OPINIÃO

E na bateria…

Por Verissimo / Publicado em 15 de novembro de 2004

Fernando Sabino foi um dos amigos que herdei do meu pai.

Tínhamos uma coisa em comum: ele também, se lhe dessem a escolha a tempo, preferiria ter sido músico de jazz. Chegamos a nos apresentar juntos uma vez. A Traditional Jazz Band de São Paulo teve a temeridade de nos convidar para tocar com eles, Sabino na bateria e eu no sax, e fomos maravilhosos. Pelo menos na nossa apreciação mútua.

Outra vez, assisti a um golpe de teatro do Sabino. Era uma das primeiras edições da incrível Jornada Literária de Passo Fundo, organizada pela ainda mais incrível Tania Rösing, que contara com a ajuda do Josué Guimarães para trazer do centro do país para o interiorzão do Rio Grande do Sul um respeitável time literário: Sabino, Millôr, Otto Lara, Orígenes Lessa. Os quatro, mais eu e o Josué, sentados atrás de uma longa mesa, enfrentando um ginásio cheio de professoras de português. Quando foi a sua vez de falar, o Sabino declarou que não podia continuar ali, que ali não era o seu lugar, que estava se sentindo desconfortável e inconformado, e que o desculpassem, mas ia embora. E levantou-se.

Agitação na platéia. O que teria havido? Qual era o problema? O Sabino só foi embora da sua cadeira. Para alívio e depois delírio das professoras, deu a volta na mesa e levou o microfone para a frente do palco, seu lugar, onde começou a falar com o desembaraço e o humor que – junto com a simpatia e o físico de ex-nadador – faziam dele o escritor brasileiro com mais jeito para a celebridade, até o seu recolhimento voluntário. De certa forma, ele inaugurou o que a Jornada de Passo Fundo viria a ser depois, um show de literatura. Foi a sua primeira estrela.

Nosso relacionamento era ideal: eu falava pouco e ele não ouvia. Eu tinha lido O Encontro Marcado antes de conhecê-lo. Lido e relido. Não entendia muito bem a religiosidade do Sabino, dele e dos outros mineiros, e só mais tarde me dei conta de que um livro como O Encontro Marcado seria impossível sem as convicções e as dúvidas religiosas do autor, sem as questões do pecado e da redenção pessoal camufladas como a escolha ética de uma geração. Pois, para religiosos ou não, foi o livro de uma geração.

Na improvável hipótese do Sabino e do Jacques Derrida terem se cruzado num engarrafamento de trânsito depois da morte, esse pode ter sido um dos seus assuntos: a permanência do imperativo ético mesmo quando nada o sustenta, nem a fé religiosa, no caso do Sabino, nem todos os textos desconstruídos até a insignificância moral pelo Derrida. Mas desconfio que os dois não se entenderiam. Se existiu um escritor que nunca quis dizer outra coisa nos seus textos senão o que dizia magistralmente, esse foi o Fernando Sabino.

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