GERAL

O voto, por favor!

Liége Copstein / Publicado em 6 de maio de 2005

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Fotos:Tânia Meinerz

Pelos gabinetes da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, vigiam-se os pensamentos e as palavras. Vigiam-se também os atos, mas muito pouco os hábitos, pois é da natureza dos hábitos que sejam pouco vigiados. Um dos hábitos que persiste, principalmente no Terceiro Mundo, diz respeito ao ritual do beija-mão, aquele em que o cidadão “humilde”, ávido de um serviço ou respaldo que o Estado lhe deve e não lhe fornece, dirige-se diretamente ao espaço sagrado do gabinete, onde julga que estão todas as possibilidades: o emprego, um lote de tijolos, a cadeira de rodas e a dentadura. Em retribuição, o voto, essa migalha, tão fácil de conceder. O assistencialismo é uma prática medieval que sobrevive até os dias de  hoje  e funciona, na prática, como uma campanha eleitoral permanente com uma relação custo-benefício comprovada. Os deputados que utilizam ou utilizaram essa ferramenta política não casualmente são ou foram também os mais votados nos pleitos em que participaram. Muito embora não se admita, trocam-se votos por favores. Vários políticos já construíram carreiras sólidas utilizando-se desse expediente, passando o legado aos seus correliginários, que por sua vez, deixarão de herança aos seus sucessores.

O parlamentar moderno sabe que tal prática não é saudável nem própria da democracia. É uma deformação. Assistencialismo, essa palavra o ofende. Por outro lado, convive diariamente com esse mar de mãos estendidas. É o caso do homem pobre do interior, que quando doente é obrigado a procurar um centro maior. Sozinho num lugar estranho, ao temor da dor, muitas vezes da morte, somam-se a solidão, a fome, a humilhação.

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Foto: Tânia Meinerz

Muitos deputados estaduais gaúchos, de diversos partidos e ideologias, há mais de uma década mantêm albergues em Porto Alegre e em outras cidades estratégicas, que acolhem e encaminham essas pessoas. O fato de que entre eles sejam também os campeões de votações do parlamento gaúcho não é, segundo eles próprios, uma simples coincidência, porém não aceitam o rótulo de populistas.

Tomemos o exemplo do deputado estadual João Osório, do PMDB. O mais votado de seu partido nas três últimas eleições, tendo recebido quase 70 mil votos em 2002. Conta a biografia oficial que “seu sonho (de criar um albergue) se fez realidade em 1995, no dia de seu aniversário, com recursos próprios e auxílio de funcionários”. Ainda: “O albergue Casa Maria da Conceição levou o nome de sua mãe, falecida por falta de atendimento médico”. Nomeado para o Tribunal de Contas do Estado, Osório abdicou do sonho, passando a Casa a outras mãos. Primeiro foi o jovem deputado Márcio Biolchi, 26 anos, 36 mil votos. Fontes de gabinete afirmam que Biolchi prometeu em campanha a criação do albergue. Mas acabou preferindo algo que tivesse sua marca desde o início: hoje mantém a Casa de Apoio à Saúde. Com a saída de Biolchi, três outros deputados assumiram a Casa Maria da Conceição: Edson Brum, Fernando Záchia e Mendes Ribeiro Filho (deputado federal), PMDB.

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Foto: Tânia Meinerz

Todos os albergues citados nesta reportagem, com capacidades que variam de 35 a 140 pessoas, oferecem basicamente o mesmo tipo de auxílio: alojamentos coletivos e transporte rodoviária/hospital/pousada. Associações ou fundações, seus recursos são doações de particulares, principalmente dos próprios deputados, garantem eles. E nada é pedido em troca. Muito menos votos. Mas eles vêm, de qualquer forma.

 

Os legisladores benemerentes

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Foto: Tânia Meinerz

“ Não sou hipócrita, sei que isso me traz votos. Mas eu faria mesmo que não trouxesse um sequer”, afirma o deputado Giovani Cherini, PDT, fervoroso admirador de Leonel Brizola. Cherini criou as Casas Solidárias em Porto Alegre, Santa Maria e Passo Fundo. Defensor da ecologia e das terapias alternativas – como complemento das tradicionais, ressalva –, ele pratica semanalmente em suas casas as Rodas de Cura, sessões coletivas que incluem princípios do xamanismo, reiki (cura pela imposição das mãos) e outras formas de tratamento da escola holística. Nelas, o deputado ou um assessor próximo convida os participantes, em círculo à sua volta, a dizer orações e mensagens de esperança. Cherini conta que tudo é mantido por ele. “A primeira geladeira da pousada eu tirei da minha casa.”

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Foto: Tânia Meinerz

Sobre os recursos financeiros para manutenção da Casa, o deputado diz serem reduzidos por não haver despesas com pessoal, pois os funcionários são CCs do seu próprio gabinete. Além disso, apesar de não oferecer alimentação aos seus hóspedes-eleitores, costuma disponibilizar os alimentos não-perecíveis que ele próprio recebe em troca de palestras que concede no interior.

Já o deputado Iradir Pietroski, PTB, atual presidente da Assembléia, não quis falar ao Extra Classe nas várias tentativas de entrevista, alegando outros compromissos. Dono de albergues em Porto Alegre e Passo Fundo desde 1993, ele já chegou a afirmar que uma das suas maiores conquistas foi livrar-se do carimbo de clientelista e assistencialista. A declaração foi feita em agosto de 2003, quando rejeitou o Projeto de Resolução 10/03, do deputado Sérgio Stasinski, PT, que tratava da regulamentação da concessão de auxílios e subvenções sociais previstos em dotação orçamentária da Assembléia Legislativa. “Votarei contra esta proposta que nos retira o direito de decidir sobre a aplicação dos recursos previstos em lei”, disse na época.

E há ainda o recordista de eleitores entre os deputados gaúchos. Vilson Covatti, PP, mais de 94 mil votos em 2002. As Pousadas Covatti, em Porto Alegre, Passo Fundo e Ijuí, teriam surgido porque o deputado é devoto de Nossa Senhora Aparecida, a quem fez promessa depois do acidente que o deixou 72 dias na UTI e um ano em cadeira de rodas. Ele criou em 94 a Fundação Nossa Senhora Aparecida, instituição a que pertencem as Pousadas, e afirma que todas as suas contas são, como é de lei, disponibilizadas ao Ministério Público. “Fazer o bem sem olhar a quem, esse é o meu lema”, salienta Covatti, que avisa: “Se alguém vier me pedir alguma vantagem aqui no gabinete, eu não atendo. Não sou assistencialista”.

Todos os deputados reafirmam a imensa gratificação pessoal que sentem com seus projetos benemerentes. Ainda assim, o tema albergues causa desconforto, sempre associado a interesses eleitoreiros. O troca-troca e partilha de albergues entre correligionários é visto com ironia por outros parlamentares, que questionam tanta sintonia no altruísmo. Já surgiram denúncias, não comprovadas, de que deputados estariam burlando filas de marcação de consultas do SUS para privilegiar seus albergados. Na época, Sanchotene Felice, PSDB, afirmou: “São denúncias irresponsáveis contra aqueles que evitam que as pessoas morram nas filas de espera”.

As misérias de cada hóspede-eleitor

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Foto:Tânia Meinerz

Alguns albergues se chamam casa, outros abrigo, outros pousada. Mas todos têm algo em comum. Mate o dia inteiro, passando de mão em mão. Regras para todos: não se fuma, não se bebe, nem se namora. Às 22 horas, silêncio. Todos os hóspedes-eleitores têm beliches, de cobertas baratas e bem limpinhas dobradas iguais. Na sala comum de estofados gastos se assiste à TV, sempre à novela. E em todos, pequenos oratórios improvisados, cujos santos de devoção variam. Às imagens de Nossa Senhora Aparecida, Santo Antônio ou Maria da Conceição, cada hóspede acrescenta um santinho, uma oração, um bibelô de R$ 1,99.

Não é a casa da gente, mas também não é uma casa de ninguém, como os hotéis. Nas estantes, fotos de pessoas reais, bebês, grupos alegres. Há também fotos dos deputados doadores, sozinhos e sorridentes em pôsteres e adesivos. Quem vive lá, para cuidar e organizar, não são os deputados, mas pessoas de sua confiança, gente muito especial.

Como Irena, 52, uma morena bonita que mora e trabalha na Pousada Covatti. Auxiliar de enfermagem, é uma pérola de eficiência que o deputado encontrou depois de muito procurar. Irena gosta de gente e do que faz, canta músicas gauchescas que ela mesma compõe e declama sem inibições seu obituário, que ela própria escreveu. Já escolheu também seu ataúde e túmulo. Parecem precauções obsessivas, mas a morte muitas vezes entra em seu dia-a-dia. A doença que predomina entre os hóspedes é o câncer. “Se acontece com um, os outros ficam desesperados. Quando ligam do hospital, sou eu que aviso o acompanhante e ajudo nas providências.”

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Foto: Tânia Meinerz

Outro que ama seu trabalho é Mario de Oliveira, 54, há nove na Casa Solidária de Porto Alegre, do deputado Cherini. Antes ele era cabeleireiro em uma badalada estética da cidade. “Eu lidava com a beleza, hoje lido com a doença. E é muito mais gratificante.” Ali, os três irmãos Perondi, naturais de Marema, em Santa Catarina, encontraram abrigo e simpatia enquanto se revezam nos cuidados com a mãe, internada numa UTI. “Ela nos deu tudo, agora é a vez de devolver”, afirma Agostinho Perondi, que veio do Mato Grosso, onde vive há 23 anos, deixando família e trabalho. Poucos fariam isso, ainda mais que em Marema a estiagem secou as modestas lavouras dos Perondi. Eles chegaram à Casa por sugestão do amigo Neri Chitolina. Neri tem sua própria odisséia, e cicatrizes para prová-la. Quatro meses depois de uma intoxicação coletiva no refeitório do frigorífico em que trabalhava, em Chapecó, começou a sofrer de infecções no sistema digestivo que lhe custaram anos de cirurgias e internações em Porto Alegre. Os médicos disseram que era cirrose. Ele acha que foi a comida estragada. Tanto viveu e sofreu por aqui, que Porto Alegre virou seu lar.

Enquanto isso, na Casa Maria da Conceição, instituição atualmente mantida em parceria por três deputados, a voluntária Jô de Oliveira, que chegou há quatro meses e já é amada por todos, causa comoção ameaçando ir embora. “Só pra implicar”, porque adora estar ali. Entre os mais antigos, João da Luz, ex-pedreiro, de São Luiz Gonzaga. Perdeu as duas pernas num acidente de trem. Cadeira de rodas, já teve cinco. A última, ganhou de uma vizinha. Sabe que tem gente que se nega a ajudá-lo quando precisa subir uma calçada? “Dizem que estão com pressa.” Nesse dia, é o cozinheiro: ensopado de aipim no cardápio.

José Marino Vargas, 61 anos – “pintor e construtor, gosto muito de rebocar também”–, tem uma sinusite crônica que comprometeu seu olho direito. Por medo de tomar friagem, usa um gorro de lã com um boné por cima. “Tem dia que ponho três chapéus.”

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Foto: Tânia Meinerz

Brincando na sala está Amanda, 6 anos. Ela operou um tumor na cabeça; agora faz quimioterapia e radioterapia. E se distrai pintando as unhas do pé com esmalte nacarado e estrelinhas. Felipe, dez meses, brinca com um pequeno objeto. É uma prótese ocular, que ele aprendeu a tirar da cavidade do olho. “Tenho que cuidar para ele não colocar na boquinha”, reclama a mãe, Sandra de Souza. O bebê sofre de retinoblastoma, um tipo de câncer que afeta os globos oculares. Sandra, que é adventista, está rezando muito, pois apareceram dois cistos no outro olhinho. “Se Deus quiser, ele vai ficar com esse olhinho, para se defender, para estudar.”

Nessa casa, certas palavras, a “daquela doença”, custam a ser pronunciadas. Eloci Oliveira, porém, não usa eufemismos. “Eu e meu filho somos HIV positivo.” Ela veio de São Francisco de Paula e dormiu na rodoviária até saber da Casa. Mas não veio só pelo tratamento. O marido, também HIV positivo, está preso em Porto Alegre. Mesmo assim, ela quer um lar, uma família. Escreve uma carta para ele, Sebastião. A carta diz: “Você precisa de mim e eu de você. Preciso de suas palavras de conforto e carinho. Vamos criar nosso filho, os dois juntos. Cuidar da casa, do piá e um do outro até morrer. Sem raiva, sem remorso, sem estupidez”. Nos albergues, as pessoas sonham como todas as outras.

Política feudal em pleno século XXI

Segundo o filósofo, ensaísta e professor Ricardo Timm de Souza, da PUCRS, autor de Ética como fundamento – uma introdução à ética contemporânea, o termo “política” deriva do grego “pólis”, que designa uma comunidade de homens livres e iguais. “Portanto”, afirma ele, “temos uma indicação muito clara de que este tema não se refere ao favorecimento de algumas pessoas ou grupos…”. No entanto, o assistencialismo que permeia a prática política brasileira, de conotações feudais, contraria essa proposição de igualdade. Ele cria duas categorias de homens: aquele que tem o poder, e barganha com isso, e aquele que solicita seus favores. Observa o autor do livro citado que: “Viver na cidade e não viver eticamente significa aquilo que temos visto a cada dia nas grandes cidades, bem como na situação micropolítica e macropolítica do mundo. Porque se pensou que se podiam estabelecer, cientificamente, estruturas políticas que, por alguma espécie de geração espontânea, dessem lugar ‘naturalmente’ a relações éticas necessárias, é que vivemos os atuais dilemas (como exemplos contundentes, a violência e a corrupção)…”. Para Timm, relações desequilibradas não podem ser corrigidas por paliativos; a sociedade deve ser “refundada” sobre bases humanas, e não sobre bases procedimentais que oscilam conforme a capacidade de negociação ou a força de uma das dimensões disputantes. Esse pressuposto, evidentemente, não exclui nenhum cidadão do exercício da participação política e da responsabilidade social. Ainda segundo o autor “é claramente perceptível que o exercício da responsabilidade social de todos e de cada um se constitui na possibilidade de concretização de uma sociedade onde as tensões causadas pela injustiça estrutural possam dar lugar à construção de um futuro socioecológico viável”.
“No entanto, o assistencialismo que permeia a prática política brasileira, de conotações feudais, contraria essa proposição de igualdade. Ele cria duas categorias de homens: aquele que tem o poder, e barganha com isso, e aquele que solicita seus favores.”

Ricardo Timm de Souza
Filósofo, ensaísta e professor da PUCRS

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