EDUCAÇÃO

Inclusão e Permanência

Publicado em 22 de julho de 2004

Até o final do ano, o governo pretende encaminhar ao Congresso Nacional a proposta de uma Lei Orgânica do Ensino Superior, cujo principal objetivo é ampliar o acesso das camadas médias e pobres às universidades. Atualmente, no Brasil, apenas 9% dos jovens entre 18 e 24 anos conseguem chegar ao ensino superior. Em países desenvolvidos, como o Canadá, esse percentual é de 62%. Mesmo nossos vizinhos da América do Sul registram melhor performance nesse item. Na Argentina, a porcentagem é de 39% e, na Bolívia, alcança 20%. A meta da reforma universitária é permitir que, em 2010, pelo menos 30% dos jovens na faixa etária de 18 a 24 anos estejam matriculados no ensino superior, como prevê o Plano Nacional de Educação.

A idéia é aumentar o acesso à educação superior e, ao mesmo tempo, elevar a qualidade do ensino e da pesquisa, especialmente nas universidades públicas, sucateadas nos últimos 20 anos. “Sem uma universidade qualificada, com largas portas de acesso, que tenha rigor acadêmico extraordinário, o Brasil não vai conseguir avançar. A reforma da universidade é, na verdade, um momento de construção de um novo país”, afirma o ministro Tarso Genro.

O início dos debates se deu em março de 2003, na gestão de Cristovam Buarque no MEC. A etapa final da discussão está ocorrendo agora, com a realização de cinco audiências públicas regionais. A primeira aconteceu em 23 de junho passado, em Manaus. As demais serão dias 13 (Recife) e 30 de julho (Porto Alegre), 17 (São Paulo) e 31 de agosto (Campo Grande). Na capital gaúcha, a audiência coincidirá com a realização da III edição do Fórum Mundial de Educação, de 28 a 31 de julho.

Além da comunidade acadêmica, participam entidades da sociedade civil, com representantes de empresários e de trabalhadores do campo, da indústria e do comércio, junto com CUT, UNE, entre outras. “A reforma é o momento de discutir um marco regulatório para a educação superior, debatendo temas como condições de trabalho, controle da qualidade do serviço prestado, além do cumprimento da função social da Instituição de Ensino Superior (IES)”, observa Amarildo Cenci, diretor do Sinpro/RS e membro da executiva nacional da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (Contee).

Algumas entidades se prepararam para as audiências, trazendo nas mãos propostas alternativas. É o caso da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino (Andifes), que representa 54 universidades. Ela promoveu cinco reuniões regionais, no primeiro semestre do ano, para debater a reforma universitária. “Mais do que uma reforma, a educação superior carece de um projeto”, diz a presidente da Andifes, Ana Lúcia Gazzola, reitora da Universidade Federal de Minas Gerais. Entre as metas que sugere, estão a duplicação do número de alunos da graduação e da pós-graduação, a oferta de 25 mil novas vagas em cursos noturnos e a ampliação das atividades de extensão em áreas de carência social, num prazo de quatro anos.

MEC aposta na ampliação da política de cotas

A questão é saber como quebrar o ferrolho das vias de acesso à Universidade. O MEC aposta na ampliação da política de cotas, dando prioridade aos alunos da rede pública de escolas secundárias e, entre eles, aos de etnias excluídas do sistema de educação superior. A presidente da Associação dos Docentes da Ufrgs (Adufrgs), Maria Aparecida Livi, tem dúvidas quanto à eficácia da medida. Ela lembra que, hoje, metade do corpo discente das universidades federais já é oriunda das escolas secundárias do setor público. A questão é que essa parcela de alunos dificilmente ingressa em cursos considerados “nobres”, como os da área médica, em função do custo do material didático. “O acesso é fundamental, mas precisamos garantir também a permanência na universidade”, afirma Maria Aparecida. Para conter a evasão, o MEC propõe a adoção de bolsas de trabalho e do Primeiro Emprego Acadêmico, como forma de o estudante custear os estudos.

A proposta de reforma universitária do MEC não é unanimidade. A Associação Nacional dos Docentes de Ensino Superior (Andes) acusa o governo de impor um modelo pronto e acabado. “Corremos o risco de chegar ao final da discussão e os pontos fundamentais já terem sido implementados antes”, afirma o vice-presidente José Domingues de Godoi Filho. A Associação dos Docentes da Universidade de São Paulo (Adusp), por sua vez, entende que estamos diante de “mais uma reforma inspirada pelo Fundo Monetário Internacional”. “O governo quer fazer uma reforma sem gastar dinheiro, mas o Brasil não vai sair do atraso se continuar investindo só 4% do PIB em educação”, diz o presidente Américo Kerr.

Há segmentos que, discussão do mérito à parte, entendem que a reforma é uma boa oportunidade de rever a legislação que regula o ensino superior. Um exemplo é o das universidades comunitárias. Acontece que a Constituição Federal distingue com clareza essas instituições sem fins lucrativos das universidades privadas, enquanto a lei ordinária não faz qualquer distinção. “Há mais de 30 anos, prestamos um serviço público que se soma ao das universidades federais estatais. Na realidade, nos consideramos universidades públicas não-estatais”, diz a presidente do Consórcio das Universidades Comunitárias Gaúchas (Comung), Mara Regina Rósler. Com 10 instituições, o Estado concentra quase um terço do segmento – em todo o país, são 34 universidades, com 45 campi, mais de 120 mil alunos e 8 mil professores. “Temos um caráter filantrópico que não pode ser questionado”, afirma Maria Regina.

Formação de pedagogos com duas aulas por mês

Uma das principais finalidades da reforma é recuperar as Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes) que perderam espaço nos últimos anos. Das 1.637 universidades existentes no país, 1.442 (o que representa 88%) são particulares. Nos dois mandatos de FHC (1994 a 2002), foram criados 4,5 cursos universitários por dia. No governo Lula, a média baixou pouca coisa – está em 3,4. Há dois meses, o ministro da Educação suspendeu a apreciação de novos pedidos de abertura de cursos. Mesmo assim, o MEC tem uma demanda de 600 solicitações que já estavam em tramitação.

“A expansão do setor privado registrada no período de FHC deu margem a experiências de baixa qualidade e sem controle público”, anota Amarildo Cenci, do Sinpro/RS. Um exemplo é o de uma universidade do interior de São Paulo, que forma pedagogos e artistas plásticos que freqüentam as aulas apenas dois dias por mês, quando a legislação exige 200 dias letivos ao ano, relata a diretora acadêmica das Faculdades Integradas do Oeste de Minas Gerais (Fadom), de Divinópolis. “O MEC não consegue fiscalizar quem não cumpre o mínimo dos requisitos”, afirma ela. Já as instituições públicas mal sobrevivem. Um caso gritante é o do curso de Medicina da Universidade Federal do Mato Grosso, que não tem nenhum laboratório e cujo quadro docente é formado por professores voluntários.

Reitor teme virar figura decorativa

Como garantir a manutenção das universidades públicas? E como assegurar a autonomia das instituições? Uma coisa está ligada à outra. Não há autonomia sem recursos financeiros. O MEC propõe a criação de um fundo federal, formado a partir de uma cesta de tributos já destinados à educação. Teria um percentual fixo, não-contingenciável, o que significa que estaria a salvo de guilhotinas no orçamento da União, muito comuns em momentos de crise. Neste item, a sugestão da Andifes é destinar para as universidades federais 75% dos 18% de tributos obrigatórios da União com educação, sendo 70% do montante para a manutenção básica e 5% para a expansão.
No caso das universidades privadas, o MEC quer a desoneração total de tributos, desde que, em contrapartida, as instituições apliquem os recursos correspondentes no financiamento estudantil e na concessão de bolsas de estudos. O presidente da Adusp é contra. “É inaceitável tanto quanto a compra de vagas em universidades particulares, como o governo pretende. Para os cofres públicos, pagar ou deixar de receber em troca de um serviço é a mesma coisa”, afirma Kerr.

O reitor da Universidade da Amazônia (Belém do Pará), Edson Franco, não se entusiasma com a idéia de isenção tributária. Para ele, a principal carência está mesmo no sistema público de educação: “Precisa é aumentar as verbas para as universidades públicas, que andam à míngua.” Franco ocupou a presidência da Associação Brasileira de Mantenedores do Ensino Superior (ABMF) durante 12 anos, deixando o cargo em 15 de junho passado. Para ele, as propostas de democratização da gestão das universidades precisam ser revistas. O MEC sugere a eleição direta do reitor das universidades públicas e de, pelo menos, um pró-reitor das particulares. “Nosso reitor vai fazer o quê? Será uma figura decorativa, como a rainha da Inglaterra, enquanto o primeiro-ministro dirige a academia”, diz Franco.

Militares fizeram a reforma universitária em 1968

O tema da reforma universitária está em pauta há mais de meio século. Em 1950, foi motivo de uma greve de três meses dos alunos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). O jornalista Flávio Tavares, autor de O dia em que Getúlio matou Allende (Record), conta que, como representante dos grevistas, esteve pessoalmente com Getúlio Vargas. “Fala-se muito em reforma universitária e quero saber o que pensam os estudantes, mas nunca recebi nada objetivo, ouço apenas frases. O que os estudantes lá no Rio Grande tem a propor?”, perguntou o presidente. Tavares entregou-lhe um rascunho do “ambicioso projeto”, enquanto recitava as idéias centrais da reforma que tinha como principal item a abolição da cátedra vitalícia. Getúlio manuseou a papelada, voltando sempre à página anterior para não perder a seqüência, aparentando interesse pelo assunto.

Contudo, a primeira – e única, até agora – reforma universitária implantada no país levou mais 28 anos para sair do papel. Foi assinada em 1968, no governo de Costa e Silva, por um ministro interino, Favorino Bastos Mércio, que ficou dois anos no cargo, apesar da interinidade (entre as gestões de Tarso Dutra e Jarbas Passarinho no MEC). Embora tenha contemplado reivindicações históricas, como a supressão do regime de cátedra, a reforma da ditadura estabeleceu o controle político das universidades, que eram núcleos de contestação, através da restrição da liberdade de manifestação e expressão de alunos, professores e funcionários. Os tempos mudaram e as liberdades civis foram restituídas. Mas, no que diz respeito à estrutura acadêmica, à organização de currículos e à gestão administrativa das universidades, a reforma de 1968 vigora até os dias atuais. Não está na hora de mudar?

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