OPINIÃO

Cordel, trova, pajada e outros versos

Clarinha Glock / Publicado em 30 de dezembro de 2005

O Nordeste e o Sul do Brasil nunca estiveram tão próximos. Na cultura popular, o ritmo dos repentistas e a literatura de cordel registram os costumes e a vida dos habitantes das terras de clima ensolarado e árido. E, no Sul dos pampas e do frio de renguear cusco, os trovadores e os pajadores entoam seus poemas e rimas com a mesma maestria. As semelhanças vêm de origem – tanto as trovas e pajadas como o cordel têm uma influência lusa e espanhola – e, assim como os trovadores, os cordelistas geralmente usam como tema histórias regionais. A diferença é que os cordéis já começam a ganhar a atenção nas escolas e universidades. Enquanto isso, os registros das trovas e das pajadas ainda ficam restritos aos CDs, festivais e torneios que se espalham pelo Rio Grande do Sul.

Não é por acaso que o cordelista e xilogravurista pernambucano José Francisco Borges, o J. Borges, é um dos homenageados na exposição itinerante “O universo da literatura de cordel” que três cidades francesas vão abrigar até janeiro de 2006 em comemoração ao Ano do Brasil na França. São de Borges também as ilustrações do livro As palavras andantes, de Eduardo Galeano. Seus finos livretos de capa rosa, azul e amarela com a legítima literatura de cordel transformaram sua vida. A literatura de cordel não só alfabetizou Borges, como agora está em algumas salas de aula no Nordeste. O professor Janduhi Dantas Nóbrega, que trabalha num cursinho pré-vestibular em Princesa Isabel e é técnico judiciário em Juazeirinho, na Paraíba, uniu sua veia de poeta cordelista e a arte de ensinar e escreveu o livro A gramática no cordel*. A idéia iniciou quando, ao preparar as aulas, começava a cantarolar o que estava lendo e percebia que ali dava pra fazer um verso. Ao ilustrar as aulas com esses versos, a resposta da turma foi de imediata aceitação. O estalo para escrever o livro veio num dia em que lia cordel para os filhos Mateus, 13 anos, e Bianca, de 12: eles pediram para suspender a leitura porque tinham que estudar para uma prova de Gramática.

Se várias gerações de Nordestinos foram alfabetizadas por meio da literatura de cordel, isso não acontece muito hoje, lamenta Nóbrega. “Pior, quase não há a presença de cordelistas nas feiras livres do interior do Nordeste”, observa. Apesar disso, o cordel vive um momento de revitalização justamente por intermédio da escola, já que algumas secretarias de educação têm adquirido folhetos para as bibliotecas. Também a internet tem contribuído, com várias páginas dedicadas ao tema. Se o cordel pode, por que as trovas gaúchas ainda não tomaram conta dos espaços populares e se firmaram também no papel?

Uma das explicações, segundo a professora Regina Zilberman, diretora do Instituto Estadual do Livro, pode ser o fato de que a cultura oral no Nordeste é muito forte. A cultura oral do Rio Grande do Sul foi absorvida pela cultura letrada a partir do progresso e do aumento da escolarização. “O adubo deste tipo de produção literária, que é a poesia, se mantém em alguns bolsões, mas não de forma tão espontânea – quando acontece, é na forma de festivais de música, nos Centros de Tradições Gaúchas (CTGs), e por isso têm um conteúdo mais saudosista”, analisa a professora. Os cordéis, ao contrário, são uma forma de comunicação e de tradução de vivências muito atual.

No Nordeste, em setembro de 2001 foi publicado um cordel sobre o atentado às torres gêmeas em Nova Iorque. Na época do ex-presidente Fernando Collor havia outro sobre os marajás. As pessoas tomam conhecimento dos acontecimentos pelos cordéis. “A cultura popular é coletiva, anônima, não tem como ser induzida, senão vai ter um caráter postiço, artificial”, defende Regina. “As pessoas não andam a cavalo ou de bombacha normalmente, isso é motivado, induzido, enquanto no Nordeste, nas feiras, elas estão ali mesmo, produzindo seus artigos de barro”, compara.

Décimas foram o cordel gaúcho

Na verdade, um tipo de registro muito mais parecido com a literatura de cordel do que a trova e a pajada existiu no Rio Grande do Sul nas décadas de 30 a 50, informa o pesquisador Derly Silva, do Serviço de Tradição e Folclore da Casa de Cultura de Sapucaia do Sul. Ele coleciona raros exemplares do que se chamava na época de “Décima”, que do nome não tinham muito, porque, em sua maioria, traziam estrofes de até seis linhas. Quando garoto, Silva morava entre os municípios de Palmeira das Missões e Santa Bárbara e precisava se deslocar até Tupanciretã para estudar. Na viagem de trem, era comum seus pais comprarem folhas avulsas, impressas, com versos que divertiam e informavam os viajantes. Eram as “Décimas”. Há quem diga que a palavra era usada como sinônimo de história – “Fulano fez uma décima” – por isso o nome.

Silva guarda cópias de O triste fim de Sofia, de autor desconhecido, O dinheiro faz o orgulho, de Henrique Falcedo, Visita de um gaúcho a Farroupilha num cavalo perereca, de Tenório Raimundo (da cidade de Júlio de Castilhos). O sofrer de um cego, de Hermes Dionísio Bertollo, traz na capa o preço de venda da época: Cr$ 1,00. Silva conheceu Dário Ramos, autor de A trágica morte de Getúlio Vargas, que fazia um programa de rádio. E havia até versos de oferecimento e agradecimento, com patrocínio das “Pílulas para Tudo”, datados de 9 de fevereiro de 1935, de Marcos S. Teixeira, do distrito de Santa Maria.

“Acho que as ‘Décimas’ desapareceram pelo avanço do rádio e da televisão”, palpita Silva. Organizador de festivais de trova – o de Sapucaia do Sul é o mais antigo, está na 22ª edição, e há outros 17 no Estado –, o pesquisador lembra da diferença: a “Décima” era escrita, embora até pudesse ser decorada e cantada. Mas trovadores e pajadores se firmaram basicamente como re-pentistas. Se as “Décimas”, como o cordel, falavam de questões sociais e políticas, as trovas acabam se ligando mais aos temas nativistas, como saudade da querência, rodeios, chimarrão. “Os festivais de repentismo não avaliam o conhecimento de história nem de português, mas o repentismo em si”, explica. Por sua vez, a pajada trata de recitar versos, em vez de cantar.

O grande mestre da pajada foi Jayme Caetano Braun. Seu discípulo e divulgador, o compositor Paulo de Freitas Mendonça, diretor técnico do Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore, acredita que, se os versos gaúchos não são tão difundidos na forma mais pura e popular, como o cordel, é porque os grupos tradicionalistas ficam muito fechados com seus regulamentos e concursos ou dentro das quatro paredes dos CTGs. Mesmo entre trovadores e pajadores há diferenças e disputas por reconhecimento. Durante muito tempo, observa Mendonça, o movimento tradicionalista gaúcho não considerava a pajada como uma manifestação autêntica. Pajadores defendem que seus poemas são mais meditativos do que os versos dos trovadores, mas há trovas de diferentes tipos e estilos, classificadas pelos estudiosos.

Manifestações renascem na escola

Tentativas de levar essas manifestações para as escolas começam a pipocar em vários cantos do Brasil. A professora Regina da Costa Silveira e a pesquisadora Taís Ávila de Almeida, do curso de Letras da UniRitter, desenvolvem um trabalho intitulado Presença das literaturas de Língua Portuguesa na escola com o objetivo de dinamizar a leitura de textos na forma de prosa e poesia, além da música e das artes plásticas nas escolas de Ensino Médio no Rio Grande do Sul. Elas preparam e aplicam atividades para professores e alunos em que comparam, entre outras artes, as obras de poetas portugueses e brasileiros de diferentes épocas, mas com propostas e formatos semelhantes. A partir das discussões sobre os textos, os alunos fazem redações e estudam temas afins.

Ao participar da pesquisa, Taís descobriu, por exemplo, como um texto do Trovadorismo do século XXII – movimento que começou na divisa de Portugal com a Espanha e que passou por várias camadas sociais, do rei ao camponês, estendendo-se até o ano de 1500 – pode ser muito semelhante à trova dos gaúchos, ainda que a linguagem seja mais arcaica.

Uma outra de experiência foi realizada em 2004 pelos alunos do Projeto Experimental Jornal da Faculdade de Comunicação Social da PUCRS. O projeto denominado Vida em cordel e coordenado pela professora e jornalista Bete Duarte resultou na publicação de livretos no formato da literatura de cordel do Nordeste, mas utilizando temas do Rio Grande do Sul. A turma conseguiu patrocínio e publicou 12 títulos, entre eles O querido bairro Bom Fim, de Vinicius da Silva Oleksiuk, O que é o Brique da Redenção que o gaúcho leva no coração, de Paula Pereira, Político preguiçoso, povo esperançoso, de Michelle Pereira e Os gaúchos do futebol – a história do Gre-Nal, de Julia Maria Garcia Dócolas. Trabalhando na linha da folkmídia, ou cultura popular na comunicação, a idéia era mostrar que dominando o meio se faz comunicação em qualquer área. “Pesquisei a linguagem da rima e começamos a brincar – o divertido era que até para ir ao bar a gente rimava”, conta Bete. No dia do lançamento, os livrinhos foram pendurados em cordões (como o cordel) no hall da faculdade. Exemplares foram enviados até para a Academia Brasileira de Cordelistas.
Kleiton e Kledir preparam ópera-trova

Ainda que criticada por alguns trovadores tradicionais, a música Trova, da dupla Kleiton e Kledir também divulgou, mas cantados, os versos do Sul para todo o país. “Nossa trova não é aquilo que colocaram na música”, reclama Derly Silva. “A maioria dos trovadores não gostou porque a trova hoje é muito mais uma mensagem de costumes do Estado, e há uma preocupação de se levar para os salões algo que toda a família possa escutar”, acrescenta. O uso de expressões como “gaúcho bunda mole” (letra de Trova) pode não ter agradado aos tradicionalistas, mas certamente popularizou um ritmo típico do Estado. “Na verdade, é uma falsa trova”, reconhece Kledir, “porque devia ser um improviso e não é”. As reações à música ainda surpreendem o próprio compositor, que ficou impressionado como em Paris o público do show, mesmo sem entender a letra, vibrava e torcia pelos cantadores.

Kledir Ramil não tem certeza se algo como o cordel poderia funcionar tão bem no Rio Grande do Sul como no Nordeste, onde o clima quente propicia as feiras ao ar livre em que são vendidos os livrinhos. “A idéia de registrar num papel os versos populares seria muito bacana, mas a maneira de distribuir teria de ser diferente”, diz, algo mais ao encontro do clima frio e do estilo gaúcho. Na mesma linha da Trova – e para aflição dos tradicionalistas – vem aí mais uma ousadia dos irmãos Ramil. Kleiton e Kledir têm pronto o espetáculo musical “Ópera- Trova”. Toda escrita na forma de versos, trata-se de uma opereta que reflete sobre a briga entre duas pessoas na forma de versos, jogo, peleia, guerra, bem/mal. “A ópera está pronta, e quando lançarmos será na forma de disco e livreto”, garante.

O sertão como inspiração

José Francisco Borges, o J. Borges, como costuma assinar seus quadros e livretos de cordel, é uma lenda no Nordeste tanto quanto os santos mais adorados. Desde que recebeu o título de melhor xilogravurista popular na opinião do escritor Ariano Suassuna, passou a viajar pelo mundo para divulgar essa arte. Nascido em 20 de dezembro de 1935 em Bezerros, Pernambuco, é lá que vive e produz suas xilogravuras e livros de cordel. Lança cerca de 30 a 40 títulos por ano, não só dele, mas também de outros autores. Escreve a partir da realidade da região, dos costumes do povo, do dia-a-dia dos acontecimentos, das lendas. Sua inspiração é o sertão, a seca, as figuras do folclore nordestino.

Extra Classe – O senhor diz que, quando criança, não teve o direito de aprender a ler. Por quê?
J. Borges
– Na época eu morava num sítio distante da cidade, 20 km, e não existia escola particular ou pública. Os meninos cujos pais tinham condições de mandar para cidade estudaram mais. Meu pai não tinha condição de pagar, então eu parti para usufruir a pequena leitura que aprendi. Fui logo começando a escrever alguns versinhos de cordel.

EC – Quem lhe ensinou a desenvolver a literatura de cordel?
Borges
– Quem contava as histórias era meu pai. Desde criança, ele lia nas bocas de noite, nos sábados, nos domingos. Era o tipo de lazer da época, não tínhamos acesso à imprensa, jornal, revista, rádio, nada. Só a literatura de cordel dava as notícias e também o direito de a gente rir e se distrair. Numa comunidade que tinha 100 pessoas, talvez só 20 sabiam ler. Com 20 anos comecei a vender e comprar cordel pelas praças, pelas feiras, até que em seguida escrevi meu primeiro cordel, publiquei, fui muito bem-sucedido, vendi bem e parti para fazer o segundo, o terceiro. Hoje eu tenho 235 originais escritos, publicados, a maioria esgotada.

EC – Até os 20 anos, o que o senhor fazia?
Borges
– Eu ajudava meu pai na agricultura e também fazia artesanato. Ele plantava feijão, mandioca, milho, tomate, algodão. Com 14, 15 anos, eu fazia cesto de cipó para vender e peças de barro como brinquedo. Eu também fazia móveis mirins – carrinho, cama, cadeirinha – para os meninos brincarem. E com isso eu arranjava meu dinheiro. E comecei a aprender a andar no mundo, pouco a pouco.

EC – O senhor começou a fazer ilustração sem ninguém lhe ensinar?
Borges
– Nunca me ensinaram. Mas eu tinha noção que era um clichê de madeira. Eu preparei a madeira, botei na altura certa, plainei bem, lixei, desenhei e fiz uma igreja. Cortei, levei na gráfica, fiz uma cópia e o rapaz disse: “Dá pra imprimir bem”. Aí eu mandei imprimir e fui bem-sucedido. Fiz cinco mil exemplares com a primeira gravura. Essa matriz eu ainda tenho guardada, ilustrou um cordel alusivo aos conselhos do Frei Damião, às histórias de Juazeiro do Norte. Daí parti para ilustrar o segundo, o terceiro, o quarto e o quinto e depois os outros cordelistas já me encomendavam. Nos anos 70 vieram uns turistas do Rio de Janeiro. Foi quando eles mostraram a Ariano Suassuna. Quando viu, ele ficou muito entusiasmado e me deu o título de melhor gravador popular do Nordeste. E o povo acreditou e eu continuei trabalhando.

EC – Que autor de literatura de cordel mais lhe encantava na época?
Borges
– O que mais me encantava e me encanta ainda é, entre os 10 melhores que conheci, o Leandro Gomes de Barros. Temos que dobrar os joelhos e render homenagem a ele. Foi um dos primeiros cordelistas brasileiros. Ele desbravou. Foi preso várias vezes em Recife porque, no fim do século XIX, era considerado como subversão, malandragem. Depois vieram muitos outros poetas bons que já morreram e outros poetas novos escrevendo até bem.

EC – O que é a literatura de cordel para o senhor?
Borges
– É um mundo de inteligência, de expressão, uma linguagem matuta, diferente da científica, mas que tem muitas pessoas intelectuais aprendendo. O Ariano Suassuna mesmo me disse, outro dia, que conversar comigo era uma aula. E eu disse a ele: “Vai me dar uma explicação”. Ele disse: “Eu dou. Borges, eu sou formado, fiz doutorado, mestrado, sou professor de universidade, mas quando eu escrevo as minhas peças eu me inspiro no trabalho de vocês, na literatura de cordel, onde está a linguagem mais popular, mais bonita e criativa do Brasil”.

Comentários