EDUCAÇÃO

Conversa franca entre Filosofia e Educação

Daniel Cassol / Publicado em 23 de outubro de 2003

O picadeiro da 10ª Jornada Nacional de Literatura mal havia sido desmontado, e a Universidade de Passo Fundo estava mais uma vez abrindo as portas para cerca de 720 estudantes e educadores interessados em debater e aprender. Desta vez, a literatura deu lugar à filosofia e à educação, que estabeleceram um diálogo no evento que aconteceu de 22 a 26 de setembro.

O 1º Seminário Internacional sobre Filosofia e Educação teve como tema
“Subjetividade-Intersubjetividade na Fundamentação da Práxis Pedagógica”. Por trás da frase, incompreensível para leigos, está o desafio de aproximar as duas areas como forma de aperfeiçoar os processos de formação de professores e de educação de alunos. “A aproximação entre a filosofia e a pedagogia se dá a partir dos temas de fronteira entre ambas, principalmente os conceitos de racionalidade e ação humana”, explica o professor Cláudio Dalbosco (UPF), um dos coordenadores do evento.

Para cumprir a tarefa, a coordenação do seminário contou com as presenças de pesquisadores como José Carlos Libâneo (UFG), Demerval Saviano (Unicamp), Pedro Goergen (Unicamp), Nadja Hermann (UFRGS), além dos alemães Heinz Eidam, Frank Hermenau e Hans-Georg Flickinger, da Universidade de Kassel (Alemanha), este atuando no Rio Grande do Sul desde 1983. O evento ainda contou com mesas-redondas, realizadas em homenagens a importantes educadores brasileiros e da região de Passo Fundo, como Paulo Freire, Dom José Gomes, Ernani Maria Fiori e Mário Osório Marques. Foram inscritos, também, mais de 60 trabalhos dos participantes. No último dia do evento, uma conferência do professor Wolfgang Leo Maar (UFSCar) serviu de homenagem ao centenário de Theodor Adorno.

A próxima edição do seminário já está confirmada para setembro de 2005. Até lá, quem não pôde acompanhar as discussões poderá conferir o livro que será editado com o conteúdo das conferências e das mesas redondas. A obra será financiada pelo Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD). Para adquiri-lo, a UPF disponibiliza o site do evento: www.upf.br/nupefe

Não há diálogo sem autonomia
Ao se propor um diálogo entre a filosofia e a educação, tarefa ousada e complexa, há uma pergunta a ser feita: Como conseguir isso? Em entrevista o jornal Extra Classe, os professores da Universidade de Kassel defenderam que a filosofia, assim como a educação, deve buscar fortalecer a si própria para que possa dialogar com outras áreas do conhecimento. “A filosofia deve elaborar suas próprias formas de questionamento para conseguir, a partir deste ponto de partida, estabelecer um diálogo com as outras áreas científicas. Um diálogo só pode ser estabelecido entre áreas diferenciadas e autônomas”, afirma o professor Heinz Eidam. Mesma opinião tem o professor Frank Hermenau, que acredita no aprofundamento das questões próprias da filosofia como forma de não torná-la uma disciplina específica. “É preciso evitar que a filosofia seja tratada unicamente como a reconstrução histórica de uma certa área”, defende.

Mas qual seria o resultado desse diálogo, a primeira vista tão incompreensível? Os professores entendem que a aproximação entre a filosofia e a pedagogia poderia contribuir para o desenvolvimento de ambas as ciências. O professor Hanz-Georg Flickinger, que está no Brasil há 20 anos e hoje trabalha na PUCRS, entende que há um caminho de mão dupla a ser trilhado. “A filosofia poderia contribuir para a criação de uma autoconsciência da educação em relação às suas próprias raízes históricas e, ao mesmo tempo, a educação poderia lembrar à filosofia quanto a sua forma originária de fazer parte do próprio processo educacional”, explica.

Em síntese, a filosofia deveria estar utilizando sua capacidade de reflexão sobre a condição humana na sociedade, de forma a contribuir para que essa reflexão se concretizasse em práticas pedagógicas mais emancipadoras. Na visão dos professores, a pedagogia hoje está se limitando a pensar apenas os currículos e a didática, enquanto o incentivo às experiências e à autonomia dos alunos tem sido esquecido. A aproximação entre as áreas serviria, justamente, para que fossem formados indivíduos capazes de agir autonomamente na sociedade globalizada, uma vez que ambos os campos lidam com um objetivo comum: formar seres humanos.

A Universidade de Kassel possui um convênio com a UPF desde de 2001. Assim foi viabilizada a vinda dos pesquisadores da Alemanha e será financiado o livro do seminário. Com a parceria, a organização do evento já conseguiu confirmar o nome do pesquisador alemão Wolfdietrich Schmied-Kowarzik, que estará em Passo Fundo em 2005.

Uma ponte entre a prática e o pensamento

O Extra Classe promoveu uma mesa paralela ao evento para apresentar um breve resumo do que foi debatido nos cinco dias de seminário em Passo Fundo. Para isso, reuniu os três filósofos alemães, Frank Hermenau, Heinz Eidam e Hans-Georg Flickinger.

Frank Hermenau

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Frank Hermenau

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Extra Classe – A filosofia se ressente de um diálogo mais aproximado com as outras áreas do conhecimento? Nesse sentido, em que termos pode acontecer essa aproximação entre a filosofia e a educação, e qual a importância?
Frank Hermenau – Existe uma tendência de tornar a filosofia uma área cada vez mais diferenciada. Porém, se a filosofia pudesse se encontrar em suas temáticas originárias, ela teria força suficiente para dialogar com outras áreas do saber. Não se pode fazer da filosofia uma disciplina especial, tal qual a filosofia da educação, por exemplo. Muito pelo contrário, a filosofia deveria explorar melhor as suas próprias implicações. Assim, certamente ela seria capaz de estabelecer tal diálogo com a pedagogia. Trata-se, em última instância, da necessidade de abrir o interesse das implicações filosóficas, tornando-as frutíferas para a própria prática educacional, porque assim evitaríamos tratar a filosofia unicamente como a reconstrução histórica de uma certa área.

Heins Eidam

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Heins Eidam

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Heinz Eidam – O diálogo se torna necessário a partir da manutenção de uma consciência clara das diferenças entre as várias áreas. Ao longo da história das ciências, durante muito tempo não existia essa rígida separação entre as diferentes áreas científicas. A diferenciação entre as ciências, por um lado, tem a vantagem de especificar melhor os questionamentos científicos.

Ao passo que a desvantagem consiste, sobretudo, na perda da unidade de um saber dentro do qual as questões se localizam como questões científicas. Nesse sentido, uma tarefa primordial da filosofia é elaborar suas próprias formas de questionamento para conseguir, a partir deste ponto de partida, estabelecer um diálogo com as outras áreas científicas. Para um tal diálogo, a autonomia da filosofia é muito importante, já que um diálogo só pode ser estabelecido entre áreas diferenciadas e autônomas.

Hanz-Georg Flickinger

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Hanz-Georg Flickinger

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Hanz-Georg Flickinger – É preciso lembrar a educação de suas origens dentro de um saber mais amplo que, sobretudo na tradição grega, se encontra junto a questões educacionais, questões éticas e questões da estética. Portanto, a filosofia poderia contribuir, por um lado, a uma autoconsciência da educação em relação às suas próprias raízes históricas e, ao mesmo tempo, a própria educação poderia também lembrar à filosofia quanto a sua forma originária de fazer parte do próprio processo educacional.

EC – Nesta sociedade globalizada, de privatização do setor público, da educação e da própria vida, na qual as instituições de ensino propiciam uma formação tecnicista, que debate a filosofia e a educação podem, conjuntamente, propor para que enfrentemos esse desafio?
Hermenau – Parece óbvio que uma certa razão instrumental está acompanhando o processo de globalização. Neste processo, o próprio ser humano torna-se cada vez mais meio de suas próprias máquinas. Por outro lado, a própria produção tecnológica avançada exige, necessariamente, sujeitos capazes de agir e assumir responsabilidades. Aí se encontra uma contradição interna do próprio processo de globalização. Com a filosofia, seria possível também um desenvolvimento instrumental e conceitual capaz de fazer-nos compreender essas contradições. Isso é muito importante para o campo da educação e da pedagogia, que não podem se restringir a meras questões da didática ou curriculares.
Eidam – O processo de globalização é, em alto grau, ambivalente. Um aspecto positivo, por exemplo, encontra-se no fato de nós estarmos aqui em Passo Fundo, o que sem a globalização não seria possível. Há, por outro lado, aspectos negativos. O próprio processo de tecnologização mostra-se um tanto inadequado. Eu posso mandar e-mails e faxes aqui para Passo Fundo, mas, ao chegar aqui, podemos ver que a experiência no próprio local não consegue ser substituída pelas tecnologias. Nesse sentido, é cada vez mais importante a manutenção do processo de experiência. Esta é uma das tarefas da pedagogia: guardar a capacidade de se fazer experiências.
Flickinger – Outro aspecto é o interculturalismo. Na medida em que o processo de globalização se desdobra, ocorre com uma certa naturalidade o confronto entre diferentes culturas. Confronto esse que pode causar problemas sérios. Por outro lado, estimula a ampliar horizontes, o que não significa apenas conhecer novas culturas, mas, através do conhecimento de outras culturas, olhar mais especificamente a cultura de sua própria origem. A mediação do processo de aprendizagem intercultural tem, entre seus lugares de preferência, o próprio processo educacional. Podemos fazer uma analogia com o aprendizado em sala de aula. No processo pedagógico, o encontro com diferentes opiniões torna mais preciso o nosso próprio auto-entendimento no confronto com os outros.

EC – Qual é o papel da escola e do professor? Eles ainda possuem importância?
Hermenau – Vamos tomar como ponto de partida a filosofia da educação. A partir da filosofia da educação, é possível diferenciar as possíveis máximas que deveriam orientar o próprio processo educacional. Por exemplo, é possível, enquanto educador, implantar no processo educacional as máximas que estão sendo impostas pelo Estado nas instituições da sociedade. Sob esse ponto de vista, a escola assume sobretudo a tarefa de qualificar e selecionar. Porém, para um educador verdadeiro isso é insatisfatório. Seria possível, por outro lado, escolher como máxima oposta a possibilitação de um processo da experiência da autonomia, no caso da criança. Atualmente, podemos observar dentro da pedagogia, uma tendência de questionar esse tipo de educação que toma como ponto de partida o saber do próprio educador. Hoje em dia, pelo menos no que diz respeito à escola alemã, nós podemos observar uma série de experimentos pelos quais aos próprios alunos deveria ser dado espaço suficiente para fazer da educação um processo de autoformação. Experimentos no sentido de tornar possível os alunos se auto-entenderem como sujeitos desse processo, em vez de serem usados apenas como meios.
Eidam – Há uma espécie de deterioração da possibilidade de se fazer experiências ao lado das crianças. Isso tem muito a ver com o fato de as mídias apresentarem as crianças em posições já pré-fixadas e opiniões já determinadas, como se fosse verdade. Isso, por exemplo, tem efeitos substanciais no que diz respeito à capacidade de assumir e manejar conflitos. A capacidade imaginária das crianças só pode ocupar um espaço já delimitado pelas mídias. Nesse sentido, uma das tarefas da escola é a tematização desta problemática e na discussão em comum sobre esses problemas. A meu ver, uma pedagogia emancipatória não pode, de jeito nenhum, renunciar à tematização de tais questões e à tentativa de mudança. Não se pode acostumar as crianças a seguir opiniões pré-fabricadas, pelo contrário, é preciso torná-las capazes de refletir sobre alternativas e tomar decisões próprias.
Flickinger – O processo da tecnologização do próprio processo educacional traz consigo uma ocupação do espaço de tempo por parte da escola que não deixa mais possibilidade de haver espaço de tempo suficiente para uma irritação produtiva ao lado dos alunos. Ou seja, a implementação de exigências de conseguir conhecimento ao longo de um tempo determinado já claramente prescrito por parte da administração da escola faz com que as crianças tornem-se cada vez menos dispostas a refletir produtivamente sobre o que está sendo imposto enquanto conteúdo a ser assimilado. Isso me parece também representar uma tendência bastante significativa aqui no Brasil, que a estruturação do currículo toma uma importância exagerada, porque o processo de educação se submete a uma condição externa representada pelo currículo, em vez de deixar o processo de educação crescer organicamente no convívio entre educador e aluno.

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