CULTURA

O polêmico resgate do general farrapo

Antiga residência de David Canabarro vai virar museu, e praça receberá memorial com restos mortais do general. Por trás da iniciativa permanece a polêmica em torno do episódio que levou ao massacre dos lan
Por Cleber Dioni / Publicado em 26 de março de 2008

Tradicionalistas de Santana do Livramento, município da Fronteira-oeste do estado, estão preparando para este ano diversas homenagens ao general David Canabarro. Os eventos têm por objetivo mudar a imagem de traidor dos soldados negros farrapos daquele que consideram um dos maiores heróis rio-grandenses.

Estão previstas as construções do Museu do Pampa e de um memorial para abrigar o mausoléu com os restos mortais do líder farroupilha, que retornam à cidade em setembro de 2008. A propriedade que pertenceu a Canabarro vai virar o Museu do Pampa Gaúcho, projeto elaborado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em convênio com a prefeitura de Livramento. A administração municipal comprou o imóvel para que o Iphan o reformasse. O próprio instituto vai supervisionar a instalação do espaço cultural.

O antigo morador, Luiz de Mello Arnes, residiu com seus familiares na casa histórica por mais de três décadas. O município desembolsou R$ 200 mil para receber as chaves. A propriedade fica na avenida 24 de Maio, 1024, esquina com a rua Barão do Triunfo e ao lado de uma unidade do Exército. Está distante cerca de 500 metros da Praça General Osório, no Centro, que abrigará o mausoléu.

Canabarro mandou construir a residência por volta de 1845 para servir de hospedagem a ele e a seus familiares enquanto estivessem de passagem na cidade. Depois, doou para uma irmã. O general passava a maior parte do tempo na estância São Gregório, em Livramento. Viveu na campanha até a morte, em 1867.

A casa é simples. Os registros do Iphan da época do tombamento, em maio de 1953, dão alguns detalhes: “…paredes externas em alvenaria de pedra, as internas em pau-a-pique e a cobertura em telhas cerâmicas”…

Museu será pólo cultural

A diretora do Departamento de Cultura de Livramento, Cecília Amaral, diz que o museu deve se transformar numa referência sobre a história da conquista da fronteira. A historiadora Beatriz Muniz Freire, do Iphan, é quem vai supervisionar a instalação do museu. Ela ressalta que a proposta não é narrar a trajetória de Canabarro, mas transformar o Museu do Pampa num referencial da cultura gaúcha da Campanha.

A casa será umas das peças do museu, que pode se transformar num projeto maior, num “pólo cultural”, que incluiria o prédio da Estação Ferroviária, hoje em desuso, que fica nas proximidades.

No museu serão instaladas salas de espetáculo e de exposições, biblioteca, coleções de interesse artístico e histórico. Por enquanto, o Iphan está preparando o segundo módulo de oficinas de capacitação profissional – o primeiro foi realizado em outubro de 2005 –, onde são oferecidos à comunidade noções de patrimônio, legislação, museus e museologia.

Despojos retornarão à cidade após 60 anos

Um memorial será erguido na Praça General Osório para receber os restos mortais de Canabarro, que retornarão ao município após 61 anos.

A comissão responsável pelo traslado está buscando recursos através das leis de incentivo à cultura, estadual e federal. A entidade espera que instituições públicas e privadas contribuam para a construção do espaço, orçado em R$ 150 mil. Está incluído aí um novo busto de Canabarro, já que o antigo foi roubado. “Tão logo tenhamos o projeto aprovado na Lei Rouanet, esperamos que empresas privadas ajudem”, afirma o poeta e tradicionalista Edilson Villagran Martins, presidente da comissão.

O memorial foi concebido como o Espaço David Canabarro. A autora do projeto é a arquiteta Ana Zart Bonilha. “A idéia central é resgatar a memória histórica dos santanenses e ao mesmo tempo criar um espaço de convívio e contemplação que se torne referência para o turismo da fronteira”, ressalta a arquiteta. Na pedra sobre os despojos serão gravados os nomes das principais batalhas das quais participou. O espaço terá ainda um jardim feito com terra de Taquari, um espelho d’água e bancos no entorno.

Militar aos 15 anos

Canabarro nasceu David José Martins no dia 22 de agosto de 1796, no município gaúcho de Taquari. Era filho do porto-alegrense José Martins Coelho e da catarinense Mariana Inácia de Jesus.

Iniciou a carreira militar na campanha de Dom Diogo, aos 15 anos. Se tornou um farroupilha em 1836. Participou das Campanhas contra Oribe e Rosas e da Guerra do Paraguai.

Tinha cerca de 32 anos quando foi morar com o tio Antônio Ferreira Canabarro na estância São Gregório, em Livramento. Foi o tio quem o inspirou a mudar seu sobrenome.

O fato de terem sido criados no município dezenas de parentes do general explica em parte o carinho especial que o povo santanense dedica a Canabarro. Acredita-se que todos os parentes que vivem hoje em Livramento descendam de Maria Angélica, a filha mais velha de Canabarro. Jurema Fernandes Caggiani, viúva do jornalista Ivo Caggiani e João Fernandes são alguns dos bisnetos de Maria Angélica, que casou com 14 anos e teve 14 filhos.

Proposta existe desde 1954
A idéia de transformar a casa bicentenária em museu surgiu em 1954, um ano depois de ser tombada pelo Iphan. Foi proposta pelo historiador e jornalista Ivo Caggiani, biógrafo do general farrapo. Caggiani, falecido em abril de 2000, queria também o tombamento da fazenda São Gregório e do quartel-general de Canabarro. Mas não vingou. O jornalista também foi o primeiro a pedir o retorno dos restos mortais do oficial para Livramento.

Uma longa jornada

Villagran diz que já está de posse das autorizações para realizar a longa jornada até Livramento. O prefeito de Taquari, Renato Baptista dos Santos, em 2006, chegou a esboçar uma reação contra a idéia, mas foi demovido pelos próprios descendentes de Canabarro que moram na Fronteira-oeste. Hoje, evita falar no assunto. Ele pretende distribuir cem medalhas com a estampa cunhada do general para todas instituições e pessoas que contribuíram para o traslado da urna.

Piquete criou Chama Crioula

A chegada dos restos mortais de David Canabarro em Porto Alegre, em setembro de 1947, coincide com a criação da Chama Crioula, símbolo máximo das comemorações da Semana Farroupilha. Alguns dos jovens tradicionalistas que realizaram o cortejo fúnebre, a cavalo, no dia 5, participaram do piquete no acendimento da primeira Chama Crioula, no dia 7. Foi o embrião do Movimento Tradicionalista Gaúcho.

Houve traição?

O jornalista Ivo Caggiani sempre discordou da versão de que Canabarro tivesse traído os lanceiros negros para acertar a paz com Caxias. O historiador Sérgio da Costa Franco diz que “ainda não existem provas definitivas da traição”. Já para o professor Moacyr Flores não restam dúvidas sobre combinação entre o general e Caxias. Flores aponta vários indícios, entre eles o fato de Canabarro ter ignorado a presença de soldados imperiais perto do acampamento.

O combate de Porongos aconteceu na madrugada de 14 de novembro de 1844 no Cerro de Porongos, município de Pinheiro Machado. Cerca de cem soldados negros a serviço dos Farrapos foram mortos por uma coluna imperial sob as ordens do coronel Chico Pedro. A controvérsia gira em torno dos motivos que levaram Canabarro ter mandado desarmar os negros: por que temia uma revolta interna ou por que havia combinado com o Império o extermínio desses lanceiros? O certo é que foram massacrados.

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