OPINIÃO

Procura-se um inimigo

José Luis Fiori / Publicado em 5 de julho de 2005

“Em termos geográficos, a Europa não tem fronteiras orientais, e o continente, portanto, existe exclusivamente como um constructo intelectual… só que se trata de um conceito mutável, divisível e flexível.”

Primeiro, foi a França, e depois a Holanda que disse não à nova Constituição Européia. Agora, foi a Inglaterra que disse não ao novo Orçamento Europeu, proposto por Bruxelas no dia 17 de junho, com os recursos para ajudar os 10 novos sócios que entraram na UE em 2004. Como resultado, neste momento, a Europa não tem mais nem Constituição, nem Orçamento. Em poucas semanas, o projeto de expansão da UE explodiu, e como disse o seu presidente, Jean-Claude Juncker, “a Europa entrou numa crise profunda”, talvez a maior crise de sua história. Só um cego não vê que na origem desta crise existe uma divergência radical de concepções entre seus principais estados e seus principais atores sociais. Mas, apesar disso, pouco a pouco, de forma sinuosa, quase envergonhada, vai se espalhando pelo Velho Continente a versão de que a Turquia deve pagar a “conta” desta crise. O problema mais geral começou com a expansão da comunidade para a Europa Central e agora está focado na próxima inclusão dos países “balcânicos”, mas é a Turquia que acaba sempre como “bode expiatório” de toda a história. Na Alemanha e na França inclusive, Angela Merkel e Nicolas Sarkozy – prováveis sucessores de Gerard Schroeder e de Jacques Chirac – já estão propondo a criação de um estatuto especial para a Turquia, que se transformaria em “parceiro especial” da UE, sem os mesmos direitos e poderes dos demais membros da comunidade. Todos parecem temer a entrada de um novo país – com 80 milhões de habitantes – que seria capaz por si só de “enviesar” todas as decisões democráticas da UE. E os trabalhadores, em particular, estão com medo de que a imigração desta população afete os seus empregos e seus níveis de salário e proteção social. Por trás desta preocupação política e econômica, entretanto, estão escondidos uma pergunta e um problema muito mais complexos e sem resposta: afinal, o que vem a ser a Europa? Quem são os europeus e qual é a sua verdadeira identidade? E além disso, quais são as suas verdadeiras fronteiras físicas, culturais e estratégicas?

Olhando do “ocidente”, todos estão de acordo que o território europeu começa no Cabo da Roca, a ponta extrema da Península Ibérica, onde “acaba a terra, e começa o mar”, como disse Camões, o poeta português. Mas ninguém sabe, nem nunca foi possível definir com precisão até onde se estende o território europeu, na direção do “oriente”, onde a fronteira foi sempre instável e variou através dos séculos, segundo o ritmo das guerras e das invasões “bárbaras”. O historiador francês, Fernand Braudel, chegou a dizer uma vez “que, no fundo, foram os muçulmanos que converteram os europeus ao cristianismo”, e que, além disso, foram as guerras entre cristãos e muçulmanos que definiram de fato as fronteiras mediterrâneas da Europa. E é provável que o cardeal Joseph Ratzinger estivesse pensando neste longo conflito e na necessidade da reconstituição da identidade cristã da Europa quando propôs a exclusão da Turquia da UE, antes de ser escolhido como novo papa.

Mas esta história está mal contada – por Braudel e por Ratzinger – porque não esclarece quem foi que tomou a iniciativa das guerras nem se preocupa muito com suas conseqüências dentro do mundo muçulmano. Na verdade, esta é uma história muito antiga e começou no momento em que Constantino, o imperador Romano, se converteu ao cristianismo e utilizou pela primeira vez as bandeiras e insígnias cristãs para mobilizar seus soldados na batalha de Milvius, em 312 d.C., contra os “pagãos” da Ásia Menor. Muito antes, portanto, do nascimento de Maomé e do início da expansão territorial islâmica, no século VIII d.C. Foi neste exato momento que começou na Europa esta grande confusão entre poder, império e religião: quando Constantino descobriu a eficácia do cristianismo para conquistar novas terras e escravos, e os cristãos descobriram a importância do poder e das armas para conquistar novas almas e pagãos. Mais tarde, na hora das Cruzadas, de novo, a iniciativa da guerra foi tomada pelos “europeus” cristãos. A primeira Cruzada foi organizada em 1095, por uma aliança entre o papa Urbino II e o imperador Alexis I, de Bizâncio, e tinha como objetivos conquistar Jerusalém e tomar a Ásia Menor das mãos do Império Turco Seljuk. E hoje os historiadores estão de acordo que esta aliança e este ataque “cristão-bizantino” foram absolutamente decisivos para reacender o fanatismo e soldar a fé muçulmana com o Império Turco. Muitos séculos mais tarde, depois da tomada de Constantinopla pelos turcos em 1453, esta mesma “guerra santa” reapareceu nos Bálcãs, na Europa Central e em todo o Mediterrâneo, agora entre os cristãos do Império Habsburdo e os muçulmanos do Império Turco Otomano. Mas este segundo capítulo da história ficou ofuscado pela expansão da Europa na direção da Ásia e da América e pela lenta decadência do Império Turco, até o momento em que foi expulso definitivamente da Europa e dos Bálcãs, na segunda metade do século XIX.

Resumindo o conto, ao contrário do que diz Braudel, os cristãos e os muçulmanos se “converteram” mutuamente ao fanatismo e à guerra, e se transformaram durante muitos séculos numa espécie de “inimigos necessários” para a reprodução de suas identidades “imperiais” e para a expansão dos seus territórios e do seu comércio. Mas o cardeal Ratzinger está completamente enganado se pensa que isso possa voltar a acontecer no início do século XXI, porque nem o Islã nem a Turquia têm mais a menor possibilidade de ajudar a reconstruir a união e a identidade dos europeus. A religião muçulmana está crescendo mais do que as igrejas cristãs, e, no momento, o “terrorismo is-lâmico” é o que mais assusta o “ocidente”, mas nenhum dos dois tem a base territorial e o poder econômico e militar indispensáveis para ameaçar a Europa e devolver-lhe a “vontade de poder” que ela perdeu depois do fim dos seus impérios, na segunda metade do século XX. Por isso, muitos conservadores europeus já estão apontando de novo para a Rússia, porque, em vários momentos do século XIX, e durante todo o século XX, foi ela, e depois a União Soviética, que cumpriu o papel de “inimigo necessário” da Europa. Mas, neste momento, a Rússia está transformada num “anão econômico”, incapaz de utilizar com eficiência sua enorme capacidade militar instalada, sem a ajuda dos próprios europeus. Finalmente, os tecnocratas de Bruxelas estão insistindo cada vez mais na tecla de que os verdadeiros concorrentes da Europa estão na Ásia, e que a China será o “inimigo necessário” do futuro. Mas a maioria dos líderes políticos europeus vem mantendo uma posição muito cautelosa sobre o assunto. Sabem que as “Índias” já cumpriram este papel no passado durante os 500 anos de predação econômica e dominação colonial da Europa na região.

Em toda esta discussão, o que ninguém diz é que a fronteira oriental da Europa já está traçada, e que ela não foi definida pelos próprios europeus. Ela foi definida, num primeiro momento, logo depois da II Guerra Mundial, quando os Estados Unidos intervieram na Grécia e na Turquia, e em seguida incluíram estes dois países na estrutura estratégica da OTAN. E novamente, depois do fim da Guerra Fria, foram os Estados Unidos que decidiram trazer para dentro da OTAN os países da “Europa Central”, e agora a Ucrânia, contra a opinião dos líderes políticos da UE.

Deste ponto de vista, os gaullistas franceses têm razão quando dizem que em última instância o “inimigo necessário” da Europa são os Estados Unidos. O problema é que já faz mais de meio século que a Europa está sob a “proteção” atômica dos norte-americanos e, além disso, foram os próprios europeus que colocaram os Estados Unidos nesta posição hegemônica dentro do seu continente. A soma de tudo isso parece estar indicando que só resta à Europa tomar o caminho dos grandes poderes vitoriosos do passado, que perderam sua “energia” política e se instalaram confortavelmente numa espécie de planície da auto-satisfação e do lento crescimento. Como foi o caso, por exemplo, da Holanda, depois da sua “gloriosa invasão” da Inglaterra, em 1688, e durante o governo conjunto de Guilherme de Orange, que promoveu a fusão política e financeira dos dois países. Se esta for a solução, de novo, agora no início do século XXI, aos europeus só resta fundir-se com o projeto global dos Estados Unidos. Esta opção já foi feita pela Grã-Bretanha, e é isto que ela está propondo que façam os demais membros da União Européia. Neste caso, só cabe à França, e sobretudo à Alemanha, retirar-se da UE e refundar o seu projeto de poder, a partir do eixo Berlim-Paris-Moscou.

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