GERAL

Pontal da discórdia, um romance “quase(?)” policial

A rapidez com que uma alteração na Lei municipal 470/02 foi aprovada na Câmara de Vereadores de Porto Alegre e a forte presença de empresários da construção civil no dia da votação provocaram desconfiança
Por Naira Hofmeister / Publicado em 18 de dezembro de 2008

Ouvido por nossa reportagem, com exclusividade, no último dia 25 de novembro, o prefeito de Porto Alegre, José Fogaça, admite. “A decisão de permitir um empreendimento na área do Estaleiro Só não poderia partir da empresa. O poder público precisava – e precisa – de uma ampla manifestação da cidade a esse respeito”.

Nem por isso ele adianta sua decisão sobre o projeto. A única maneira de reverter a votação dos vereadores da Capital, favorável à construção do Pontal do Estaleiro, é o veto de Fogaça. “Eu não posso, não quero responder e não estou respondendo por que tenho que tomar uma decisão de contornos políticos”, desabafa.

O mistério que o prefeito vai manter até meados da primeira quinzena de dezembro é mais um dos ingredientes que conferem uma aura cinematográfica de romance policial noir. O enredo envolve política com negócios, denúncia de corrupção, personagens da alta sociedade, ligações veladas entre empresas. O Ministério Público abriu uma investigação que corre em segredo de Justiça. Falta apenas alguém descobrir quem é a femme-fatale dessa história.

A SESSÃO – Fosse um roteiro, a cena inicial poderia trazer um rapaz de camisa do Inter balançando uma nota de 2 reais na direção dos vereadores na Câmara da Capital. A cena é real. E serve de mostra da tumultuada sessão do dia 12 de novembro, que teve mais de 8 horas de duração e uma dezena de pedidos de adiamento solicitados pela oposição.

As galerias se mantiveram lotadas até às 22h – um telão teve de ser instalado no pátio para abrigar quem não conseguiu uma das 300 senhas para entrar no plenário. Os mais exaltados, debruçados sobre o cercado do plenário da Câmara, dirigiam impropérios aos mandatários do Legislativo porto-alegrense.

A queixa não foi caso isolado. Os ativistas que tomaram as galerias da Câmara insinuaram diversas vezes que alguns legisladores da Capital poderiam ter se beneficiado financeiramente para aprovar a matéria.

As faixas, cartazes e palavras de ordem – “ Vendido!” e “Câmara, sem vergonha!” foram algumas delas – que marcaram a sessão plenária que aprovou a alteração na Lei 470/02, no dia 12 de novembro, ganharam o respaldo dos próprios parlamentares nos dias seguintes à votação.

Em entrevista à rádio Guaíba, o vereador Beto Moesch (PP) afirmou que alguns colegas teriam recebido propina para que o projeto fosse aprovado – 20 vereadores votaram a favor. No dia seguinte, Neusa Canabarro (PDT), falando à mesma emissora, revelou que não sabia quais parlamentares haviam recebido dinheiro: “mas sei quem não aceitou”.

Uma matéria do Jornal do Comércio registrou o discurso do petista Guilherme Barbosa na tribuna da Câmara, na sessão do dia 13 de novembro. Ele disse que coisas estranhas aconteceram durante a votação e que vereadores foram orientados pelos empresários.

No Jornal Correio do Povo, o vereador Cláudio Sebenelo (PSDB) confirmou que recebeu oferta de ajuda para sua campanha eleitoral por representantes da BM Par, uma das empresas envolvidas no projeto do Pontal. À Folha de S. Paulo, o tucano detalhou a proposta: um envelope de dinheiro chegou a ser colocado em sua mesa pelo emissário da empresa. Sebenelo recusou a oferta, por entender que não seria ético receber auxílio financeiro de alguém com interesse em um projeto importante a ser votado pela Câmara Municipal.

O princípio de tudo (Capítulo I)

A história remonta a 1996, quando alguns representantes do já desativado Estaleiro Só – uma falida empresa de construção de navios localizada às margens do Lago Guaíba, em Porto Alegre – solicitaram à Secretaria do Planejamento Municipal (SPM) um requerimento de modificação no regime urbanístico do terreno que ocupam na Ponta do Melo, para “permitir também seu uso com atividades residenciais”.

O documento tem o timbre da Empresa Arquitetos e Urbanistas, que hoje é conhecida pelo nome de seu proprietário, o arquiteto Jorge Debiagi. Pelo menos, desde a metade da década de 80, ele tenta emplacar um empreendimento de grande porte na beira do estuário que banha Porto Alegre. Em 1988 foi o Praia do Guaíba – do qual sobrou apenas a avenida Beira-Rio.

No caso do terreno da Ponta do Melo, que pertencia ao falido Estaleiro Só, Debiagi teve a primeira oportunidade de propor um projeto para a empresa Titton Brugger, em 2001, que arriscou comprar o terreno num leilão.

A área era avaliada na época em R$ 17 milhões, segundo dados do site do Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia do Rio Grande do Sul (CREA-RS). E sua venda pretendia pagar o passivo trabalhista da empresa, estimado em 14 milhões a ser repartido entre 600 funcionários.

Porém, menos de um ano depois o negócio foi desfeito. A empresa não queria arriscar o valor porque não havia regulamentação das atividades que poderiam ser desenvolvidas no local.

Trata-se da margem do Guaíba, região protegida não apenas pela Lei Orgânica do Município, mas pelo Código Florestal Brasileiro, que considera as orlas Áreas de Preservação Permanente. Além disso, enquanto a revisão do Plano Diretor de Porto Alegre não é concluída (começou em 2003), um decreto do Executivo garante a preservação de 134 Áreas de Interesse Cultural na cidade, incluindo toda a extensão da orla do Guaíba – desde a Usina do Gasômetro.

Como já havia ocorrido quatro leilões sem nenhum lance, vereadores e o então Prefeito de Porto Alegre, Tarso Genro, definiram os critérios de exploração comercial para a área, publicados sob a forma da Lei complementar 470/02. O texto previa a “ocupação, para uso privado, de atividades de interesse cultural, turístico e paisagístico” e vedava a habitação, comércio atacadista e indústria.

CÂMARA – Na noite de 12 de novembro de 2008, quando foi vencida uma das etapas mais difíceis para a concretização de seu projeto, Debiagi foi um dos últimos a deixar a Câmara Municipal. Cauteloso, ele temia ser criticado e até agredido pelos manifestantes contrários ao Pontal do Estaleiro. Esperou até que as luzes do plenário se apagassem antes de ir embora, quase às 23h.

Como aparentemente não havia nenhum “baderneiro” por perto, o vereador Ismael Heinen (DEM) não viu problema em cumprimentá-lo com um largo sorriso. “Foi mais light do que a gente imaginava, né?”, perguntou ao arquiteto, que se limitou a um aperto de mão cordial.

Nova tentativa de leilão (Capítulo II)

Com uma redação que permitia o uso privado da área, uma nova tentativa de leiloar o terreno foi realizada em março de 2005. Apenas uma empresa apareceu e arrematou o imóvel por R$ 7,2 milhões, o que não dava para pagar nem a metade da dívida do Estaleiro Só com os operários. Mas, depois da decisão dos vereadores de alterar o regime urbanístico da região, permitindo a construção de unidades habitacionais, o grupo comandado pelo Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Metalúrgicas, Mecânicas e de Material Elétrico-Eletrônico da Grande Porto Alegre (Stimepa) voltou a campo para cobrar a sua parte. “Não se pode admitir que os ex-funcionários eternizem esse prejuízo”, avisou o presidente do Stimepa, Lírio Sergalla.

Enquanto os trabalhadores ficam a ver navios – com o perdão do trocadilho – o novo dono do campinho comemorou a valorização do terreno (e sua ousadia em comprá-lo). “Sou um investidor de risco”, gaba-se Saul Veras Boff.

Na ponta do lápis, o preço da gleba de terra de 41 mil m² custou cerca de 3,5% do valor total do investimento previsto, que chega a R$ 200 milhões. “Geralmente o terreno vale um terço da aplicação”, compara o engenheiro e ambientalista, Luiz Filipe Oliveira.

Foi o vereador João Carlos Nedel (PP) quem lembrou que o empreendimento deve render aos cofres públicos uma receita de R$ 2 milhões ao ano. O valor é 400 vezes superior do que os R$ 5.097,47 que a empresa pagou de IPTU em 2002.

PREFEITURA – A Prefeitura recebe no máximo 1,1% do valor imobiliário de uma unidade nãoresidencial, no caso, dois dos seis edifícios previstos. Os moradores dos outros quatro prédios projetados vão pagar 0,85% do valor dos apartamentos para o fisco municipal.

Nem esse argumento foi suficiente para convencer o prefeito José Fogaça a enviar o texto para o Legislativo. Acontece que, segundo o Plano Diretor, projetos de empreendimentos em Áreas de Interesse Cultural e de grande porte são considerados de Impacto de Primeiro Nível e só podem ser apreciados em plenário depois do encaminhamento prévio do Executivo.

Foi o que fizeram as diretorias do Internacional e do Grêmio para pedir as autorizações dos projetos para a Copa de 2014 (que estão tramitando na Câmara). Também foi a atitude dos empreendedores do BarraShopping Sul antes de iniciarem suas construções.

Empreendedor e arquiteto do Pontal do Estaleiro bem que tentaram. Há pelo menos uma dezena de estudos e maquetes eletrônicas na Secretaria Municipal do Planejamento. Há projetos com sete prédios, outros com seis e, o mais recentemente apresentado nos jornais, tem cinco espigões.

Esse desenho que o portoalegrense se acostumou a ver é resultado do parecer da Comissão de Análise Urbanística e Gerenciamento (Cauge) que reúne 13 das 19 secretarias municipais. Foi esse documento que instituiu as alterações que acabaram retiradas do texto final da nova lei, e que determinavam a volumetria de 43 m de altura e a possibilidade de compra de índices construtivos.

Ao longo de, pelo menos, dois anos de análise, o processo na SPM ganhou volume. Hoje tem seguramente 500 páginas. Mas para Fogaça, ainda foi pouco tempo. “Porque eu precisava de uma audiência à população e à comunidade, uma vez que isso mexe com valores que são históricos na vida da cidade”, admite, complementando que conhecia a prerrogativa do Plano Diretor que lhe confere essa responsabilidade. “É evidente que sim!”, diz.

Apelo aos legisladores (Capítulo III)

Sem poder contar com a decisão do prefeito, os idealizadores do Pontal do Estaleiro foram à Câmara Municipal pedir que os vereadores encampassem o projeto. No dia 10 de abril começou a circular na Casa o PLCL 02486/08, cujo autor foi Alceu Brasinha (PTB), mas que contou com o apoio de 18 colegas de mandato, que literalmente assinaram embaixo.

Em duas páginas, os autores expuseram seus motivos para defender o projeto. Outras três traziam o texto da nova lei, escrito nos moldes das orientações da Cauge. Na outra metade do documento estavam as ilustrações de Debiagi.

“Nunca se viu um projeto com grife aqui na Câmara”, surpreendeu-se o coordenador do Fórum Municipal de Entidades, Paulo Guarnieri, que também é assessor da bancada petista no Legislativo.

Em votação, a maioria simples garantia a vitória. Ou seja, bastava que mais um vereador nãosignatário apoiasse os colegas para somar os 19 votos que necessitavam.

Certos da sua vantagem, os proponentes do projeto de lei pediram urgência na tramitação – um recurso permitido pelas regras da Casa.

Isso significa que a proposta foi avaliada diretamente em plenário, prescindindo dos pareceres de quatro das seis comissões técnicas. Entre elas, duas que tratam especificamente dos temas relacionados ao empreendimento: a de Saúde e Meio Ambiente e a de Urbanização, Transportes e Habitação.

Quem manda no negócio (Capítulo IV)

Na manhã de 26 de novembro, todos os jornais de circulação diária de Porto Alegre traziam um “APEDIDO” de meia página da BM Par Empreendimentos, a “proprietária da área do antigo Estaleiro Só”.

Entre outras coisas, o anúncio afirma que “em 2005, após quatro leilões infrutíferos, a BM PAR adquiriu a área”. Aí está o enredo da segunda parte dessa trama.

Na verdade, naquele leilão de 2005, quem pagou R$ 7,2 milhões pelo terreno foi a SVB Participações e Empreendimentos, a única empresa a se interessar pelo negócio.

Interessante notar que duas figuras se apresentam como os principais executivos de ambas as empresas. Saul Veras Boff e Rui Carlos Pizzato são citados no noticiário como representantes legais, diretores e até proprietários das duas razões sociais.

Ao conhecer Saul Boff em um sábado primaveril de protestos contra e a favor ao projeto Pontal do Estaleiro, a repórter entrevistou o empresário. “Sou o dono da área”, apresentou-se, confirmando a ligação com a BM Par.
Mas Saul Veras Boff só aparece no documento da Junta Comercial do Rio Grande do Sul que apresenta a formação societária da outra empresa, que leva suas iniciais como nome – a SVB. Ele detém 99% do capital de R$ 14 milhões, ao lado de dois sócios minoritários.

Seu companheiro de mídia, Rui Carlos Pizzato, nada mais é que o “administrador nomeado” da BM Par. No entanto, as duas empresas de sociedade anônima que dividem democraticamente o capital de R$ 10 milhões da empresa não são citadas em nenhuma reportagem sobre o assunto.

Ocupam endereços nobres em Porto Alegre – nos bairros Moinhos de Vento e Bela Vista. Uma tem um nome bem conhecido da população: Matone Participações S/A, que não é o Banco Matone, mas que tem sede no mesmo prédio na esquina das ruas Mostardeiro e Mariante.

A segunda sócia atende pela sigla SAAB Participações S/A e coincidentemente ocupa exatamente o mesmo escritório que a SVB Participações, de Saul Veras Boff, na avenida Nilo Peçanha. As duas são vizinhas da BM Par, cujo escritório ocupa todo o quarto andar do Iguatemi Corporate.

Como convencer vereadores (Capítulo V)

Uma matéria de página inteira na edição do dia 24 de novembro do Correio do Povo traz a confirmação de que a incorporadora do Pontal do Estaleiro será a Goldsztein Cyrela.

Antes mesmo da votação na Câmara, já circulava a informação de que a construtora associada ao grupo paulista tinha interesse no tema. Um indício forte veio no dia da votação na Câmara, em 12 de novembro, quando representantes da holding, incluindo aí o principal executivo, Fernando Goldsztein, participaram ativamente do processo de convencimento dos vereadores. Saul Boff estava junto.

Acompanhando os empresários, o engenheiro Zalmir Chwartzmann, um dos principais dirigentes do Sindicato da Indústria da Construção Civil (Sinduscon) quando o assunto é Plano Diretor e legislação para construir projetos, pai e filho orientaram a votação das emendas do projeto.

Na platéia, o grupo de senhores vestidos com camisas bem alinhadas orientava a votação. E não fazia nenhuma questão de disfarçar. Chamavam os vereadores nominalmente. Primeiro, convocaram Dr. Goulart (PTB). Apenas Chwartzmann se dirigia claramente aos parlamentares. Os demais ouviam.“Essa tem que derrubar”, orientou.

Dr. Goulart não respondeu. Em seguida chegou Haroldo de Souza (PMDB). O homem repetiu “Achamos que tem que derrubar”. Os vereadores não demonstraram muita confiança. “É? Tem?”, perguntaram. Em seguida se uniu ao grupo o proponente do projeto de lei – Alceu Brasinha (PTB). E a discussão aconteceu numa conversa muito baixinha.

“O pessoal acha que tem que derrubar, viu”, avisou pela terceira vez o homem. Nova rodada de discussões entre os espectadores e finalmente alguém disse:

“Na verdade deixa passar. É a emenda do líder do governo, pode ser importante depois para o Fogaça”. Todos concordaram e a emenda do vereador Professor Garcia (PMDB) foi aprovada com folga.

Na matrícula do terreno disponível no Ofício de Registro de Imóveis da 5ª Zona da Comarca de Porto Alegre consta que o prédio de número 2893 da avenida Padre Cacique (o esqueleto do Estaleiro Só) está hipotecado tendo como credora a Expand de Investimentos Imobiliários, com sede no Rio de Janeiro.

“A Expand é uma subsidiária da Cyrela. É comum no mercado imobiliário a criação de empresas de propósito específico para participação em um determinado empreendimento”, justifica uma nota enviada pela assessoria de imprensa à jornalista Clarinha Glock, do Movimento Integridade.

Verificando a estrutura societária da Cyrela Brazil Realty, a “maior incorporadora de imóveis residenciais do Brasil, com 35 mil clientes e 7,25 milhões de metros quadrados incorporados” – segundo seu sítio na internet – encontramos cinco subsidiárias. Nenhuma delas é a Expand.

A trama prevê novos episódios

O projeto Pontal do Estaleiro é a ponta do iceberg. Mais de uma dezena de espigões estão projetados para a orla, entre o Cais do Porto e o Barra Shopping. A decisão que o prefeito José Fogaça tomar pode abrir precedente para que a beira do Guaíba ganhe uma nova feição, com a construção de uma nova safra de edifícios.

A questão de fundo, que está sendo adiada há seis anos, é a revisão do Plano Diretor de Porto Alegre. A Câmara Municipal, que está com a matéria desde setembro de 2007, não demonstrou o mesmo interesse e agilidade para tratar do assunto – a comissão especial criada para tratar do tema, por exemplo, teve inúmeras reuniões canceladas por falta de quórum.

Em 2009, o embate entre ambientalistas, lideranças comunitárias e estudantes ante o segmento da construção civil terá de novo como palco o Legislativo da Capital. Além dos projetos de Grêmio, Inter, a revisão do Plano Diretor e outras empreitadas polêmicas estarão nos próximos capítulos.

 

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