SAÚDE

O jabá dos remédios

Por Stela Rosa / Publicado em 21 de março de 2007

O poder de influência da indústria farmacêutica na indicação de um medicamento vai muito além do que o paciente imagina. As estratégias de venda incluem benefícios financeiros para os médicos, para as farmácias e até mesmo para organizações não-governamentais (ONGs). E não é só isso. Os laboratórios também impõem seus medicamentos ao poder público, fato que vem sendo denunciado pelos secretários municipais e estaduais de Saúde. Com 75% da população usuária do Sistema Único de Saúde (SUS), o equivalente a mais de 139 milhões de pessoas, a política pública de acesso a medicamentos no Brasil torna-se um alvo cobiçado. Uma das formas de inserção é simples. O médico prescreve um medicamento que não existe na lista obrigatória do SUS, o paciente entra na Justiça e ganha a liminar. Resultado: Estados e Ministério da Saúde são obrigados, por decisão judicial, a comprar o medicamento, inclusive, os recém-lançados, que sequer foram registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), autarquia responsável pela segurança dos produtos e de serviços comercializados.

Segundo o secretário substituto da Saúde do Estado do Rio Grande do Sul, João Gabbardo dos Reis, 50% das ações são referentes a remédios de alto custo, e muitos não preenchem os requisitos clínicos exigidos. “Chega ao extremo de termos de comprar medicamentos ainda em fase de testes que, no limite, não podiam nem ser comercializados”, explica. Por outro lado, metade das ações é legítima, reconhece Gabbardo, visto que são de pacientes que não estão recebendo os medicamentos por desorganização do sistema, fato que torna ainda mais complexo para o poder judiciário separar o joio do trigo.

Levantamento realizado por Paulo Picon, professor da UFRGS e assessor técnico da Secretaria de Saúde, mostra que, de março de 2005 a março de 2006, a Secretaria de Saúde investiu mais de R$ 7 milhões na aquisição de apenas sete novos medicamentos, que, segundo ele, nem sequer têm comprovação de eficácia. “Nós estamos desviando recursos para a utilização de produtos que não conhecemos, que não sabemos se salvam uma vida”, ressalta. Segundo ele, ainda há casos de prescrições erradas, solicitação de medicamentos com efeitos colaterais letais e até mesmo de suplementos nutricionais cujas fórmulas são inadequadas. No que se refere às ações judiciais, Gilson Carvalho, médico pediatra e de saúde pública, avalia que, além das ações induzidas pelo fabricante, há outra questão ética que diz respeito a exames e uso de aparelhos auto-referenciados. “O profissional faz a indicação para o procedimento a que somente ele, mesmo que com outros, esteja habilitado a fazer”, denuncia, acrescentando que “a existência de ligação comercial entre fabricantes e mercadores de produtos médico-hospitalares e medicamentos com os profissionais de saúde é simplesmente espúria”, analisa.

Para se ter uma idéia, anualmente, são registra-dos na Anvisa cerca de 21 medicamentos ditos inovadores. Porém, alguns especialistas recomendam cautela antes de começar a prescrevê-los. O caso do Vioxx®, antiinflamatório do laboratório Merck, é uma demonstração de que a propaganda dos médicos enfiada goela abaixo pode ser enganosa. Lançado como um dos mais potentes medicamentos para processos inflamatórios, inclusive anunciado pela revista Veja, edição de 24/06/2002, como um dos super-remédios, ele acabou vitimando milhares de pessoas. Segundo a FDA, agência responsável pela vigilância de produtos alimentícios e farmacêuticos nos Estados Unidos, entre 1999 e 2003, cerca de 28 mil pacientes tiveram ataques cardíacos ou mortes súbitas devido ao uso desse fármaco. Eduardo Lütz, médico infectologista da Santa Casa e coordenador do programa de aids na prefeitura de Gravataí, explica que, diferentemente do que os usuários possam imaginar, os remédios mais seguros são os que estão há mais tempo em uso, porque já foram amplamente testados e seus efeitos colaterais são conhecidos. “Temos medicamentos da década de 1960, como o caso da Benzetacil®, usada para tratar sífilis, mais eficazes e baratos do que os novos”, exemplifica.

Balizadas pelo caráter universal do sistema público, o número de ações cresce ano a ano e vem sendo discutida pelos gestores públicos, que questionam o processo que denominam de judicialização do SUS. No Rio Grande do Sul, em 2002, foram impetradas 1.126 ações; em 2005, o número aumentou em mais de 400%, pulando para 4.855. Para este ano, Reis avalia que o Estado deverá gastar cerca de R$ 150 milhões, quase dez vezes mais do que em 2002, quando o valor foi de R$ 19 milhões. A juíza Denise Oliveira Cezar, presidente da Associação de Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris), analisa que, para o judiciário, a questão é complexa, pois não há como o juiz discernir os pedidos justos daquelas solicitações induzidas pela indústria ou das que não obedecem aos critérios clínicos exigidos. “O magistrado recebe um processo que, segundo o prescritor, pode definir entre a vida e a morte do paciente. A opção é pela vida e pelo cumprimento do direito ao acesso estabelecido na Constituição Federal”, explica.

Pacientes pagam pelos mimos

A relação comercial entre médicos e laboratórios é criticada e denunciada até pelas entidades representativas da categoria. De acordo com Roberto D’Ávila, corregedor do Conselho Federal de Medicina (CFM), cerca de 30% dos lucros dos laboratórios são investidos em propaganda, e quase tudo dirigido aos médicos. Recursos que são usados no pagamento de passagens a congressos e jantares, honorários para ministrar palestras e distribuição de brindes. Porém, segundo ele, quem financia esses ‘mimos’ são o consumidor e o poder público, pois esse per-centual é repassado no preço do produto. “Isso gera um conflito ético enorme, porque a função do médico é agir em benefício do paciente e, em último caso, os medicamentos poderiam ser mais baratos”, pondera. Outra questão levantada por D’Àvila é o pagamento feito aos médicos pelas participações em simpósios, a fim de divulgar os medicamentos. “Há profissionais renomadas que recebem de U$ 5 mil a U$ 10 mil para defender esse ou aquele como o melhor. Mesmo não tendo tanta base científica, parece verdade, porque é dito por um professor de uma grande universidade”, avalia. Para regular esse conflito ético, o CFM fez uma resolução para que o médico declare nos eventos que está sendo pago pelo laboratório, mas nem todos a respeitam.

A atuação das organizações não-governamentais para garantir o acesso a medicamentos, principalmente em casos de doenças como a aids, é reconhecida. No entanto, como os outros atores, elas também são assediadas e muitas vezes aceitam a oferta de ‘mimos’. Roberto Pereira, presidente da ONG Centro de Educação Sexual (Cedus), do Rio de Janeiro, teve sua passagem para participar de um congresso em Toronto financiada pela Abbott, empresa que produz o Kaletra®, um dos medicamentos mais usados pelos soropositivos. Para ele, não há conflito de interesses, mesmo que haja uma luta histórica pela quebra de patentes dos medicamentos anti-retrovirais no mundo. No Brasil, ao patentear um medicamento, o laboratório tem o direito de comercializá-lo por 20 anos, sem que nenhum outro possa produzi-lo e, obviamente, com preço estipulado pelo fabricante. “Esta questão foi discutida pela instituição às claras. Também acho justo que a indústria invista no financiamento de ações, inclusive de ONGs. Eles ganham uma fortuna”, defende Roberto. Já Patrícia Werlang, presidenta do Grupo de Apoio à Prevenção da Aids (Gapa/RS), tem outra visão. “Não aceitamos nenhum financiamento. Somos contrários a todo esse lobby da indústria, que também está relacionado com o licen-ciamento compulsório”, analisa. A questão do licenciamento compulsório é discutida em vários países, que propõem que os medicamentos para a aids possam ser produzidos pela indústria nacional para baixar os custos. Werlang avalia que médicos e ONGs devem estar balizados em pareceres científicos, livres de qualquer influência dos laboratórios.

Controle dos receituários e das vendas

O assédio às farmácias por parte da empresas também é agressivo e fere inclusive o sigilo médico. Segundo um representante comercial que há 10 anos atua no mercado, as grandes drogarias são pagas pelos laboratórios para fazer microfilmagem ou cópia das receitas. “As máquinas são rotativas e, às vezes, ficam embaixo do balcão, e a cópia é feita praticamente na cara do paciente. Com essa informação, trabalhamos com os médicos que não estão prescrevendo e ofertamos brindes aos que nos ajudam”, relata o representante, que pediu para não ser identificado. Para Roberto D’Ávila, o controle da receita fere o sigilo profissional. “É uma violação de segredo profissional e é tratada de forma aberta pelos representantes. Já fui inquirido pelos propagandistas de que eu não estava prescrevendo determinado medicamento, com argumentos do tipo ‘preciso de uma força para cumprir minha cota’ ”, relata. Outra estratégia é a venda dos remédios bo-nificados, conhecidos como os ‘BOS’, que são aqueles em função dos quais o balconista é comissionado pelo laboratório. “Eles ganham de R$ 0,50 a R$ 1,00 por caixa vendida. É o que nós chamamos de “empurro-terapia”, revela o representante. Além disso, os laboratórios distribuem para a classe médica revistas científicas produzidas por eles e propagandas de medicamentos, com cartões, como se fosse de crédito, para serem entregues aos pacientes com a oferta de descontos. Essa estratégia garante a fidelização no uso daquele medicamento, evitando que o usuário migre para os genéricos, geralmente mais baratos, ou similares.

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