum momento, nas discussões que se iniciam. Um projeto de mudança estrutural do Brasil e do seu modelo de desenvolvimento, na última década, pressupõe uma mobilização nacional de forças e recursos. Uma mobilização impossível sem a ativa intervenção/coordenação estatal, orientada por um planejamento estratégico de longo prazo, que defina objetivos claros e hierarquizados, além de explicitar com detalhe os seus instrumentos e meios de financiamento.

2. Cabe ressalvar, entretanto, que o próprio documento formulado pelo Ministério do Planejamento reconhece suas limitações, ao sublinhar a distância entre seu objetivo imediato, que é sintetizar a “Orientação Estratégica do Governo”, e o que será o Plano Plurianual 2004-2007, a ser detalhado e orçado nos próximos meses, antes de ser enviado ao Congresso Nacional. Por isto, pede ao leitor que releve, transitoriamente, a ausência em seu texto de qualquer informação mais precisa sobre fontes de financiamento e instrumentos de incentivo, claramente discriminados e distribuídos por setores e regiões.

3. O não-detalhamento de fontes e recursos, todavia, acaba prejudicando a própria definição das grandes diretrizes estratégicas. Por não se enfrentar com o problema dos limites reais da ação governamental e do investimento privado, o documento tampouco se enfrenta com a necessidade elementar de qualquer plano estratégico: a seleção das prioridades e a definição precisa dos instrumentos necessários à sua implementação. Com isso, tornam-se débeis os balizamentos, obliteram-se as escolhas mais difíceis e complexas, não se assume o problema das contradições reais de qualquer desenvolvimento econômico, e os planos de governo acabam tornando-se muito similares do que , habitualmente, se chama de “programa eleitoral de governo”.

É o que acontece, por exemplo, quando define o seu objetivo central: crescimento ambientalmente sustentável do produto e do emprego, com inclusão social, redução das disparidades regionais, dinamização do mercado interno, aumento das exportações, aumento da renda dos trabalhadores, diminuição da vulnerabilidade externa, expansão da infra-estrutura etc. Todos esses aspectos têm como requisito a consolidação prévia da estabilidade monetária e do equilíbrio fiscal. Nesse ponto, é necessário dizer que não se pode considerá-lo propriamente como um objetivo, nem tampouco uma forma de priorização de objetivos a serem alcançados. Trata-se muito mais de uma relação de princípios, valores e metas que são hoje absolutamente consensuais. Uma listagem que propõe tudo de forma simultânea, ou seja, nada que possa orientar estrategicamente um plano plurianual para os três próximos anos. Como metáfora se poderia falar que propõe o céu, mas não diz o que fazer enquanto se estiver na terra.

4. O mesmo pode-se dizer dos capítulos em que o documento discute políticas específicas, como é o caso das “políticas para o setor externo” ou “industriais”, nas quais não há qualquer preocupação em se apontar uma só contradição entre as próprias políticas recomendadas, ou entre elas e as políticas fiscal e monetária do governo; ou ainda, entre essas políticas e as regras definidas, por exemplo, pela Organização Mundial do Comércio. Nesse caso, já não se trata de uma lista de bons propósitos, mas de um elenco quase completo dos instrumentos clássicos de política industrial que se estudam em qualquer livro de iniciação acadêmica.

II – Política macroeconômica ortodoxa e crescimento com inclusão social

5.
Apesar do o documento não enfrentar explicitamente o dilema das escolhas entre suas várias propostas e tampouco o problema das contradições reais dos processos de desenvolvimento, não é impossível fazer uma espécie de análise preliminar de “consistência”, que antecipe algumas escolhas inevitáveis a serem feitas pelo futuro Plano Plurianual. Isso ocorre, sobretudo, porque algumas condições básicas já estão dadas, ou já foram definidas pelo próprio governo, em particular no campo da política macroeconômica, que já estabeleceu os parâmetros fiscais e monetários que vigorarão até 2007, a não ser que ocorra algum acidente de percurso.

6. Sob esse aspecto, é interessante olhar para o que foi o desempenho das economias latino-americanas que se propuseram, nesta última década de 90, a experimentar um projeto nacional de crescimento sustentado, com base em políticas macroeconômicas ortodoxas, e com economias abertas e desreguladas. Nesta década, a média de crescimento de todo o continente ficou abaixo de 3%, quando havia sido de 5,5% anuais durante os 30 anos de “populismo econômico desenvolvimentista”. No caso brasileiro, estas cifras são ainda mais contrastantes porque a média anual de crescimento, entre 1945 e 1980, ficou entre 7% e 8%, enquanto a taxa da chamada “década ortodoxa” esteve em torno de 3%. Menor portanto do que o crescimento da “década perdida” de 1980. Além disso, dezoito anos após o desencadeamento da crise da dívida externa de 1982, a região continua com índices de pobreza e indigência situados em vários pontos percentuais acima dos prevalecentes no início dos anos oitenta. No Brasil o emprego declinou, em média, 0,3% ao ano durante toda a década, chegando às cifras astronômicas atuais: algo em torno de 12% na média nacional, 20% nas grandes cidades, e, mais grave ainda, em torno de 30% na média nacional da população mais jovem, com até 24 anos de idade.

Em síntese,em todos os países do continente, os dados apontam na mesma direcão: a política macroeconômica ortodoxa é rigorosamente incompatível com altas taxas de crescimento sustentável em países periféricos e no contexto de uma economia mundial desregulada financeiramente. Além disso, no longo prazo, a manutenção desta matriz macroeconômica produziu invariavelmente, a concentração da renda e da riqueza.

7. Do ponto de vista estrutural, as políticas ortodoxas, somadas às reformas liberais, criaram também prolongados períodos de desajustes dentro do sistema produtivo. A abertura comercial, somada à desnacionalização e à desmontagem de elos importantes da cadeia industrial, criou uma nova configuração produtiva, altamente dependente das importações. Como conseqüência, aumentou a dependência das economias nacionais com relação à importação de bens de capital e de produtos de maior densidade tecnológica. Estreitou-se ainda mais o acesso da periferia ao conhecimento e às tecnologias de ponta, que em geral não acompanham os investimentos diretos estrangeiros, e que por isso contribuem muito pouco para a criação de uma capacidade endógena de progresso técnico.

8. Nesse campo, a América Latina não serve como base de comparação porque é um continente pouco industrializado. Melhor será o exemplo da Espanha de Felipe Gonzalez, que manteve durante quatorze anos (1982-1996) o mesmo modelo ortodoxo com reformas liberais, tendo tido seu melhor desempenho econômico entre 1986 e 1990. Nesse período a Espanha recebeu dez bilhões de pesetas em investimentos externos, exatamente dez vezes mais do que no quinqüênio anterior. Contudo, 30% desse total foi aplicado na compra de empresas locais; 58% em investimentos de carteira em ações, obrigações e dívida pública em Bolsa e o restante foi destinado, basicamente, à compra de imóveis. São dados que indiscutivelmente refletem o caráter especulativo que assumiu e manteve uma boa parte desse fluxo de capitais . Esse processo revalorizou os ativos reais e financeiros, aumentou a riqueza pessoal de seus detentores e multiplicou o preço das habitações urbanas, mas pouco contribuiu para dinamizar as atividades produtivas geradoras de emprego e de crescimento sustentado. Aliás, nesse período foi o país europeu que, depois de Luxemburgo, menos gastou em formação de recursos humanos: algo em torno de 0,08% do PIB, ao mesmo tempo em que o investimento em P&D não ultrapassava a média de 0,68%, taxa mais alta apenas que a de Portugal. E o que dizer da” reestruturação industrial” espanhola? Ainda uma vez os números são contundentes e mostram que a Espanha deixou, naqueles anos, de ser uma economia industrial. Durante o período, e mais aceleradamente entre 1980/90, a participação industrial no PIB espanhol caiu de 32,9% para 24,2%, empregando apenas 27% da PEA, enquanto a participação dos serviços cresceu de 47% para 63%, empregando cerca de 60% daquela população. Segundo dados publicados pelo The Economist, em outubro de 1994, a Espanha foi o país da OCDE que mais vendeu empresas para estrangeiros no período entre 1989-1993, desnacionalizando rapidamente a sua economia. Essas mudanças teriam dado maior competitividade internacional à economia espanhola? Aparentemente não, pois segundo o World Economic Forum, a Espanha situa-se hoje entre as nações menos competitivas da OCDE.

III – A política macroeconômica ortodoxa e a questão Regional
9. As propostas do documento favoráveis a um desenvolvimento regional mais homogêneo, também rebatem nas limitações da política econômica ortodoxa e do seu enquadramento internacional. A abertura e desregulamentação das economias nacionais acabou submetendo os “países em desenvolvimento”, ou “mercados emergentes”, a um novo tipo de concorrência sem fronteiras entre estados e governos dispostos a “sensibilizar” ou seduzir os investidores, sobretudo internacionais. Para obter sucesso nessa competição, os governos tentam aumentar cada vez mais as vantagens relativas de seus territórios, reduzindo seus níveis salariais, eliminando as regulamentações dos seus mercados de trabalho e reduzindo suas cargas fiscais.

10. Essa novidade torna-se ainda mais perversa quando a competição que se desenvolve entre países começa a ocorrer também entre regiões, estados e municípios de um mesmo território nacional , jogando-os uns contra os outros e todos contra os seus governos centrais, que os estrangulam com suas políticas monetárias. Nesse contexto, fica quase impossível falar de solidariedade federativa, ou de convergência e homogeneização coordenada dos desenvolvimentos regionais de um mesmo país.

11. Esse problema adquire contornos mais graves nos países que combinam tal situação com uma herança de maior desigualdade na distribuição da riqueza e da renda entre as suas várias regiões. É o caso brasileiro, em que os fundos públicos e as políticas compensatórias do governo central sempre cumpriram um papel decisivo na costura da unidade nacional. Por isso, a manutenção de uma política macroeconômica ortodoxa, com baixo crescimento econômico e arrocho fiscal e monetário, pode acabar afetando de maneira decisiva a capacidade do estado brasileiro de cumprir a função de promotor ativo da unidade territorial. Mais difícil fica a implementação, neste contexto, de um projeto que se proponha mudar o padrão assimétrico do desenvolvimento econômico e social brasileiro.

IV – A política macoeconômica ortodoxa e a questão democrática

12.
Em 1993, o economista John Williamson, que cunhou a expressão Consenso de Washington , publicou um artigo extremamente instrutivo e premonitório. Chamava-se “A Democracia e o Washington Consensus”. Ele defendia a tese de que a sobrevivência dos regimes democráticos, nos países submetidos à terapia ortodoxo-liberal, supunha que os seus principais atores sociais e políticos chegassem a um acordo prévio ou anterior ao próprio exercício da democracia. Uma espécie de armistício macroeconômico, em que todos reconhecessem a existência de uma, e apenas uma, política econômica científica e eficaz. Como conseqüência deste acordo, a discussão da política econômica seria eliminada das competições eleitorais e dos debates democráticos, de tal forma que ficasse assegurado aos investidores que a alternância no poder jamais tocaria nos fundamentos da política econômica, e, portanto, jamais tocando nos seus interesses. Nesse ponto situa-se o sempre relembrado problema da credibilidade, um verdadeiro “pesadelo de Sísifo” que se auto-impõem os governos que adotam as políticas ortodoxas, convictos de que os mercados internacionais se movem de acordo com suas pequenas “mesquinharias” fiscais ou previdenciárias. Entretanto, o problema mais grave do ponto de vista democrático é que exatamente nesse ponto é que se esconde o autoritarismo implícito na tese de John Williamson.

13. A experiência demonstra que as políticas deflacionistas se perenizam independentemente da credibilidade de que possam gozar as autoridades nacionais, e com ela um quadro crônico de restrições fiscais e monetárias, acompanhado de baixo crescimento, como já vimos. Fatores que, em conjunto, atingem e debilitam todas as políticas públicas. Por isso, uma vez posto na ‘camisa de força’ das políticas ortodoxas, nenhum governo consegue enfrentar as raízes de seus problemas sociais, limitando-se apenas aos seus aspectos mais visíveis ou chocantes. Como essas políticas, entretanto, vão acompanhadas pelo aumento exponencial do desemprego e da miséria, ou da polarização social, só se pode ficar pessimista e prever-se uma crescente crise de legitimidade democrática, a não ser que se promova ativamente a apatia cidadã.

14. Sob esse aspecto, é possível que se repita no Brasil o que já se assiste em outros lugares: o esvaziamento das militâncias partidárias e um crescente esvaziamento do próprio processo eleitoral. Conseqüências que podem ser extremamente benéficas para o ‘armistício macroeconômico’ desejado por John Willimason, mas que, no longo prazo, serão extremamente deletérias para a consolidação da institucionalidade democrática.

V – Para incitar angústia e ressuscitar a criatividade

15.
Na medida em que o tempo passa, fica cada vez mais claro que o modelo ortodoxo de política macroeconômica com reformas liberais, acaba por tornar-se, no longo prazo, prisioneiro de si mesmo ao esconder-se atrás de sua obsessão anti-inflacionária, infinitamente elástica, mesmo quando a economia mundial se encontrar em claro processo deflacionário. Além disso, não se conhece caso ou experiência de algum país onde esse modelo tenha gerado alto crescimento com sustentabilidade, e muito menos inclusivo. Tampouco se conhece nenhum caso ou país, onde este modelo tenha se transformado, por um processo endógeno e evolutivo, no seu oposto. Isso seria sinal de que o Brasil se encontra prisioneiro de um círculo-quadrado? Não, não existe tal coisa na história política e econômica das nações.

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