OPINIÃO

Os estilos e as ruas

Por Verissimo / Publicado em 29 de julho de 2003

Na França, onde estive até a semana passada*, eles estavam brigando sabe por quê? Reforma da previdência. Para mostrar que pelo menos esta não é uma desarrumação endêmica brasileira. A crise da previdência é geral. É, mesmo, a grande crise niveladora do capitalismo mundial, afligindo desde sociais-democracias de verdade até seus arremedos aqui embaixo. Junte-se à falência universal da seguridade social como existe hoje o fato de que a previdência privada é o maior negócio ainda subexplorado do planeta, uma espécie de gigantesco lençol de lucro fácil só esperando que liberem a prospecção, e está explicada a confusão.

A crise só muda de estilo, de país para país. Na França, uma tradição antiga de ativismo sindical e política de rua, atiçada pela atual ameaça a direitos conquistados em outras lutas, teve uma razão a mais para reflorescer com força: a reação dos sindicatos ao projeto do primeiro-ministro Raffarin é o primeiro enfrentamento real entre esquerda e governo desde a derrota dos socialistas nas últimas eleições. Raffarin tem uma confortável maioria parlamentar para aprovar suas reformas – inclusive uma reforma do ensino, que também está sendo combatida – mas a rua francesa n´est pas mole não. As manifestações contra o governo se repetiam, o lixo não recolhido por funcionários em greve se amontoava e o calor não ajudava, as “perturbations” nas linhas de ônibus e metrô eram devidamente anunciadas, inclusive com hora marcada para começar e terminar, mas perturbavam assim mesmo, e todo mundo se lembrava que o último grande movimento popular parecido tinha derrubado outro ministro do monsieur Chirac. Já no Brasil, como se sabe – ou como se sabia quando eu saí de férias, a perplexidade pode ter tomado conta desde então e ninguém sabe mais nada – o maior problema que um governo de esquerda encontra para aprovar suas reformas é com seu próprio partido e, de certa maneira, com a sua própria rua. Nosso estilo não apenas é outro. É inédito.

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A caminho de Paris paramos em Roma para uma visita ao amigo Araujo Netto. Que acabou sendo uma visita de despedida. O Araujo morreu poucos dias depois, cercado pelo carinho das filhas. Foi um dos melhores jornalistas, e uma das melhores pessoas, que conheci.

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