POLÍTICA

O Partido suicida

Jorge Barcellos / Publicado em 5 de agosto de 2005

As sucessivas ondas de denúncias que surgem no Planalto provocaram as mais variadas interpretações. O governo vinha acumulando sucessos no campo econômico, mas provocando a contrariedade de setores do PT, que não viam resultados nas políticas sociais. As denúncias de corrupção vieram a agravar esta conjuntura, que tem duas formas de ser interpretada.

A primeira é no campo real. A crise das denúncias de desvio de recursos e lavagem de dinheiro pelo PT provocaram o reforço da presença da corrupção na história política do país. O problema é o contexto. Se é verdade que a corrupção é ancestral em nossa história, o processo que levou ao seu combate é recente, mas não menos importante. Inicia com a UDN que, em 1945, realiza o seu combate no interior do Estado. Ela levantou o tema da moralização da sociedade e dos costumes políticos e foi um sério adversário de Getúlio Vargas no poder, a quem denunciou favores concedidos pelo Banco do Brasil a Samuel Wainer. Às vésperas do suicídio, ele próprio falava do “mar de lama” que chegara ao Catete.

Sem apoio popular, visto pela esquerda como manobra pequeno-burguesa visando a desviar o caminho das massas para a revolução, a UDN não recebeu esse suporte e tampouco afetou as massas trabalhadoras com seu moralismo. O movimento arrefeceu e só foi retomado após, com Jânio Quadros, que resgatou a bandeira udenista, fazendo-se de baluarte contra a corrupção. Seu símbolo, não por acaso, era uma vassoura. O tema fora anteriormente esquecido por Juscelino Kubitschek, mas depois mantido sob a ditadura militar com o propósito de perseguir os adversários do regime. Com idas e vindas ao longo da história, o tema do combate à corrupção só voltou ao debate político com a redemocratização por um lado, e com o nascimento do PT, por outro.

Em 25 anos, seu compromisso ético ficou evidente para a população. A arrogância petista, aquela que intitulava o PT como o único partido virtuoso, logo chamou a atenção da direita. A bandeira aos poucos foi-se esfacelando: logo após sua principal conquista, a eleição de Lula, vieram o assassinato de Celso Daniel, o caso Waldomiro Diniz e agora a CPI dos Correios. A onda de denúncias derrubou a cúpula do partido e é produto do incon-formismo da sociedade contra a corrupção. Ela não pode ser vista dissociada do silêncio, da vergonha e do comedimento da militância que é também outra forma de inconformismo. Ela também se pergunta se o PT é um partido sério.

Aqueles que são levados pelas denúncias a mudar de opção política, o fazem baseados no argumento de que basta, decididamente o PT se acomodou à ordem e os embates não foram suficientes para manter a democracia interna. A prova é que os dirigentes que saíram pagaram um alto preço por querer chegar ao poder a qualquer custo, e o efeito de suas práticas é que terminaram por descaracterizar o partido. Aqueles que permanecem, o fazem porque crêem firmemente nos valores e princípios do partido. Eles fazem parte do ativismo militante, o mesmo que defende a participação nas lutas sociais e a democracia. Para eles, por maiores que sejam as agressões que o partido sofre neste instante, não superam o que foi construído pela militância em 25 anos de existência. Mas eles sofrem.

É aí que entra uma segunda forma de ver os acontecimentos: é seu efeito no campo simbólico. Ao abandonar sua proposta socialista por uma proposta social-democrata, Luciana Genro acertou quando disse: “O outro mundo defendido no Fórum Social Mundial ficou impossível”. O fato de o Outro mundo possível ser (sic) impossível é, para qualquer militante, uma tortura.
Esta reflexão ainda não foi feita. A que diz que não apenas os corpos humanos são torturados, mas os corpos políticos também. Sabemos que um corpo torturado é aquele roubado a seu próprio controle, que se transforma no objeto das mãos poderosas de Outro. Os corpos políticos também o são e, de alguma forma, também são objeto do gozo maligno do Outro. Mas mesmo um partido torturado continua sendo um partido.

Dizemos aqui corpo político com diversos significados: é militância, mas também é a organização partidária, as lideranças, tudo enfim. De uma certa forma, o corpo político refaz-se no dualismo ideologia/bases sociais, e, se a tortura tem uma finalidade, é arrancar essa “alma” do corpo político que é sua identidade. É por isso que, assim como o torturado na ditadura sofria em silêncio, vemos hoje a militância do PT seguir em silêncio os acontecimentos como única forma de preservação de seu ideal.

O silêncio é escolha de quem não tem escolha nenhuma: o que o militante dirá frente à escalada de denúncias que se abate sobre seu partido? O corpo político assassinado é essa anulação da diferença. Se um corpo político pode ser objeto de tortura – as cenas que se sucedem na televisão de denúncias, o aprofundamento da contradição entre a defesa da ética e o seu anulamento, numa palavra, a discussão sobre o fim do PT – é porque é a ordem simbólica que tem força cada vez maior. Pensamos que as pessoas torturadas são extorquidas pela produção da dor. Mas o corpo político é também torturado, porque a perda de sonhos é uma experiência dolorosa que provoca, numa palavra, a destruição de suas crenças.

O PT sempre foi o grande bastião da ética. Torturá-lo é buscar em seu seio as evidências de corrupção. É o que faz a televisão, que transmite 24 horas as cenas dos inquéritos e investigações, em tempo real, que passam a ser no horário nobre e transformam o partido em seu verdadeiro BBB. Diz Luis Fernando Verissimo: “Depois que o PT lhe fez o favor de se auto-imolar, a direita está cuidando de espalhar as cinzas e salgar o terreno para que nenhuma outra opção de esquerda viceje em seu lugar, num futuro previsível”. A pergunta: a submissão de um corpo político a tanta visibilidade tem algum sentido? A resposta: se no campo real é a conquista da democracia, e, por sinal, ampliação de valor do papel da imprensa, no campo simbólico é o extermínio dos vestígios simbólicos de um partido. Seu efeito é algo mais, porque encarna a idéia de submeter um partido a dor. Partidos e políticos em outras épocas foram expostos à expiação pública – não se pode deixar de considerar que isto também é parte da política, inscreve-se no laço social. A questão é que não conhecemos nenhuma outra sociedade capaz de instrumentalizar o corpo político e gozar com isso na escala como o vemos hoje.

Quando a expiação pública e a pura visibilidade se juntam, os ideais da política perdem alguma coisa, e, no fundo, no fundo, o que se perde é uma geração política que se sente roubada em seus ideais de juventude. Eles acompanharam o nascimento do partido e seu desenvolvimento – agora, a eles resta somente a dor psíquica. Ela se encontra no laço que une o militante ao ideal social; lesão no laço íntimo que une seu ser com a política. É por isso que dizem: “Política, nunca mais”.

Que haja outros corpos políticos que gozem com tudo isso e que desejem infligir mais sofrimento, o fazem por sadismo, e revelam uma lesão no laço que une todas as instituições políticas. Pois, se há uma humanidade política a preservar, é a que faz com que as instituições políticas sobrevivam a seus agentes e que os ideais tenham mais tempo que os fatos. O que se vê retoma em parte aquilo que no século XVIII era a execução pública de um criminoso, capaz de esvaziar os teatros, espetáculo público da morte e do sofrimento. Hoje se diz que “dá audiência”.

O momento impõe uma reflexão da maior importância para a esquerda. Trata-se de fortalecer aquelas tendências que já há algum tempo criticavam o pragmatismo que desfigurara o partido. Somente elas têm a legitimidade para colocar a questão fundamental: que razões levaram o PT a se transformar numa máquina eleitoral? Primeiro, porque somente elas podem fazer frente à ascensão do carreirismo individual que se sobrepujou ao projeto coletivo, possibilitando o surgimento de figuras como Delúbio e camarilha. Segundo, porque somente elas podem manter o poder advindo da conquista de um lugar simbólico excepcional, o de ser o portador do sentimento anticapitalista. Numa sociedade desigual, o PT era a promessa de transformação social. Onde este desejo irá se depositar? Que desejo o substituiu?

A genealogia dessa transformação desejante – para usar uma expressão de Gilles Deleuze – deve ser procurada nos programas de governo petistas nas eleições presidenciais de 1989, 1994, 1998 e 2002. É verdade que, ao longo desse tempo, o partido cresceu no Legislativo e no Executivo, mas é preciso realizar a crítica ao desejo de poder que se verificou. Esta crítica tem endereço certo: a vitória de Lula em 2002 consolidou um período de desideologização da esquerda, que começou com a derrota para Collor e terminou na célebre entrevista à jornalista francesa, onde Lula afastou-se, de uma vez por todas, do partido que ajudou a construir.

É preciso apontar a fragilidade do programa de 1998, pois foi ele que abriu a possibilidade de uma guinada à direita. Basta ver depois o programa de Lula, primeiro elaborado com aliados e que traz em seu bojo várias mudanças. A principal: o partido abandonava a visão de mundo que justificava sua ação política. O partido não deve manter crenças que possam lembrar o século XIX, mas seu dever é construir suas concepções a partir de uma discussão “de dentro”, que os fatos comprovaram que não foi feito.

A este respeito, vale apena ler A estrela não é mais vermelha, de Oswaldo Amaral. Segundo ele, para chegar ao Planalto foi fundamental a diluição ideológica do partido. “A partir das derrotas de 1994 e 1998, o partido recorreu à profissionalização de sua estrutura e à desideologização de seu discurso para conquistar vitórias. Esta orientação há algum tempo desagrada setores mais à esquerda do partido, que criticam a grande distância entre a legenda e os movimentos populares que lhe deram sustentação durante os anos 80 e boa parte dos 90.”

Este campo de interpretações também é seguido por outro historiador, Felipe Demier, para quem as indefinições históricas de temas defendidos pelo PT nos anos 80 levam o partido a chegar ao poder em 2003 em meio a uma crise de ideais. O ponto de partida é o fato de que o PT se deslocou para o centro do espectro político ao trocar uma campanha política por uma campanha de marketing. O que a crítica tem a responsabilidade de apontar é que esta opção não era obrigatoriamente necessária, uma vez que a eleição presidencial não era a principal questão do PT como um todo, mas apenas de um setor. As denúncias vieram a confirmar o que parte da esquerda desconfiava: não vale a pena para um partido de base ganhar uma eleição à custa de deslocamento ideológico. E foi o que o partido fez. É nesse sentido que a partir de 1998 o PT transformou-se num verdadeiro “partido suicida”. Por paradoxal que possa parecer, o suicídio político é uma das mais graves conseqüências dos partidos que têm sua subjetividade política seriamente perturbada. Quando a condução de um partido gera conflitos que seus membros não conseguem resolver, eles próprios, num movimento convexo e deformador, vêem a morte como única solução possível. É a angústia de viver uma história dividida entre a aspiração social e a prática autoritária. Para Jung, trata-se de uma manifestação do inconsciente coletivo; para Deleuze-Guatari, nada mais evidente, já que o inconsciente de que se fala é fundamentalmente político.

Em hipótese nenhuma os crimes cometidos pelas lideranças petistas e por agentes públicos podem ser subtraídos do conhecimento público. Se as investigações comprovarem que o PT, aquele da ética da política, do respeito à coisa pública e da reforma das instituições, perdeu-se nos corredores do palácio do governo e está afundado na “lama”, ele foi derrotado por suas próprias mãos. É que ele tornou-se, num curto espaço de tempo e sem saber, num partido suicida. Se o PT mostrar que é capaz de extirpar sua “banda podre”, e ao mesmo tempo manter sua capacidade de intervenção no processo político, defender com vigor seus objetivos estratégicos e abrir espaço para novas lideranças, ele poderá iniciar sua reconstrução. Ele terá submetido sua militância a uma situação de tortura, mas poderá sobreviver. Mas até lá, ainda há muito o que se ver.

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