AMBIENTE

Onde os ambientalistas não têm vez

Santa Catarina lidera a luta para que o poder de legislar sobre meio ambiente seja dos estados. A discussão, que começou agora no Rio Grande do Sul, já está encerrada no estado vizinho.
Por Naira Hofmeister / Publicado em 13 de agosto de 2009

Para quem conhece Santa Catarina, o Parque Estadual da Serra do Tabuleiro poderia ser descrito como um triângulo cujos vértices estariam em Garopaba, Caldas da Imperatriz e no extremo sul da ilha de Florianópolis.

É o suprassumo das revistas de viagem na Região Sul: no verão, as praias paradisíacas atraem um exército de turistas.

No inverno, o destino são as águas termais de Santo Amaro – que seduziram até o casal imperial Dom Pedro II e Dona Teresa Cristina Maria de Bourbon no ano de 1845.

Os 90 mil hectares do antigo parque são a porção de terra com mais cartões postais do estado.

Nos 40 quilômetros de costa, há dez praias de mar azul, dunas e outra dezena de ilhas.

Em sua parte serrana, estão os melhores mirantes no alto das montanhas e as cachoeiras se multiplicam em meio à mata virgem.

Dos nove ecossistemas encontrados na Mata Atlântica, o Tabuleiro concentra cinco – restinga, mangue, floresta de encosta, mata de araucárias e campos de altitude.

É uma importante fonte de captação de água – o manancial de Pilões/Cubatão abastece mais de 1 milhão de habitantes da Grande Florianópolis.

Mais: na praia da Pinheira, pertinho da orla, existe um monumento mundial da geologia que documenta o recuo das águas do mar durante o período quaternário.

Parece evidente que todo esse patrimônio ambiental estivesse sob proteção permanente. Mas, criado em 1975, o Parque Estadual da Serra do Tabuleiro nunca foi tirado do papel.

E tratando-se de uma região com solo fértil, água em abundância, clima definido, grandes extensões de terra livres, paisagem paradisíaca e zero de fiscalização, nada mais natural que fosse ocupado.

“Em alguns pontos se instalaram núcleos urbanos consolidados com energia, rede de água, coleta de lixo e até código postal”, lamenta o promotor de Justiça e titular da Promotoria Temática da Serra do Tabuleiro, José Eduardo Cardoso.

Em 2006, políticos, ambientalistas, empresários e moradores da região concordaram que era hora de encerrar a novela que se arrastava desde a década de 1970

“A revisão dos limites era um mal necessário”, reconhece o diretor de Proteção dos Ecossistemas da Fundação Estadual de Proteção ao Meio Ambiente (Fatma), Gilvani Voltolini.

No mesmo ano foi criado o Fórum Parlamentar do Parque Estadual da Serra do Tabuleiro. Representantes da sociedade civil e dos poderes Legislativo e Executivo dos municípios envolvidos com o Parque – e também o MP – foram convidados a tomar assento em um Grupo de Trabalho (GT).

Conseguiram R$ 600 mil do Projeto de Preservação da Mata Atlântica para contratar uma consultoria, a STCP, que durante dois anos fez levantamentos geográficos e documentais para determinar os limites originais do Parque e estudar possibilidades de readequação.

O estudo avaliou 19 áreas prioritárias, levando em consideração o nível de dependência social e econômica das comunidades dos recursos naturais da Serra do Tabuleiro. As equipes da STCP entrevistaram 152 líderes comunitários ou representantes do poder público local e promoveram encontros com os moradores para ouvir a opinião dos locais sobre as propostas.

Tudo parecia bem encaminhado. Os relatórios estavam sendo entregues pontualmente pela empresa e havia um relativo consenso não apenas dentro do Grupo de Trabalho, mas também nas comunidades, sobre os novos limites do Parque.

No entanto, a semanas da entrega da minuta elaborada pelo GT, chegou na Assembleia Legislativa um projeto do Executivo sobre o mesmo tema, com uma solução diferente. Propunha a criação de três Áreas de Proteção Ambiental (APAs) na Serra do Tabuleiro, uma medida de menor rigor que permite atividades econômicas.

“Entre os ecologistas, acreditamos que APA significa Área de Proteção Alguma”, ironiza Elisabeth Albrecht, representante da Federação das Entidades Ecologistas Catarinenses no GT.

Empresários e prefeituras são beneficiados

No dia 4 de março de 2009, 30 deputados foram favoráveis à redação, ignorando o parecer contrário do presidente da Comissão de Turismo e Meio Ambiente da Assembleia Legislativa, Décio Góes (PT), “ante as inconsistências do projeto”. “Através das APAs estamos permitindo empreendimentos incompatíveis com o objetivo da região. A avaliação foi política e não técnica”, lamenta o parlamentar.

Os deputados não se importaram com os questionamentos feitos pelo Projeto de Preservação da Mata Atlântica, cujos conselhos nacional e regional emitiram moções de repúdio ao documento. Tampouco levaram em conta uma análise técnica do Ministério do Meio Ambiente que apontava conflitos com a legislação vigente e irresponsabilidade com aquela que é a maior reserva natural do estado.

É que o projeto de lei sancionado pelo governador Luiz Henrique da Silveira (PMDB) foi fruto de um trabalho paralelo encomendado pelo Movimento da Recategorização, um grupo liderado por empresários do turismo e apoiado pelas prefeituras, que poderão cobrar pelo IPTU dessas áreas.

O prefeito de Palhoça, Ronério Heiderscheidt (PMDB), admite que o projeto foi tocado integralmente pelos empresários. “Não houve gastos públicos. Colaboraram as pessoas físicas do prefeito, de secretários, vereadores”.

Foram R$ 150 mil em doações, suficientes para que a ERM, multinacional que presta consultoria em meio ambiente, elaborasse um complexo documento de 600 páginas no qual constam as justificativas para o projeto de lei e sua minuta. O trabalho durou seis meses.

O resultado não poderia ser outro: os limites do Parque da Serra do Tabuleiro revistos foram justamente aqueles onde há intensas atividades ligadas ao turismo. Segundo o relatório produzido pela Fatma, os moradores já sentem intensa “pressão para a ocupação da orla com objetivos de turismo”.

A hipótese é confirmada pelo prefeito de Palhoça, que também comemora o aumento significativo na arrecadação de IPTU. “Nossa intenção é criar um grande polo tecnológico regional e voltado ao turismo e ao meio ambiente. Guardadas as devidas proporções, algo como Dubai”, exemplifica Heiderscheidt.

Os ambientalistas suspeitam que houve “contrabandos” de terras privadas para fora do Parque. E eles têm razões para acreditar nisso, já que o coordenador técnico da ERM Brasil é o engenheiro-agrônomo Ricardo Luiz Scherer. Seu pai, Amílcar Scherer, possui uma grande propriedade que antes ficava dentro dos limites da reserva.

“Jogando para a torcida e iludindo a opinião pública, o que eles conseguiram foi atender aos interesses de pessoas com terrenos dentro do Parque e que têm acesso ao poder”, ataca o promotor Cardoso, que auxiliou a equipe da Promotoria do Meio Ambiente a montar a peça que deu origem à Ação Direta de Inconstitucionalidade.

A Ilha do Papagaio Pequena é o exemplo mais notável.

No projeto da Fatma, era uma das regiões consideradas inalienáveis. Lá vive somente uma família, que depende da exploração dos recursos naturais.

O pedaço de chão é propriedade do líder do Movimento pela Recategorização, Renato Sehn, que mantém uma pousada de luxo para prática de ecoturismo.

Na lei sancionada, a ilha ficou fora da área de proteção permanente.

“Quem mais tem interesse em cuidar dessa natureza são as pessoas que vivem dela”, sentencia o empresário que mantém uma política de cuidados com o meio ambiente: um moderno sistema de tratamento de esgoto com raízes de plantas. Sehn faz apologia à iniciativa privada como fomentadora da preservação. “O poder econômico tem recursos que o Estado não tem”, justifica.

MP questiona constitucionalidade

Mas a briga maior será mesmo com a região da Vargem do Braço, berço de águas termais, que segundo STCP e Fatma, deveria estar integralmente protegida – o que também não corresponde à lei em vigor. Hotéis da rede Plaza existem há anos na região e desde 2008 um grupo de árabes investe na construção de um resort chamado Termas do Tabuleiro.

“Está havendo uma mudança de perfil lá: o morador nativo saindo e entrando grandes grupos econômicos”, aponta o promotor.

Em junho, o MP ajuizou ação de inconstitucionalidade no Tribunal de Justiça, questionando esse ponto. Acontece que a região abriga o manancial hídrico que abastece Florianópolis. “Como é que, com 1milhão de pessoas que se servem dessa água, nenhum morador foi consultado? A questão da água em Florianópolis é premente! Não podemos prescindir do manancial de Pilões”, alerta Cardoso.

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