GERAL

Os donos da lei e da mídia

Por Aloísio Milani e André Deak*, de Brasília / Publicado em 15 de novembro de 2007

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Ilustrações de Pedro Alice

Ilustrações de Pedro Alice

Coronelismo eletrônico é o nome que vários pesquisadores dão para o vínculo que as elites políticas locais e regionais do Brasil têm com veículos de comunicação de massa. A lei proíbe que isso aconteça, mas isso não impede que pelo menos um terço dos 81 senadores e mais de 10% dos 513 deputados federais controlem canais de rádio ou televisão. Entre esses, três deputados do Rio Grande do Sul são donos ou sócios de emissoras. Um senador gaúcho também tem forte ligação com rádios locais, tendo inclusive trabalhado por anos – antes e depois de ter sido eleito – numa delas, do grupo RBS. Pelo menos um político da Assembléia Legislativa do estado também é dono de rádios. Não são os primeiros, nem serão os últimos. Mas já há quem lute contra isso, até mesmo parlamentares, dentro do próprio Congresso.

Artigo 54 da Constituição afirma que deputados e senadores, a partir do momento em que tomam posse, não podem “firmar ou manter contrato” ou “aceitar ou exercer cargo, função ou emprego remunerado” em empresa concessionária de serviço público. Rádios e televisões são justamente isso: estruturas jurídicas que recebem concessão de uso de uma faixa do espectro eletromagnético por onde transmitem sua programação. Espectro esse que é público, finito e, por isso, regulado pelo Estado. A primeira linha do artigo seguinte da Constituição, de número 55, diz o seguinte: “Perderá o mandato o deputado ou senador que infringir qualquer das proibições estabelecidas no artigo anterior”. Nunca aconteceu.

No Rio Grande do Sul, o deputado Nelson Proença, que atualmente está licenciado, trabalhando como secretário de Desenvolvimento e Assuntos Internacionais da governadora Yeda Crusius, consta da lista de donos de rádio e televisão divulgada pelo Ministério das Comunicações. O deputado Ruy Pauletti (PSDB), ex-reitor da Universidade de Caxias do Sul, também está na primeira lista do Ministério das Comunicações, mas sua assessoria informou que ele deixou todas as “atividades acadêmicas”, e que inclusive saiu da direção da rádio. Na mesma lista está o deputado estadual Adroaldo Loureiro (PDT), sócio de uma rádio em Santo  ngelo. Outro caso, de acordo com levantamento feito em 2004 pelo pesquisador Venício de Lima, é o do senador gaúcho Sérgio Zambiasi (PTB). Foi funcionário da Rádio Farroupilha, do grupo RBS, até 2004. Zambiasi também foi o relator do ato que renovou a permissão de uma rádio de outro político, o colega senador Garibaldi Alves (PMDB-RN). A rádio de Garibaldi tem o sugestivo nome de Trampolim da Vitória Ltda. O próprio Garibaldi era o relator do ato que renovaria a concessão de sua própria rádio, mas foi substituído por Zambiasi. Eleito em 2002, o senador gaúcho diz em seu site que “é impossível separar o pai de família, o político e o radialista”.

Quem é quem

Não é simples descobrir quem são os políticos donos, funcionários ou parentes de proprietários de empresas de comunicação concessionárias de serviço público. O mais recente esforço de cruzamento de dados foi feito pela Agência Repórter Social. As bases de dados foram as declarações prestadas pelos próprios parlamentares aos Tribunais Regionais Eleitorais (TREs), além da pesquisa do Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação (Epcom), do Rio Grande do Sul, que divulgou uma lista de senadores com parentes donos de emissoras. A terceira fonte é uma lista divulgada pelo sociólogo e doutor em Comunicações da Universidade de Brasília (Unb), Venício de Lima, de parlamentares que têm os nomes entre os sócios de concessionárias, numa listagem divulgada pelo Ministério das Comunicações – que foi retirada do site do governo.

Além desses parlamentares, entretanto, muitos outros podem dirigir veículos de comunicação sem que a sociedade saiba. A dificuldade para descobrir, com precisão, quantos deles têm concessões, é grande. Não há uma lista pública atualizada com os nomes dos sócios proprietários de rádios e televisões. E, mesmo que houvesse, muitos parlamentares colocam as empresas em nomes de laranjas, às vezes sem parentesco algum.

Legislando em causa própria

O caso do hoje secretário estadual Nelson Proença é exemplar. Foi destacado, inclusive, no livro Mídia: Crise Política e Poder no Brasil, de Venício de Lima. Ele é um dos poucos deputados que literalmente legislaram em causa própria: votaram a favor da renovação de concessões de emissoras em que apareciam como sócios. “O que nossa pesquisa revela é que há fortes indícios de que a Constituição, o Código Brasileiro de Telecomunicações e o Regimento Interno da Câmara dos Deputados estão sendo desrespeitados”, afirma o livro no trecho em que destaca o caso do deputado.

Licenciado do cargo de deputado federal, Proença hoje é secretário estadual e se defende dizendo que não vê “nenhuma inconstitucionalidade” em ser parlamentar e ter uma concessão. “Por todas as consultas que já fiz a advogados, o que existe de impedimento é ter funções executivas nessa rádio”, justifica. Por isso, Proença afirma que tem renovado de maneira sucessiva sua licença sempre que se candidatou: 1990, 1994, 1998, 2002 e 2006. Perguntado sobre a votação de sua própria concessão, o deputado licenciado disse que é “costume” da comissão votar todos os pedidos em bloco e “simbolicamente”, sem discutir caso a caso.

Proença não foi o único parlamentar dono de rádio ou televisão a analisar concessões. Um de cada cinco membros da comissão que avalia as outorgas está nessa situação. E mesmo em outra instância, a subcomissão especial criada em fevereiro de 2007 para “analisar as normas de outorga e renovação de concessão, permissão ou autorização de serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagem”, há donos de emissoras. O deputado Jorginho Maluly (PFL-SP) é um deles.

“Eu mesmo tenho uma pequena emissora de rádio, mas se minha participação for ter alguma conotação de parcialidade, eu abro mão, para que outros colegas decidam se minha empresa está dentro dos padrões”, diz Jorginho. O deputado cita, inclusive, a existência de uma proposta para que a lei volte a ser como era antes de 1988, no período militar: “Existe até uma corrente, defendida pelo deputado Paulo Bornhausen (PFL-SC), de tirar do Congresso essa prerrogativa de conceder as outorgas, de deixar no próprio ministério, para não ter esse vínculo do parlamentar interferir na concessão de uma empresa do seu interesse”.

Questionado sobre o Artigo 54 da Constituição, Maluly diz que conseguiu a rádio antes de se eleger. “Existe algo que se chama direito adquirido. Temos na Constituição um artigo que diz que promotor público não pode participar do processo político, e temos deputados que são promotores. Por quê? Porque tinham o direito antes da Constituição. Me tornei parlamentar agora, mas jamais vou usar do meu poder para me beneficiar pessoalmente. Quando houver algo do meu interesse, nem participarei de votações. Não podemos misturar os interesses pessoais com os interesses da nação”, defende. Para o pesquisador Venício de Lima não é bem assim. “Há um impedimento legal. Isso é uma incoerência. Como o camarada que concede a concessão pode também ser o mesmo que consegue a concessão? Há uma flagrante obscenidade no ato. Isso existe por causa de uma interpretação equivocada da lei. E mesmo antes de 88 havia o código das comunicações, que também impedia isso”.

Além de Jorginho, outro parlamentar membro da subcomissão especial que analisa as normas para concessão é o deputado Frank Aguiar (PTB-SP). “Estamos analisando as melhores formas de restringir isso, para que os parlamentares não possam usufruir de uma licença que é pública”, defende. Ele faz questão de destacar que nunca teve uma concessão pública. Novato na vida política, mas rodado nos bailes de forró, onde é conhecido como o “Cãozinho dos Teclados”, Aguiar analisa que estar em projeção na mídia faz, sim, diferença na hora da eleição. “Óbvio que a arte possibilita meios de se comunicar com a população muito mais diretamente. Na mídia, como parlamentar, você tem um espaço mínimo, que tem de disputar com outros 512. Como artista, você fala diretamente com a população”.

Assim como Aguiar, outro parlamentar que beneficiou-se dos meios de comunicação para alcançar uma vaga na Câmara dos Deputados é Carlos Alberto Leréia (PSDB-GO). Radialista de origem, Leréia admite que o “rádio tem uma interação imediata com o cidadão, de divulgar idéias”, mas não considera que foi favorecido politicamente pelo fato ser proprietário de uma rádio, Rádio FM Serra da Mesa, em Minaçu, em que tinha um programa. “Não atuo desde 1996”, defende-se. Na época, já havia exercido o mandato de deputado estadual em Goiás e era suplente de sua segunda legislatura. Leréia também se defende dizendo que conseguiu a concessão antes de se tornar político. Por “direito adquirido”, não poderia ter sua concessão retirada. “Eu sou profissional da área”.

Revendo o marco regulatório

Presidente da subcomissão especial da Câmara que analisa o assunto, a deputada Luiza Erundina (PSB-SP) disse acreditar que uma legislação específica, criada em parceria com a população e entidades do setor, dará mais segurança para os deputados aprovarem ou negarem a outorga e renovação de concessões às emissoras educativas. “A gente quer uma PEC (Proposta de Emenda Constitucional) para substituir o artigo 54, que deixa brechas para interpretações diversas. Precisamos prevenir [que parlamentares tenham emissoras], e corrigir os casos ilegais, inconstitucionais. Precisamos rever todo o marco regulatório”, diz a deputada.

Segundo ela, até novembro a comissão deve receber as sugestões. Enquanto isso, a deputada já começou a buscar apoio no plenário, com parlamentares que têm projetos sobre o assunto. “Não estamos começando do marco zero. Não vai ser fácil, temos consciência disso. Mas temos o apoio dos trabalhadores da comunicação, de movimentos populares, bastante apoio externo. Já está na pauta de alguns segmentos”. Erundina diz que mesmo sem a maioria de votos na comissão, “vamos levar o debate adiante”. Para Venício, é um começo: “Na subcomissão, de 14 membros, pelo menos a Erundina está conseguindo levantar o problema. Esse é o primeiro passo”.

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