GERAL

A política como extensão da ética

Por José Antônio Silva / Publicado em 18 de junho de 2007

Mais que um nome, José Paulo Bisol é quase um símbolo da atuação política inseparável da ética, com todos riscos que essa postura implica. Aos 78 anos de idade, o porto-alegrense Bisol vive hoje um cotidiano ameno, embalado pelo canto dos canários-da-terra e da revoada de saracuras, garças e marrecos. Mas essa aposentadoria em um condomínio horizontal às margens da Lagoa Pacheco, em Osório, mais do que o descanso de um guerreiro, é um reafirmar de sua inquietação política e intelectual, que o faz acompanhar com atenção os rumos da política e da sociedade brasileira. Ex-senador da República, ex-deputado estadual, desembargador e professor universitário aposentado – além de candidato a vice-presidente da República em 1994 e secretário de Segurança durante o governo estadual de Olívio Dutra –, Bisol conheceu de perto, mais de uma vez, como pode ser avassalador o poder de fogo da grande mídia. “No momento estou bem, mas o estresse da Secretaria de Segurança virou câncer de rim”, relata. “Tive que fazer a extirpação de um deles, e o outro mantém apenas 30% da função”, afirma.

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Foto: René Cabrales

Foto: René Cabrales

O problema foi um dos frutos da duríssima guerra de desgaste imposta pela oposição ao Governo estadual petista (1999-2002) e turbinada pelos veículos mais influentes da mídia gaúcha, que culminou com uma polêmica CPI da Segurança Pública na Assembléia Legislativa. Ele mesmo um comunicador – ex-cronista de rádio e TV, escritor e poeta –, José Paulo Bisol já havia sofrido perseguição da mídia em 1994, que veiculou uma série de acusações falsas na tentativa de implodir sua candidatura a vice de Lula da Silva na campanha presidencial de então. Os canhões da grande imprensa conseguiram derrubar o alvo, mas seguem pagando o preço pela injustiça, tanto em dinheiro quanto na falta de credibilidade: em fins de 2006, o Jornal do Brasil foi condenado a pagar indenização de R$ 300 mil a ele por danos morais. O JB, assim, juntou-se a Zero Hora, O Globo, O Estado de S. Paulo, Correio Brasiliense e revista IstoÉ, que já haviam sido condenados pelo STF. Na época, a mídia acusou o gaúcho Bisol, então senador, de apresentar emendas superfaturadas ao Orçamento da União para beneficiar um município mineiro em que possuía uma fazenda – o que nunca aconteceu. Em abril deste ano, nova vitória judicial de Bisol: 141 delegados de polícia e 2 coronéis da BM perderam ações indenizatórias contra ele. Pretendiam condená-lo com base em entrevista dada em 1999, no programa Conversas Cruzadas, da TVCOM, quando teria afirmado a existência de “nível elevado de corrupção na instituição (policial)”. Todas as ações foram julgadas improcedentes.

Nesta entrevista, concedida com total exclusividade ao Extra Classe, o político fala de sua vida nos dias de hoje, aborda a questão da segurança pública, a necessidade de ampliar o debate público sobre a mídia, os problemas ambientais e ainda o quadro político nacional e latino-americano. Suas observações confirmam que a contribuição de Bisol a um Brasil melhor ainda não se encerrou.

EC – O duro combate que o senhor travou contra a chamada “banda podre” da polícia gaúcha, quando secretário estadual de Segurança, foi distorcido pela oposição e muito criticado à época. É possível traçar algum paralelo com a atual situação da segurança pública no Rio Grande?
Bisol
– Essas analogias são próprias de terceiras pessoas, isentas. O que importa é que o atual secretário (José Francisco Mallmann), além de ser íntegro e capaz, pertence à Polícia Federal. Esta polícia, nos últimos três lustros, deu a volta por cima em matéria de restauração moral e profissional. É, hoje, uma das instituições mais eficientes do Brasil. Com essa inexcedível experiência e esse sentimento de que é possível mudar inclusive a mentalidade que preside a polícia, o atual secretário pode conseguir resultados excelentes com os mesmos princípios que regeram nossa administração.

EC – Olhando para trás, o que sobrou da política de integração das polícias civil e militar que o senhor procurou implantar?
Bisol
– Sobrou o principal: a idéia de que a função policial é uma função civil por natureza e requer unidade sistêmica, que supõe a complementaridade das competências e a reciprocidade de informações. Não estou pregando a extinção da polícia militar, mas a consciência de que, mesmo quando organizada militarmente, a função da polícia será civil, e para isso deve estar preparada. O crime tem uma identidade fantasmática e circula difusamente em todos desvãos da sociedade, ou seja, é parte da sociedade. Não é muito adequado, portanto, compreender a relação entre policiais e bandidos como guerra. Isso é tudo o que o bandido quer, pois a guerra iguala os lados no desejo comum de matar. Ou seja, um tende a reproduzir o outro na eficiência destrutiva. Daí o problema da corrupção institucional, que é a mais corrosiva.

EC – Como o senhor vê a idéia de redução da idade para efeitos de criminalização de jovens infratores?
Bisol
– O neoliberalismo e sua mídia ocultam a força originária das desigualdades sociais, disseminando essa obsessão punitiva que toma a fisionomia de opinião pública. O adolescente deve ser tratado como adolescente. Nele, a rebeldia contra os pais e a sociedade é uma tendência natural e transitória. Mas estamos precisando de legislação nova para tratar o caso de adolescentes irrecuperáveis e daqueles que alcançam a idade adulta durante a internação.

EC – Onde se enquadra a questão da desigualdade social brasileira em todo esse debate sobre o aumento da violência e da criminalidade?
Bisol
– A violência tende a ser menor onde todos são igualmente pobres ou igualmente ricos, o que ninguém ignora. Logo, a desigualdade não é a única, mas é uma das mais importantes causas da violência. Igualar as pessoas é ilusório, só por abstração, como faz a democracia formal; contudo, igualar as oportunidades ou o acesso a uma educação e formação profissional qualificadas é concretamente realizável e é um dever da verdadeira democracia. O neoliberalismo e sua mídia preferem enfatizar a exacerbação das penas, uma medida historicamente inócua, em uma distorção ideológica de fácil diagnóstico…

EC – De que maneira o fato de menos de dez famílias controlarem a maior parte da informação veiculada por rádios, jornais e TVs no País influencia ou atrapalha a democracia brasileira?
Bisol
– Atrapalhar não é o verbo adequado. Esse aleijão impossibilita o desenvolvimento de uma democracia menos abstrata. É sabido que as corporações, governando a economia, governam os Governos. E a mídia predominante, que faz a opinião pública, é o mais poderoso instrumento dessa dominação. Estamos nessa aporia: precisamos de mídia para enfrentar a mídia.

EC – No final de 2006, o senhor ganhou uma ação contra o Jornal do Brasil – o Supremo Tribunal de Justiça já havia condenado outros órgãos de imprensa pelos mesmos motivos: notícias inverídicas para denegrir sua imagem política, quando candidato à vice na chapa de Lula da Silva à Presidência, em 1994. Considera essas condenações educativas para uma maior responsabilidade da imprensa?
Bisol
– Calúnia, injúria e difamação difundidas pela imprensa são irreversíveis. Essa irreversibilidade seria menor se a Justiça fosse mais rápida e tivesse igual disseminação. A coisa julgada, produzida mais de dez anos depois dos fatos, é inócua para quem perdeu muito de seu sentido e do valor de sua vida com a humilhação. A compensação financeira, seja qual for sua extensão, está longe de emparelhar com a perda. Quanto ao caráter intimidativo ou educativo de tais decisões judiciais, penso que praticamente não existe. Os tablóides ingleses, por exemplo, sofrem condenações e persistem. Calculam o custo-benefício e se tornam ainda mais detratores.

EC – O que a sociedade brasileira pode fazer para modificar este quadro?
Bisol
– Ampliar a discussão sobre a relação entre cinismo e jornalismo, sobre a democratização da mídia e sobre a parcialidade da chamada mídia investigatória, além de exigir das matérias de opinião a forma explícita de opinião e seu lugar de inscrição, que é o debate – sobre o que os gregos clássicos tinham a maior clareza.

EC – Qual o papel do Brasil em uma América Latina que, de diferentes modos nos últimos anos, vem buscando formas à esquerda para fugir do formulário hegemônico do neoliberalismo?
Bisol
– O Brasil precisa definir mais claramente sua política de erradicação da pobreza e lhe dar a prioridade maior, para então pensar em cumprir um papel importante nessa América Latina, onde as doenças do populismo e do nacionalismo rasteiro ainda vingam.

EC – Questões cruciais como o aquecimento global e a acelerada destruição do meio ambiente ainda devem ser submetidas aos interesses econômicos e políticos que pregam o desenvolvimento a qualquer custo?
Bisol
– De modo nenhum. Desenvolvimento a qualquer custo é genocídio. Desenvolvimento controlado com democratização do acesso ao que ele alcança é o caminho. Uma partilha equânime dos frutos já contém a idéia de controle e preservação ambiental.

EC – O senhor considera-se aposentado da vida política, ou ela ainda o atrai? Algum convite para concorrer a um cargo público poderia ser considerado?
Bisol
– Se me sentisse necessário, ou ao menos relevante, socialmente relevante, pensaria em pensar. Mas, certamente, não será o caso. “Por enquanto” estou “definitivamente” retirado e, por mais que a vida insista, a morte é daqui a pouco.

EC – Qual a sua rotina diária atualmente? Tem algum hobby?
Bisol
– Caminhar, nadar e ler. Também estudo inglês, francês e italiano para passar o tempo e sofro com o Grêmio na TV. Eu ia deixando a música clássica de lado, por deficiência auditiva, mas agora, com aparelhos nas orelhas, recomeço. Tudo isso e mais muito cinema em DVD…

EC – E o que o senhor está lendo no momento?
Bisol
– Estou lendo A sociedade dos indivíduos, do sociólogo alemão Norbert Elias, e 64 Contos, de Rubem Fonseca.

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