OPINIÃO

O Cerzidor de Palavras

Publicado em 15 de dezembro de 2007

“A aparência é tudo.” Podia ser um dístico na lojinha do homem que consertava palavras rotas e descosidas, mas nem placa havia.

Era o murmúrio na entrega do serviço a mais um cliente satisfeito. Um mestre na arte de remendar idéias mal costuradas e afins. (Isso foi antes do Efeito Shopping, que fez sumir no seu entorno o cinto de utilidades da cidade: armarinhos atenciosos, lojinhas serviçais, balcões prestativos.)

Não se sabe se era quieto por natureza ou dever de ofício. Sabe-se da clientela incessante. Que sua maior fonte de renda era cerzir desculpas esfarrapadas, por dois tipos de clientes: os que iriam se desculpar e achavam que não estavam se apresentando bem, e os que tinham recebido péssimas desculpas e queriam torná-las desculpáveis. No dia seguinte (seu prazo mais longo), saíam já desculpados ou se desculpando impecavelmente.

E o dia se ia, na fila de encomendas típicas. Comuns os fregueses de papo furado. O cerzidor, que recuperava crédito inclusive em conversa fiada, sumia nos fundos e de lá voltava com um papo quase novo: coerente, denso, embasado – sem furos. Tudo por uma módica quantia. “Prefiro ganhar no volume”, murmurava.

Vez em quando apareciam escritores e jornalistas. Textos desalinhados que ele alinhava na hora. E surgiam críticos e resenhadores com elogios rasgados, querendo-os íntegros.

O cerzidor não falhava.

Em vão tentaram esmiuçar sua habilidade. Jamais revelou nada nem nunca permitiu visitas atrás do biombo. Quem espichasse o pescoço, só veria as pilhas de expressões gastas e frases surradas, à espera da ansiada restauração.

Toda uma vida de cerzimentos, óculos na ponta do nariz, bigode à la Dr. Macarra. Anos e anos pegando explicações disformes e deixando-as nos conformes. Alinhavando pensamentos para autores iniciantes (como eu, na ocasião). Dedicação sem-fim a sínteses esgarçadas, pregações despregadas, discursos esfiapados etc.

Até que um dia, ponto final. Fora cerzir no além, disse um dos piores ex-clientes. À frente da porta lacrada, papos furados sobre a Morte. Lembranças descosturadas. Frases desbotadas de pesar.

E ninguém para recompô-las.

Só uma vez o vi recusar trabalho. Alguém indagou se ele podia dar um jeito numa declaração. Era uma mentira deslavada. O cerzidor arqueou o olhar, sequer tocou naquilo. Num menear de cabeça, a decisão. E se justificou, ética e tecnicamente: “– Certas coisas eu não faço.”

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