GERAL

A necessidade de servir ao outro

Jéferson Assumção / Publicado em 5 de junho de 2005

Extra Classe – Fale um pouco sobre o início de sua vida com a literatura… Como e quando o senhor começou a escrever?
Augusto Roa Bastos
– Comecei a escrever quando tinha 11 ou 12 anos. Venho de uma família humilde, mas por uma situação fortuita estava em um colégio privado, o mais prestigioso de Assunção naquele tempo. Eu tinha um tio, um tal senhor Roa, que havia ajudado uns padres a instalarem-se no Paraguai, e estes, que dirigiam o Colégio San José, em retribuição, deram bolsas de estudos aos sobrinhos do senhor Roa, com vagas no colégio para terminar seus estudos. Eu fui um dos bolsistas de San José, por obra e graça de meu tio. E como se pode imaginar, a maioria de meus companheiros era de classe alta. Alguns, muito bagunceiros. E cada vez que cometiam uma infração, os curas impunham a eles, como penitência, escrever uma composição sobre algum tema. Meu companheiro de banco era um desses e tinha o costume de levar uns queijinhos para a sala de aula, que desprendiam um delicioso aroma no meio da manhã quando meu estômago pedia, a gritos, alguma coisa. E como era muito indisciplinado, em duas ou três ocasiões eu sentia pena dele e me oferecia para escrever em troca de um queijinho por página. Geralmente eram variações sobre leituras que nos proporcionavam na sala.

EC – O senhor fala dessa sua situação particular, em termos de restrição econômica… A situação econômica dos países latino-americanos afeta o trabalho do escritor, nesta parte do planeta?
Roa Bastos
– A crise econômica afeta tudo. O trabalho literário, porque dificulta a publicação e, sem o editor, o autor permanece escondido. Isso se vê aqui (no Paraguai). Há muita gente que não tem possibilidades de ver seu livro na rua. Além disso, o trabalho intelectual está muito desvalorizado. Os jornais não pagam as colaborações aos escritores, por exemplo. Então, tudo se torna amador, o que é uma forma de achatamento que não estimula o crescimento. E tudo é um grande problema: o livro custa caro no Paraguai, as pessoas não podem conseguir um livro facilmente, há poucas bibliotecas públicas, isso desanima o gosto pela leitura, e os poucos que tratamos de reverter a situação nos encontramos como Dom Quixote, lutando contra os moinhos, o vento, o caminho e tudo mais. Por outra parte, o Paraguai vem diretamente de uma cultura oral. Ler já é outra dimensão, e escrever nem te conto! Custa muito às pessoas expressarem-se pela escrita ou receber uma mensagem através de um longo escrito.

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Foto: Notimex

Foto: Notimex

EC – O senhor tem uma história muito próxima à história do Paraguai. Participou da Revolução de 1928 e trabalhou como voluntário na Guerra do Chaco (1932-1935). O que representa para o senhor toda essa proximidade com fatos importantes para o seu país?
Roa Bastos
– Alistei-me como voluntário na Guerra do Chaco, um pouco atraído pela lenda de ouro do herói que volta vitorioso e todo o fundo épico que têm as guerras e batalhas. No entanto, não me deram espadas nem fuzis. Deixaram-me na retaguarda a cuidar de aspectos mais prosaicos que a luta armada. Servi na enfermaria, outras vezes ajudávamos a enterrar os cadáveres; enfim, essas tarefas de limpeza que necessariamente alguém tem que fazer em um exército. Vi muita dor, entre os feridos e entre os que feriam. Nenhuma guerra ensina nada de bom, mas resgato algo de toda essa dolorosa experiência coletiva: aprendi a valorizar a coragem dos paraguaios e, além disso, observei que o paraguaio, nos momentos limites, é solidário como ninguém. Alguns dos feridos se privavam de tomar água (o Chaco é muito árido e seco) para deixar que seu vizinho que estava delirando de febre em uma cama ao lado pudesse tomar esse jarro de água que ele também necessitava e, no entanto, pela dor do outro, tinha que renunciar. A água era vital, creio que a Guerra do Chaco foi a primeira guerra pela água nesta região. E então, que alguém renuncie a sua ração para ajudar a outro que está em piores condições, se transforma em um ato heróico. Ali vi o verdadeiro heroísmo. Essas coisas nos fazem crer de novo na grandeza da alma humana, ainda em meio das piores misérias. Por outro lado, no Paraguai se sucederam mais de 15 ou 20 “revoluções” que não eram mais que revoltas entre dois partidos tradicionais e os militares no meio. O resultado que nos deixaram é um povo debilitado pela violência e os privilégios de classes. Não acredito que tenham servido para nada tantos golpes de Estado. Claro que tanto a Guerra do Chaco como a Guerra Grande (que tomamos como marco para escrever O livro da Guerra Grande, sobre a Guerra do Paraguai – editora Record) têm sido acontecimentos importantes para a história do Paraguai e, em outra dimensão, como parte da infausta história americana.

EC – Como é fazer literatura num lugar como a América Latina? Há alguma especificidade na ficção feita aqui? Qual é a diferença em relação ao que se faz em outros lugares do mundo? Com isso quero dizer: existe uma literatura latino-americana? Qual o fio que une tantas (e boas) diferenças culturais que existem em nosso grande continente?
Roa Bastos
– Fazer literatura é difícil em qualquer lugar. Não se esqueça das perseguições sistemáticas tanto nos governos de corte fascista como no stalinismo com suas “purgas” e as prisões na Sibéria. Não esqueçamos G. Bruno e Miguel Servet que caíram nas mãos da Inquisição por promulgar suas idéias, frutos de suas investigações no caso de Servet. O homem não se cansa de perseguir o homem. A imposição de uma idéia he-gemônica é o sonho dourado dos ditadores porque lhes dá tranqüilidade de consciência. “Se todos pensam como eu, não devo estar equivocado” é o raciocínio em que se apóiam como se a verdade fosse estatística e dependesse de que a defendam dez, cem ou mil ao mesmo tempo. Mais de dez séculos vivemos equivocados pensando que a Terra fosse o centro do Universo, até que belo dia Copérnico nos mostrou uns cálculos que não fechavam. E assim despertamos lentamente de dez séculos de nos crermos como o centro da criação. E fazer literatura na América Latina não é mais fácil. Aqui as instituições que deveriam estar a serviço da sociedade passam zelando pelos interesses do governo. Em muitos casos, a justiça é apenas uma noção vazia. E então, os que levantam a voz são imediatamente estigmatizados, convertendo-se em bode expiatório de qualquer governo que necessite afirmar seu poder. Percebo que a exposição (me agrada mais esse termo que a palavra “denúncia”, que nos converte em delatores) dos vícios do poder tem sido uma constante na literatura da A.L., mais que em outros lugares. Já desde Azuela com Los de abajo se abre o ciclo da novela centrada nas relações com o poder absoluto; neste caso, com a Revolução Mexicana. E boa parte da literatura do chamado boom tem exposto as difíceis relações do continente com o poder. Esse pode ser o tema comum que serve como eixo vertebral às distintas vozes que compõem a linguagem da narrativa na A.L. Certamente, existe uma literatura latino-americana. Pensamos no itinerário que vai de Borges, Rulfo, Uslar Pietri, Asturias, Augusto Monterroso, Carlos Fuente, García Márquez, Mutis, César Vallejos, Neruda, Gabriela Mistral, João Guimarães Rosa, Icaza, Arguedas, Lezama Lima, Cortázar, Bioy Casares, Sábato, Ciro Alegría, nossa Josefina Plá que, mesmo nascida espanhola, assumiu o Paraguai como próprio. É impossível ignorar a riqueza de toda esta escrita sem vinculá-la diretamente à história do continente.

EC – Antônio Skármeta refere-se em um texto à sombra terrível de Borges, que assombraria os latino-americanos. Isso existe? Qual é o escritor latino-americano mais influente na América Latina? E em sua obra?
Roa Bastos
– Se a sentença é verdadeira, o juízo é fatal. Toda arte é imitação e é inútil escapar de uma sombra como a de Borges. É inexorável. Mas eu acho que a influência de Borges é mais de fundo que de forma. Certamente, ali estão esses magníficos giros de linguagem, mas isso está na superfície. E, por sorte, nós escritores gostamos muito mais de reler que ler Borges. Então, essa ornamentação formal vai dando lugar ao verdadeiro problema que nos traz toda a imensa e inesgotável obra de Borges. As grandes respostas que levam às últimas perguntas. Este questionar continuamente ao espelhismo que confundimos com a realidade. Por isso, sempre digo que esta influência de Borges (como toda grande influência) tem seus prós e seus contras. Ao mesmo tempo, sempre saímos ganhando da escola de Borges. Com relação à influência, acho que Borges e Rulfo são os mais influentes para os que fazem literatura na América Latina. Desgraçadamente conhecemos muito pouco da literatura do Brasil. Na verdade, conhecemos muito pouco do Brasil todo. Como dizia o genial Guimarães Rosa (a quem conheci casualmente em uma viagem de avião), “somos como gêmeos unidos pelas costas, que nunca olharam no rosto um do outro”; a América hispânica e a lusitana. Como dois irmãos grudados pelas costas que jamais se viram nem se reconheceram. Preste atenção que esta imagem é terrível. Muito mais ameaçadora que a “sombra” de Borges em quem eu jamais vi sombras, mas unicamente a vivíssima luz de sua inteligência criadora. Mas esta espécie de fatalismo entre os dois mundos da América Latina, o imenso Brasil (quase um continente) por um lado e a hispano-américa por outro, sem poder ver um ao outro, ou seja, sem reconhecer-se. Vejo com felicidade que lentamente se estejam dando os passos para nos aproximarmos. E é natural compartilharmos os mesmos problemas. Interessamo-nos mutuamente. Eu gostaria muito de ver uma publicação de autores da região, poderia começar sendo um volume de contos de autores de Brasil, Argentina, Uruguai, Bolívia e Paraguai. Seria uma linda idéia. Quando escrevemos O livro da Guerra Grande (com Alejandro Maciel), tive este especial interesse de reunir autores de quatro nações que estiveram enfrentadas até a morte em uma guerra espantosa. E agora, por outro lado, produzem um livro. É um avanção, não? Com relação à influência em minha obra, se é deliberada (coisa que duvido), acho que deveria mencionar Melville, Cervantes e Shakespea-re, a quem devo algumas cotas do que depois, bem ou mal, cheguei a escrever. Há outro autor que não quero deixar de lembrar: o anarquista Rafael Barret, que escreveu uma obra genial: El dolor paraguayo. Fez-me ver a fundo algumas coisas que eu apenas percebia na superfície. Josefina Plá me ensinou a ser crítico comigo mesmo. Isso é saudável.

EC – Perseguido por ditaduras, o senhor teve que viver muitos anos fora de seu país, inclusive dando aulas na Europa. O mesmo acabou acontecendo com diversos artistas brasileiros, argentinos, uruguaios, chilenos, etc. É uma história de enfrentamento de ditaduras e de resistência, que moldou a atividade de diversos escritores latino-americanos, inclusive do senhor. Essa experiência é valorizada, hoje, e passa para gerações mais novas de escritores?
Roa Bastos
– Efetivamente, o escritor no exílio é uma constante na história do século XX na América do Sul. Empurrados pelas ditaduras, muitos tivemos que sobreviver em países estranhos, sem grandes possibilidades, já que nem sequer (muitos de nós) tivemos tempo de terminar nossos estudos. Além disso, longe da família, dos amigos, de nossa terra. Totalmente desarraigados e com saudade contínua do solo de onde fomos desalojados, nosso Paraíso Terreno de onde nos expulsou a serpente. Tive a sorte de ser bem recebido na Argentina, que sempre foi um país generoso com os paraguaios. Mas tive que trabalhar muitíssimo, às vezes em três empregos ao mesmo tempo. E, nestas condições, escrever fica muito difícil, porque tantas tarefas diferentes dispersam nossa capacidade. Eu trabalhava de manhã em uma companhia de seguros, em tarefas administrativas, de tarde na editora musical “Lagos” de Buenos Aires (onde traduzia letras de canções brasileiras para o espanhol) e, depois, na redação do jornal Clarín. Saía moído de cansaço. E depois tinha que tentar encontrar um momento de tranqüilidade e continuar um conto ou uma novela. E assim saiu Hijo de hombre e depois Yo, el supremo, que levou cinco anos, mas assim, trabalhando fragmentariamente. A experiência do exílio é amarga. Espero que os escritores atuais não tenham que passar por isso. E sobre o que você pergunta, se ficou alguma lição de tudo isso, acredito que sim, que eles têm consciência clara deste risco do exílio quando cada qual assume sua responsabilidade coletiva frente aos poderes onipotentes, que ao final são gigantes com os pés de barro. E também espero que tenha servido para fomentar a tolerância de idéias. Tomara que nunca mais tenhamos exilados. Nem censurados, nem perseguidos, nem jornalistas comprados por empresários corruptos… Tomara que pouco a pouco tudo isso passe para os museus.

EC – A preocupação com as questões sociais é dever do escritor ou ele só deve respostas e atenções à sua arte?
Roa Bastos
– Penso que a literatura é um ofício humano, e sei que todos nós temos responsabilidades cívicas. Não creio na famosa torre de marfim, tampouco sou partidário de uma literatura panfletária a serviço de tal ou qual partido ou líder. A literatura pode ser um excelente instrumento para debater idéias, não caudilhos ou personalismos. Se há aberrações que denunciar, denunciemos os fatos. A justiça se encarregará dos culpados. Se a justiça é suspeita, denunciemos a justiça. Mas se um ser humano comum não pode renunciar a suas responsabilidades cívicas, o escritor menos que ninguém. Ao contrário, ao tomar mais facilmente consciência dos fatos, inexoravelmente está unido a eles e não pode renunciar a essa visão que aparecerá em suas obras de uma forma ou outra.

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Foto: Norberto Fuarte/AFP

Foto: Norberto Fuarte/AFP


EC – Como o escritor pode contribuir para que nossas populações tenham melhor compreensão do que está acontecendo?
Roa Bastos
– Simplesmente saindo de sua clausura individualista (ao que somos inclinados, os escritores, por outro lado) e aliando seu trabalho criativo com a docência social. O autismo da torre de marfim não serve nem sequer ao artista. Cria uma arte que está demasiadamente distante da realidade, em um céu platônico onde todas as coisas são ideais; mas vivemos na realidade. Aqui, precisamos preconizar e reclamar a justiça social, a não exploração do homem pelo homem, a não escravização ao outro, nem usá-lo como instrumento. Despertar consciências é uma forma excelente de fazer docência social. Não digo dar aulas com quadro negro, giz e voz de sermão. Não faz falta nada disso. Na escritura verdadeira sempre aparecem os símbolos da visão da realidade que tem todo o autor, sempre que o escritor estiver sinceramente interessado na realidade. Perceba o poder que tem um conto bem escrito. É uma peça mínima se comparado com tudo o que normalmente lemos no dia, mas nessa condensação pode estar uma reformulação de todo o processo de leitura de nosso redor. Suponhamos que o protagonista esteja mergulhado na mesma crise que está todo o resto das pessoas. Encurvado pelos crescentes problemas econômicos e sociais. E de pronto, no conto, tudo isso passa a um plano secundário, e o indivíduo, procurando em suas verdadeiras motivações, encontra a chave da arapuca. E busca uma saída original para um problema que até esse dia o veríamos como algo insolúvel. O efeito do contágio que pode ter este material é extraordinário. Não há cinema ou televisão que tenha a capacidade de nos conectar com a nossa intimidade como o faz a leitura. Primeiro, porque nos obriga a estar sós. Segundo, porque precisamos procurar certa tranqüilidade de ânimo. Terceiro, vinculamos mais facilmente o que estamos aprendendo com o que já sabemos porque não há “distraidores” de imagens sobre imagens como em um videoclipe que não nos deixa pensar. Todas essas vantagens vão em favor da leitura. Os demais meios são, simplesmente, complementos. Complementos geniais às vezes, mas a mão-mestre só quem tem é a literatura. Esse hábito maravilhoso fez a civilização. Mas se o escritor, no meio de uma crise, a evita ou faz com que ela não exista e se põe a escrever odes às pétalas das rosas, é provável que não encontre muito eco. A sociedade não está pensando em pétalas, mas nos problemas que a incomodam.

EC – Que função tem o escritor em um mundo caminhando para a barbárie? É possível escrever, hoje, sem que a literatura não seja manchada pelos temas do nosso tempo?
Roa Bastos
– Bom, creio que a literatura, como toda arte, assume um dever, talvez inconsciente, mas é um dever: a necessidade de servir ao outro. E servir quer dizer estar em atitude de entrega, oferecendo. Isso cria laços solidários que estão conspirando justamente contra a cadeia de barbarização que não reconhece valores deste tipo. A materialização e a desumanização coletivas sempre tiveram vai-e-vens. Acho que estamos nos preocupando demais e espero que logo os sintomas desta forma da decadência humana se apaguem, buscando novas maneiras de participação social, de formar parte da trama de decisões, e não como simples espectadores do que ocorre na sociedade. E isso já está acontecendo. As pessoas reagem e se unem, como aconteceu na Argentina. Essa participação já é, em princípio, solidariedade. É preciso dar-lhe mais tempo. Pensemos que se a sociedade começa com mais de um (dois já são um germe de comunidade, porque nada do que um faça deixará de afetar ou beneficiar o outro), ambos têm deveres. E, neste sentido, a educação para a participação tem que ser chave. Viemos de uma educação bastante individualista e isso não nos ajuda para nada. Pense que um só homem não é nada frente o universo. Está bem defender o próprio, o modo particular de cada pessoa se expressar no mundo, mas não ficar apenas ali. Temos que saltar essa barreira autista e saber escutar e comunicar-se com o amplo, fascinante e ao mesmo tempo complicado mundo contemporâneo. E, para isto, o escritor é o guia mais autêntico para nos acompanhar nos caminhos intrincados da alma humana. Pense no Dante, que deve atravessar ou ir além, e entra no Inferno acompanhado de Virgilio, o escritor que mais admirava. E Virgilio é o anfitrião, mas ao mesmo tempo é quem revela os segredos daquelas profundidades. Essas almas torturadas que são o reflexo dos mais humanos, tudo isto o revela um escritor, não Deus, a quem Dante somente vê ao fim do caminho.

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