MOVIMENTO

Política frágil e polícia feroz

Especialistas analisam a relação que há entre a violência praticada por agentes da lei e a fragilização das instituições do estado
Por Paulo César Teixeira / Publicado em 24 de agosto de 2008

Quando governou o Brasil, entre 1926 e 1930, o presidente Washington Luís adotou o princípio de que a questão social é, antes de tudo, um caso de polícia.

Quase oito décadas depois, esse conceito ainda é atual para a definição de políticas de segurança pública adotadas em diversos estados brasileiros, incluindo o Rio Grande do Sul.

Ao uso da força de repressão como resposta às reivindicações dos movimentos sociais, soma-se a violência que atinge, principalmente, camadas mais pobres da população na linha de tiro entre policiais e criminosos.

“Baderna de gente desocupada”. Assim o comandante-geral da Brigada Militar, coronel Paulo Mendes Rodrigues, classificou a manifestação de 1,2 mil agricultores, trabalhadores urbanos e estudantes, ocorrida em Porto Alegre, em 11 de junho, contra a alta dos preços dos alimentos e a política do governo estadual de incentivo às empresas multinacionais.

“A meu juízo, se fossem trabalhadores, não estariam fazendo o que estavam fazendo ali”, reiterou Mendes ao Extra Classe.

O saldo do conflito entre policiais e manifestantes foi de sete feridos, entre eles, um agricultor com hemorragia interna devido a golpes de cassetete na altura do tórax.

Doze pessoas foram presas, incluindo o motorista do carro de som e os músicos, enquadradas em crimes como formação de quadrilha e depredação do patrimônio.

A radicalização do discurso e da ação das autoridades de segurança pública não é um fenômeno exclusivamente gaúcho e não se restringe à repressão aos movimentos sociais.

A cada dia, aumenta o número de vítimas da violência praticada por policiais militares nas cidades brasileiras.

Em julho, pelo menos três crianças foram mortas. No dia 6, João Roberto Amaral, de 3 anos, foi baleado durante perseguição de PMs a supostos assaltantes no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro.

Em 18 de junho, Maria Eduarda Barros, de 9 anos, morreu ao sair de uma festa com a família e deparar com ação da PM de Pernambuco contra tentativa de assalto em Recife.

Dois dias depois, foi a vez de uma menina de 8 anos ser alvejada por um PM à paisana em Igarapé do Meio, no Maranhão.

Os moradores reagiram com violência à morte da criança, incendiando a Câmara Municipal e a delegacia da cidade. Na confusão, dez presos fugiram.

Legitimidade e poder

Como explicar estas mortes? Jair Krischke, do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), lembra que a própria expressão polícia militar constitui por si só uma antinomia.

A palavra polícia remete ao grego politeía, ou a ‘qualidade e direitos de cidadão’, conforme o dicionário Houaiss, da Língua Portuguesa.

Já militar refere-se à expressão latina militìa, ‘serviço militar, campanha, expedição militar, operação militar, milícia’.

“A polícia é um órgão do aparelho de Estado, destinada a proteger o cidadão, inclusive o que comete delito. Já o militar é treinado para vencer um inimigo e submetê-lo à sua vontade. Não há relação entre uma coisa e outra”, afirma Krischke.

Até 1968, as PMs não tinham atribuições de policiamento no Brasil.

Atuavam antes como um “exército particular dos governadores”, tanto que, durante a Campanha da Legalidade, em 1961, a BM chegou a instalar metralhadoras antiaéreas no alto do Palácio Piratini para proteger Leonel Brizola.

A mudança das atribuições foi efetivada através de decreto durante o regime militar com o intuito de “incorporar um setor confiável e subordinado pela hierarquia militar ao aparelho de repressão”, diz Krischke.

A contradição semântica tende a se aprofundar com a nomeação do general Edson de Oliveira Goularte para o lugar de José Francisco Mallmann no cargo de Secretário de Segurança Pública do RS, aposta o representante do MJDH.

“Aparentemente, a governadora Yeda Crusius está pretendendo declarar guerra, porque general serve para a guerra. Apesar de bem-intencionado, tendo formação militar, o novo secretário é apenas um curioso e não um especialista no tema da segurança pública”.

Krischke lembra que às milícias do Império Romano não era permitido ingressar em Roma: “Elas acampavam fora dos muros da cidade, enquanto o general entrava sozinho e prestava homenagem aos deuses nos templos. Quanta sabedoria”!

Um dos primeiros desafios de Goularte será equacionar a atuação da Brigada Militar nas penitenciárias gaúchas, uma vez que a corporação já ocupa 15 presídios, o que é inconstitucional, conforme Krischke.

“A BM entrou provisoriamente dentro das penitenciárias durante o governo de Antônio Britto e até hoje não saiu, contrariando a Constituição do RS, que determina expressamente que à corporação cabe apenas a guarda externa dos estabelecimentos”.

Para o procurador do Ministério Público Federal, Domingos Sávio Dresch da Silveira, o que estamos vivenciando é a triste concretização da teoria do filósofo alemão Max Weber (1864-1918), segundo a qual quanto menos legitimidade tiver o poder, mais necessário será o uso da coerção.

Ele lembra também a distinção feita pela pensadora alemã Hannah Arendt (1906-1975) entre autoridade e violência: “A primeira remete ao poder legitimado, enquanto violência diz respeito ao exercício do poder sem legitimidade alguma”, salienta Silveira, que também é professor de Direito da Ufrgs.

Ex-secretário nacional de Segurança Pública, Luiz Eduardo Soares reforça a ideia de que há indícios de crise de legitimidade das instituições quando o Estado recorre frequentemente à força:

“Existem situações específicas em que ela se justifica em defesa da vida dos cidadãos ou dos profissionais de segurança, mas só em casos extremos”.

O caso do Rio de Janeiro é emblemático: de 2003 a 2007, mais de 5,6 mil pessoas foram mortas em operações policiais, o que corresponde a mais de mil por ano.

Em 2007, foram 1.330 óbitos. “Para se ter uma ideia, com uma população de 300 milhões de habitantes, os Estados Unidos registram média de 300 mortes por ano em ações policiais”, anota Luiz Eduardo.

E se alguém imaginar que as vítimas da PM fluminense sejam única e exclusivamente criminosos, que agindo com violência forçaram uma reação dos agentes da lei, basta citar que 75% dos casos configuram nitidamente execuções, com tiros na nuca, pelas costas ou em curta distância.

“O mais grave é que a maioria absoluta das vítimas da ação letal da polícia é formada por negros pobres do sexo masculino. Em raríssimas situações, outros segmentos sociais são atingidos”.

Propaganda enganosa

Os especialistas concordam ainda que as medidas de repressão, além de ineficazes no combate à criminalidade, demonstram a incapacidade do Estado de investir adequadamente em políticas sociais preventivas.

Atualmente, cada menor infrator detido na Fundação de Atendimento Auto-Educativo (Fase, antiga Febem) implica gastos de R$ 3,5 mil mensais para a população.

“Se a gente olhar para trás vai verificar que, muito provavelmente, o Estado não tenha desembolsado este valor para evitar que o menor praticasse atos ilícitos. Com R$ 3,5 mil mensais, seria possível até matriculá-lo em uma escola na Suíça”, comenta Dresch da Silveira.

Outro dado que espanta o procurador do MPF é o saldo das barreiras realizadas pela Brigada Militar à cata de infratores da lei.

Em 2004, por exemplo, foram abordadas 4.170.888 pessoas. Apenas 39.930 foram presas (0,95%), sendo apreendidas 6.766 armas de fogo (0,16% em relação ao número de abordagens).

“Até que ponto é racional restringir o direito de ir e vir para se ter uma falsa sensação de segurança? Além de cara, a blitz mostra-se ineficiente”, frisa Silveira.

Jair Krischke, do MJDH, sustenta que as barreiras são ilegais, uma vez que o cidadão somente é obrigado a submeter-se à revista da polícia quando existe “fundada suspeita”.

Não é o caso de trabalhadores que descem de ônibus com as mãos para cima para serem revistados: “Além de humilhar e molestar ilegalmente as pessoas, as barreiras constituem propaganda enganosa. O criminoso sabe onde elas estão armadas e, por isso, não passa ali”.

Campeão da barbárie

O Presídio Central de Porto Alegre foi apontado como o pior estabelecimento carcerário do país e comparado a um “campo de concentração nazista” pelo relator da CPI dos Presídios, deputado Domingos Dutra (PT-MA).

“No dia da visita da CPI (27 de março), havia esgoto, lixo e ratos misturados com gente, além da prática de comércio de arroz, feijão, óleo e farinha a preços superfaturados, quando a alimentação em penitenciárias é obrigação do Estado. Havia também muitos presos provisórios aguardando sentença há anos. Apenas 300 presidiários estavam estudando ou trabalhando”, afirma Dutra.

Projetado para 1,1 mil presos, o PC abriga atualmente mais de 4,3 mil. Conforme Jair Krischke, do MJDH, é o de maior lotação da América Latina.

De imediato, a CPI responsabilizou sete autoridades do Executivo e do Judiciário pela situação da penitenciária.

Os parlamentares solicitaram ao governo do Estado a proibição do ingresso de novos apenados, a desativação das alas que se encontram impraticáveis para habitação humana e, em médio prazo, o fechamento do presídio.

“Após receber relatório, as autoridades gaúchas terão prazo de 30 dias para informar à Câmara dos Deputados as providências adotadas. A cada seis meses, deverão prestar contas do que está sendo feito, sob pena de responderem por crime de responsabilidade”, diz Dutra.

No início de junho, a governadora Yeda Crusius anunciou a intenção de implodir o Presídio Central. Mas a medida só deverá ser tomada depois que as nove casas de detenção do RS previstas nas obras do PAC da Segurança forem construídas.

Tropa de Elite

Desde que assumiu o comando-geral da BM, em janeiro deste ano, o coronel Paulo Mendes Rodrigues vem pautando suas manifestações públicas com um discurso de radicalização.

Apontado como o “Capitão Nascimento dos pampas” (referência ao protagonista do filme Tropa de elite) pelos movimentos sociais, ele já defendeu a pena de morte e a ida de bandidos para o “paredão”.

Além disso, em 2007, opinou que os cidadãos deveriam começar a reagir aos assaltos, em contraposição às orientações da própria polícia civil.

“Somos guardiões da lei. A polícia não existe para fazer interpretações subjetivas. Isso é questão do Judiciário. Quando tomamos conhecimento de uma ilicitude, temos que agir, sob pena de prevaricar”, afirma Mendes.

Na visão do deputado estadual Dionilso Marcon (PT), “quem está faceiro com as orientações da BM são os ladrões de carro, assaltantes de banco e sequestradores, que o coronel Mendes tem medo de enfrentar”.

O parlamentar argumenta que, enquanto a corporação desloca efetivos de até mil policiais para cumprir mandados de busca e apreensão em acampamentos do MST, como fez em São Gabriel, em maio, não se vê brigadianos em número suficiente patrulhando as ruas.

O deslocamento das reivindicações sociais para a esfera criminal inclui também a publicação da ata de uma reunião do Conselho Superior do Ministério Público Estadual.

Em 3 de dezembro de 2007, os conselheiros aprovaram por unanimidade instaurar ações civis públicas visando à dissolução do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra e a declará-lo ilegal, por ser “esquerdista” e “anticapitalista”.

Para o jurista Dalmo Dallari, professor de Direito da Universidade de São Paulo (USP), “é surpreendente que o Conselho tenha aprovado uma proposta dessas. O aspecto jurídico foi completamente esquecido”.

De acordo com o procurador do Estado aposentado e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos, Jacques Távora Alfonsin, “fundadas em inquérito secreto, com apoio da Brigada Militar, em quatro comarcas diferentes (Carazinho, Canoas, Pedro Osório e Pelotas), as ações já contam com liminares deferidas sem audiência prévia ou chance de defesa dos réus, atribuindo-lhes práticas criminosas de maneira aleatória, somente pelo fato de pertencerem ao movimento social.

Estas pessoas não estão sendo processadas pelo que fazem, mas sim pelo que são, ou seja, trabalhadores, pobres, alguns miseráveis, mas que têm direito à vida digna e à reforma agrária”.

ENTREVISTA

Conflitos desembocam na segurança

Dias antes de abandonar o cargo, o ex-secretário de Segurança Pública do RS, José Francisco Mallmann, concedeu entrevista ao Extra Classe:

Extra Classe – O senhor concorda com a ideia de que a questão social é um caso de polícia?
José Francisco Mallmann – No Brasil, não foram equacionados problemas de emprego, habitação e saneamento básico, para citar alguns. Enquanto essas questões não são resolvidas, conflitos são gerados e as conseqüências desembocam na segurança pública.

EC – Por que as forças de segurança agem com mais violência em áreas habitadas por camadas sociais de baixa renda?
Mallmann – Elas agem dentro de critérios profissionais na defesa de toda a sociedade. O que se verifica é que em estratos sociais desfavorecidos o índice de agressão física – com a utilização, inclusive, de armas – é mais acentuado. Nessa situação, faz-se necessária a ação pontual e rigorosa, na defesa da integridade da vítima, que na maioria dos casos é a própria comunidade local, do autor e do agente da lei.

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