GERAL

O meio ambiente precisa da globalização

José Fonseca / Publicado em 6 de maio de 2005

Michel Prieur, um dos maiores especialistas do mundo em direito ambiental e rejeitos radiativos, dirige a Faculdade de Direito e Ciências Econômicas de Limoges e o Centro de Pesquisa Interdisciplinar de Direito Ambiental e Planejamento Urbano (CRIDEAU), na França. Além de clássicos como O Direito do Meio Ambiente, a obra de Michel Prieur inclui estudos de riscos industriais e naturais e gestão urbana, estudos de impacto e proteção da natureza, pesquisa jurídica em meio ambiente, poluições transfronteiras e dejetos radiativos, noções de patrimônio comum, paisagem no direito comparado e contribuições seminais para obras coletivas e colóquios internacionais. Em Porto Alegre, na véspera de sua conferência de abertura do II Congresso Internacional Transdisciplinar Ambiente e Direito (Citad, PUCRS, 19-21 abril), sobre Direito das Águas e a Gestão Ambiental de Zonas Costeiras, Michel Prieur conversou com o Extra Classe.

Extra Classe – O meio ambiente não tem fronteiras e isso exige novas regras do direito internacional. O senhor veio a Porto Alegre para falar sobre o Direito das Águas. O que está em jogo neste campo para as gerações futuras?
Michel Prieur
– Um dos aspectos positivos é que o meio ambiente precisa da globalização. Ele pede uma visão global, não a visão meramente nacional que apenas permite resolver alguns problemas. Há problemas globais como a mudança climática, a poluição do mar e mesmo a poluição dos rios. A poluição dos rios vai para o mar e contamina o ambiente marinho, que é um patrimônio comum de todos os países. Somos obrigados a organizar a prevenção e a luta contra a poluição em escala internacional, por isso temos diversos níveis de cooperação internacional sobre o meio ambiente. Esta cooperação começou em 1972, o que não é muito na escala da humanidade, mas em 30 anos foram assinadas mais de 200 convenções internacionais sobre o meio ambiente, abordando todos os problemas que exigem uma ação comum.

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Foto: Tânia Meinerz

Foto: Tânia Meinerz

EC – Nesse contexto de globalização da questão ambiental, qual é o papel do Estado e qual é a importância do território?
Prieur – O Estado torna-se um ator como qualquer outro. Ele não tem mais o monopólio da decisão, é uma região do mundo e tem de fazer compromissos, submeter-se a obrigações. Tudo isso abala os princípios tradicionais de soberania estatal – da independência estrita e rigorosa em que cada um é dono de seu nariz e desprovido do direito de olhar o que se passa na casa do vizinho. Isso não é mais possível no campo ambiental e nem no âmbito da cultura. Com a comunicação das idéias e com a internet não existem mais lugares isolados. Esta comunicação mundial facilita o trabalho coletivo, mas afeta o Estado. Obriga-o a mudar sua maneira de pensar e agir.

EC – O que é o Estado?
Prieur – O Estado são os políticos. Mas os cidadãos também são o Estado. Em muitos países, é preciso encontrar um verdadeiro entendimento entre os cidadãos e os políticos para que todos se adaptem às novas relações entre as diversas regiões do mundo.

EC – Segundo a Declaração do Rio de Janeiro (1992), os Estados têm o direito soberano de explorar seus próprios recursos naturais de acordo com sua política ambiental e de desenvolvimento. Como defender este princípio de soberania diante de questões planetárias, como a devastação da Floresta Amazônica?
Prieur – A Declaração do Rio é muito importante do ponto de vista político, mas não tem valor jurídico. Quando ela afirma que os Estados são sempre senhores de seus recursos é para exprimir alguma forma de compromisso, para dizer que há sempre um elemento de soberania, desde que não haja impactos graves sobre o meio ambiente. Esses recursos são um patrimônio do Estado, mas também da coletividade e da humanidade. Isso nos leva ao problema permanente da Amazônia. É claro, o direito nacional é que organiza e deve reagir contra a destruição dos recursos da Amazônia, mas o Brasil não pode agir como se a Amazônia não estivesse no mundo. Ela está no Brasil, mas está também no mundo. Sua função na regulagem climática interessa ao conjunto da comunidade internacional. A questão é alcançar compromissos para que, juntos, os Estados organizem e regulem a utilização dos territórios importantes para a coletividade. Isso vale para as florestas tropicais da África, as zonas úmidas da Europa e assim por diante.

EC – O que está sendo decidido em comum acordo pelos Estados?
Prieur – Justamente neste momento há um projeto de convenção mundial sobre as florestas. Chegou-se à conclusão de que a convenção sobre a diversidade biológica não resolve o problema das florestas e é preciso ter um instrumento jurídico específico, em nível mundial, para estabelecer diretrizes, orientações, métodos e monitoramentos que reforcem a consciência de que o patrimônio ecológico é um conjunto de bens comuns.

EC – A Constituição Brasileira de 1988 estabelece em seu artigo 255 que todos têm o direito a um ambiente ecologicamente equilibrado. Qual é o efeito desse tipo de legislação?
Prieur – O reconhecimento constitucional do meio ambiente pela Constituição Brasileira foi um dos primeiros e tem, antes de tudo, um caráter simbólico. Exprime uma hierarquia de valores e coloca o ambiente como um valor tão importante quanto os Direitos Humanos, por exemplo. Reconhece que o ambiente não é um problema puramente técnico, material, científico, e protege um valor comum da sociedade. Mas, agora, além do valor simbólico, esse reconhecimento consagrado na Constituição tem um alcance jurídico. Evidentemente, a conseqüência jurídica depende do sistema jurídico brasileiro, do poder dos tribunais de interpretar e aplicar a constituição.

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Foto: Tânia Meinerz

Foto: Tânia Meinerz

EC – Isso pode ser um poder de fato?
Prieur
– Sim, creio até que já houve jurisprudência no Brasil que interprete essas disposições de maneira a dar-lhes uma força e um valor. Nesse mesmo espírito, eu gostaria de observar, a França pôs há três semanas o meio ambiente na sua constituição. Isso não existia porque a Constituição Francesa data de 1958 e naquela época ninguém falava de meio ambiente. Somente agora, em 2005, com muito atraso, uma lei constitucional introduziu a chamada Carta do Ambiente, que reconhece também como um dos direitos humanos o direito a um ambiente equilibrado e favorável à saúde. Ela proclama ainda o dever de todas as pessoas de proteger o meio ambiente, logo uma obrigação jurídica, e enuncia certos princípios de direito ambiental. Agora temos também na Constituição Francesa uma expressão simbólica de importância específica na escala dos Direitos Humanos que ajudará a melhor equilibrar os interesses econômicos e os interesses ecológicos. Ela vai aumentar o valor dos interesses ecológicos em relação aos interesses econômicos e terá efeitos jurídicos nos tribunais franceses encarregados de interpretar e aplicar a constituição.

EC – É uma tendência que se alastra?
Prieur
– Em muitos países houve esse reconhecimento, ao mesmo tempo formal e simbólico, do ambiente como valor prioritário ou pelo menos tão importante quanto os valores clássicos. Isso é muito encorajador e deve-se à pressão das organizações, das grandes associações internacionais e da opinião pública internacional sobre o Estado. Pode-se dizer que é o resultado da ação dos cidadãos do mundo, co-cidadãos ou cidadãos ecológicos. Cada um é co-cidadão, pois é responsável por sua vida e pela vida que o rodeia, em seu ambiente.

EC – Seria possível apontar hoje um país ou grupo de países mais avançado em termos de legislação ambiental?
Prieur
– É preciso distinguir o direito entre aquilo que está escrito e sua aplicação. Hoje todos os países têm direito ambiental. Os Estados Unidos foram o primeiro país a adotar leis ambientais. A primeira delas é de 1969, sobre os impactos no meio ambiente. Agora todos os países têm essas leis, e os EUA estão mais atrasados dos que os outros. Logo, há diferenças, há evolução, mas, globalmente, estamos atravessando um período de verificação da vontade política real dos governos e dos atores econômicos. Levar em consideração o meio ambiente é hoje uma obrigação jurídica que se encontra em todas as constituições, em todos os países, em todas as leis.

EC – Qual é o próximo passo?
Prieur
– É hora da execução, da aplicação, do controle, do monitoramento. As coisas ficam mais complicadas quando se passa da teoria para a realidade. Em todos os países existem oposições, reações, disputas, mas, globalmente, atingimos um nível que não podíamos imaginar trinta anos atrás. É claro que ainda resta muito a ser feito em matéria de dejetos, poluição, etc., mas houve enorme progresso. A área desertificada protegida, por exemplo, com um estatuto jurídico de proteção cresceu seis ou sete por cento em todo o mundo. Outras coisas também evoluem, mas lentamente, pois ainda não há bastante pressão. Além disso, hoje todos os motores do desenvolvimento das sociedades são empresas e nem todas elas integraram a dimensão ambiental nas suas responsabilidades social e coletiva. Em alguns países, as empresas já são obrigadas a apresentar, junto com o balanço financeiro, o balanço ecológico e o balanço social – os três pilares do desenvolvimento sustentável – e torná-los públicos. Existe a vontade de tornar transparente a ação dos atores econômicos no campo ambiental e isso é importante. A grande empresa que apresenta seu balanço ambiental leva outras a competir pela preferência do consumidor, num movimento que as empurra na direção do desenvolvimento sustentável.

EC – O 15º princípio da Declaração do Rio, o princípio da precaução, tenta proteger a sociedade dos avanços tecnológicos irresponsáveis e da incerteza científica. No Brasil, a introdução ilegal da soja transgênica da Monsanto, feita com a cumplicidade do próprio governo, e o projeto de transposição das águas do Rio São Francisco, para citar apenas dois exemplos, ignoram o princípio da precaução. Além disso, qualquer direito à informação fica anulado pelo peso milionário das campanhas publicitárias.
Como podem o direito e a sociedade tratar essas questões?
Prieur
– Nesse caso, eu creio no papel e no poder dos cidadãos organizados e consumidores. Se houve resistência aos organismos geneticamente modificados (OGMs) na Europa, por exemplo, ela veio, em grande parte, dos consumidores. Isso é importante, pois de certa forma limitou a ação da Monsanto na Europa. Infelizmente, houve uma decisão da Comunidade Européia que permitiu a introdução dos OGMs no continente, mas de forma controlada. Para esse tipo de ameaça, ante o poderio econômico do grupo em questão, a reação no momento só pode vir da opinião pública. Depois, é preciso que venha também do Estado. Mas os Estados são dominados pelas multinacionais e não resistem, como o caso do Brasil infelizmente demonstrou. A solução vem da opinião da população e o papel da imprensa é muito importante. Ela deve explicar, fazer debates, discutir os contraditórios e também mobilizar os cientistas. O princípio da precaução é deslanchado quando existe uma incerteza científica. Então, deve-se poder demonstrar que existe uma dúvida. É preciso que cientistas digam: não estou de acordo.

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Foto: Tânia Meinerz

Foto: Tânia Meinerz

EC – E os cientistas também não são reféns desse poderio?
Prieur – Sim, muitas vezes os próprios cientistas são prisioneiros do sistema, ligados aos laboratórios, dependentes de contratos de pesquisa. É preciso mobilizar os cidadãos e a comunidade científica, interpelar os cientistas, que devem ser reintroduzidos na sociedade, já que o mundo científico não é um mundo separado. Os cientistas servem a sociedade e devem também participar do debate público. Há mecanismos jurídicos na Europa, como a Convenção Aarhus de 1998 (sobre “Acesso à Informação, Participação Pública em Tomadas de Decisão e Acesso à Justiça em Assuntos Ambientais”, inclusive no campo dos OGMs), que deveriam ser estendidos à América do Sul. É apenas um instrumento que reforça o direito à informação e à participação, mas é a mais importante convenção internacional sobre meio ambiente dos últimos anos, porque obriga os Estados, as coletividades locais e os órgãos públicos em geral a serem transparentes na preparação e na implementação de decisões.

EC – Como é possível conciliar as decisões unilaterais de um país, nocivas ao meio ambiente, com as regras ambientais internacionais?
Prieur – Depende. Se há tratado internacional ratificado, o Estado é responsável por violar o direito internacional. Mas, ir além de uma condenação moral ou constatação simbólica de que não se respeitou a obrigação internacional implica a existência de uma justiça internacional. Essa justiça existe na Corte Internacional de Justiça de Haia, para as relações políticas em geral; existe na Corte Penal Internacional, para os crimes contra a humanidade e os genocídios; mas não existe ainda uma corte internacional para os crimes contra o meio ambiente.

EC – O senhor vê essa corte num futuro próximo?
Prieur – Sim, se for otimista. Há um projeto no mesmo sentido, que talvez possa se desenvolver paralelamente, de se criar uma organização mundial do meio ambiente com o mesmo poder da Organização Mundial do Comércio. Ela defenderia os interesses ambientais face aos problemas do comércio internacional. Isso implica transformar o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente numa organização internacional do meio ambiente. Então, há duas pistas para o futuro, uma corte ambiental internacional e uma organização mundial do meio ambiente.

EC – Qual é o papel dos professores no contexto da crise ambiental?
Prieur – Os professores têm uma grande responsabilidade social e coletiva justamente no que concerne à educação ambiental. Não falo de um ensino específico das ciências da ecologia, mas de um ensinamento que acompanhe todos os outros ensinamentos e desenvolva o aspecto ambiental de cada atividade.

EC – Quais são os maiores problemas ambientais que nos aguardam?
Prieur – Vou citar dois grandes problemas não resolvidos. Primeiro, os dejetos radiativos. Uma política nuclear de 40 anos, em muitos países, inclusive no Brasil, acumulou dejetos de longa vida que agirão sobre a saúde e o meio ambiente por milhões de anos. A consciência dos tomadores de decisão permitiu a abertura de centrais nucleares sem que se possa tratar ou eliminar cientificamente os dejetos radiativos. Isso, infelizmente, será dado de presente às gerações futuras. O segundo problema foi levantado há três semanas num relatório científico, nas Nações Unidas. Ao que parece, não se tinha avaliado bem a degradação da biodiversidade mundial e o desaparecimento das espécies. Aos poucos, isso afetará as relações do homem com a natureza, o progresso da ciência, a pesquisa de novos medicamentos, etc., resultando em uma crise tão grave quanto a mudança climática.

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