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Não basta ter direitos

"Não basta estabelecer o que são os direitos fundamentais. Para garanti-los é necessário introduzir instituições de garantia que devem ser independentes do poder político", diz Luigi Ferrajoli
Por Cesar Fraga / Publicado em 18 de março de 2010

Em recente passagem por Porto Alegre, o jurista italiano Luigi Ferrajoli concedeu entrevista exclusiva ao Extra Classe. Na ocasião, ele falou sobre a crise da democracia e da necessidade de se garantir efetivamente os direitos fundamentais. Professor de Teoria Geral do Direito e de Filosofia do Direito desde 1970, Ferrajoli leciona atualmente na Università Roma Tre.

É graduado em Direito pela Universidade de Roma (1962), exerceu a função de Juiz de Direito de 1967 a 1975. Recebeu láureas de doutor honoris causa da Universidad de Buenos Aires, Universidad de La Plata, Universidad Lomas de Zamora, Universidad de Rosário, Universidad de Montevideo e Universidad de Toledo.

Não basta ter direitos

Foto: René Cabrales

Foto: René Cabrales

Extra Classe – Como o senhor conceitua democracia constitucional?
Luigi Ferrajoli – A democracia constitucional representa uma mudança de paradigma no que diz respeito à velha democracia política. Significa o fim da onipotência da maioria que se sobrepõe à lei e à cultura legislativa até o limite dos vínculos correspondentes aos direitos fundamentais estabelecidos na constituição. Os princípios de justiça estabelecidos na constituição fazem com que o poder Legislativo e o poder Executivo fiquem submetidos à lei.

EC – Qual o atual estágio brasileiro no que se refere a esse paradigma?Ferrajoli – A Constituição brasileira é de última geração, o que acentuou sua dignidade, excluindo a possibilidade de que alguns princípios constitucionais possam ser modificados por qualquer maioria, e introduziu várias instâncias técnicas e garantias desconhecidas na tradição constitucionalista europeia. São exemplos disso, o Ministério Público, o controle constitucional e a vigilância sobre o orçamento.

EC – Partindo do princípio de que o respeito aos direitos humanos é um pressuposto da democracia, como entender hoje uma Europa cada vez mais xenofóbica e uma Itália governada por Berlusconi?
Ferrajoli – Nosso sistema político está vivendo uma crise da democracia, que é uma crise em nível institucional e, sobretudo, em nível político e social. No âmbito institucional, devido à intolerância e à indiferença em relação aos vínculos constitucionais em sua relação com o poder, expressa por Berlusconi. Até por que o berlusconismo exprime uma doutrina “anti” ou “aconstitucional”, porque exprime uma ideologia populista, em que o poder político não respeita limites. Uma vez legitimado pela eleição, o poder não se imagina limitado pelos outros poderes. O que é uma velha concepção que reproduz conceitos da antiga constituição fascista, da relação orgânica entre o líder e o povo. E se explica deste modo um outro aspecto da crise da democracia. A sociedade italiana está resistindo, mas algumas ações são bloqueadas pela corte constitucional. O aspecto mais grave é que a demagogia berlusconista está corrompendo o senso comum, o senso cívico e valores como a igualdade, produzindo ou legitimando formas de xenofobia e de racismo que são também produtos de legislação, porque as leis podem alimentar ou legitimar o racismo. Temos uma lei contra a imigração clandestina que transforma em delinquentes pessoas desesperadas, pobres, que tentam entrar na Itália, e isso legitima impulsos racistas.

EC – Independente da experiência da crise da democracia italiana, é correto dizer que existe uma crise da democracia representativa no mundo nos dias de hoje? Por quê?
Ferrajoli – A democracia é uma construção complexa, institucional e ao mesmo tempo social. Sob muitos aspectos, penso na evolução da democracia brasileira com a Constituição de 1988 e as instituições de garantia que ela introduz. Também foram criadas melhorias em constituições europeias e temos as cortes internacionais. Por outro lado, também há o processo oposto, sobretudo no nível político e social, que se manifesta em primeiro lugar pela verticalização e pela personalização da representação, acompanhada pela ideia de que “Il capo” encarna a vontade popular: berlusconismo, chavismo, as várias formas de populismo… O segundo fator de crise regressiva da democracia é representado pelos processos de concentração de poder. Contra a ideia de separação entre poder econômico e poder político, que é fundamental no constitucionalismo do estado moderno, contra a ideia de separação entre esses poderes e os poderes ideológicos e midiáticos, assistimos hoje, na Itália, a uma concentração do poder político, do poder econômico e do poder midiático com o controle da televisão. Mas, também, em outros países estes são perigos iminentes, pelas relações cada vez mais estreitas entre o dinheiro e a política. As campanhas eleitorais são caras, o custo da TV é caro, e é preciso introduzir regras que ao menos reduzam esta relação.

EC – Como o senhor vê a experiência democrática brasileira neste período da chamada era Lula?
Ferrajoli – Eu não conheço bem a história do Brasil, mas certamente, desde o fim das ditaduras militares, houve um crescimento enorme da democracia em toda a América Latina, assim como ocorreu na Europa depois da II Guerra Mundial com a queda do fascismo. No Brasil, em particular, vocês elaboraram uma constituição muito avançada, de última geração e, certamente aqui – e eu me lembro do Brasil de 20 anos atrás –, houve não apenas um desenvolvimento econômico, mas também da democracia, com redução da desigualdade, garantias de desenvolvimento social, de educação, de renda familiar, de saúde. Naturalmente, a desigualdade ainda é muito forte e o processo de construção da democracia ainda é muito longo.

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EC – O senhor colocaria o presidente Lula no mesmo patamar dos líderes populistas que o senhor citou antes ou o senhor o distingue deles?
Ferrajoli – Sim, existe uma distinção, naturalmente, porque ainda que o governo Lula tenha conotações populistas, certamente não promove o culto do chefe, “capo”. A ideologia propriamente populista da relação orgânica direta, em que a vontade do chefe é a vontade do povo. E este é um fato específico do fascismo. As eleições são a melhor forma de selecionar representantes para que não se confunda a vontade do eleito com a vontade dos eleitores, já que essa “vontade unitária” nunca existe. Não existe um “macrossujeito” capaz de reunir estas vontades.

EC – Por que a democracia constitucional é insuficiente para dar conta da complexidade política do nosso tempo?
Ferrajoli – A democracia constitucional não é insuficiente. Sobretudo em países dotados de constituições muito avançadas, com grandes promessas, com um enorme catálogo de direitos, tais quais as constituições brasileira e italiana, torna-se necessária uma grande efetividade, o que acaba não ocorrendo. As leis de atuação da constituição são as que introduzem as garantias, ou seja, funções e instituições públicas capazes de garantir a efetividade dos direitos fundamentais como saúde e educação. Estabelecer o direito à saúde, por exemplo, significa impor ao estado a introdução de um serviço sanitário gratuito.

EC – O senhor fala dos direitos fundamentais?
Ferrajioli – Não basta estabelecer o que são os direitos fundamentais. Para garanti-los é necessário introduzir instituições de garantia que devem ser independentes do poder político, assim como é a magistratura, que é uma função de garantia secundária. Intervém quando são violadas as garantias primárias.

EC – O senhor disse antes que nem sempre a vontade do povo é a vontade dos representantes. Como desatar este nó quando são esses representantes que fazem as leis?
Ferrajoli – Não existe uma vontade uniforme de todo o povo. Não existe uma vontade unitária da maioria do povo brasileiro. As técnicas eleitorais são apenas técnicas de seleção de representantes, cujas decisões não podem ser consideradas decisões dos representados. Isso, apesar de banal, é essencial. Não existe um macrossujeito que seria o povo. O povo deve ser e é atravessado pelo pluralismo, pela diferença de opiniões e pelos conflitos de classe e de interesses. A ideia de que possa existir um macrossujeito é a base do populismo, é uma mistificação ideológica por força da qual a vontade do representante encarna uma vontade da maioria, que não existe. E a técnica democrática para selecionar representantes tem como condição que não se confunda os representantes com os representados. É possível que os representantes não cuidem dos interesses gerais. Isso faz parte da fisiologia da democracia. Afinal, sempre existe a possibilidade de não reelegê-los. Outra condição para a democracia funcionar é a garantia de independência dos meios de informação, inclusive em relação aos interesses privados de seus proprietários; garantias de representação proporcional; de incompatibilidade entre o poder econômico, especialmente midiático, e o exercício da função pública. Aqui na Itália houve um retrocesso em relação às leis que impediam essa concentração.

EC – Como entra o conceito de soberania popular dentro desse contexto?
Ferrajoli – Na democracia constitucional, no estado de direito, não existem sujeitos soberanos, porque todos os poderes estão submetidos à lei. Então, a frase “a soberania pertence ao povo” significa duas coisas. A primeira é uma garantia negativa: pertence ao povo e a mais ninguém. Nenhuma assembleia representativa, nenhuma maioria, nenhum presidente eleito pode usurpar essa soberania, porque todas as instituições e poderes estão submetidos à lei. E dizer que a soberania pertence ao povo significa que, já que o povo não é um macrossujeito unitário, ela pertence a todos nós e se expressa pelos direitos fundamentais dos quais somos todos titulares. Cada um de nós detém uma parcela dessa soberania. Os direitos fundamentais são fragmentos dessa soberania.

EC – Qual é o papel dos movimentos sociais na confirmação desses direitos?Ferrajoli – As lutas sociais são o motor ou o veículo por meio do qual, historicamente, se afirmam os direitos sociais, porque os direitos fundamentais nunca caem do céu. Todos os direitos, desde as liberdades reivindicadas nas revoluções burguesas até os direitos dos operários, direitos trabalhistas e das mulheres são resultado de lutas de gerações revolucionárias, que de tempos em tempos reivindicaram suas necessidades e interesses contra diversas formas de opressão e discriminação. Foi nesse processo que os direitos fundamentais se transformaram em realidade.

EC – Quais são as heranças constitucionais do liberalismo?
Ferrajoli – O liberalismo tem o mérito de inventar o paradigma que limitou o poder estatal. A primeira limitação do liberalismo é que, tendo concebido a propriedade privada e o mercado como liberdade, ignora que são formas de poder e que devem estar sujeitas à lei. A expressão ‘estado de direito’ é significativa: esses direitos são também poderes, assim como os poderes públicos. É um engano pensar que só o estado e não o mercado deve estar submetido a regras. Isso mistifica o mercado e a propriedade privada, identificando-os como ‘liberdade’. A segunda limitação do liberalismo consiste em não ter elaborado uma teoria dos direitos sociais. Os direitos sociais são produto da tradição socialista e das lutas operárias, mas não foram autorizados no paradigma liberal. Foram, via constituições, impostos ao Estado. Assim, passam a ser obrigações exclusivas dos governos.

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EC – É possível uma mesma constituição nivelar direitos de classes sociais absolutamente distintas?Ferrajoli – A sociedade capitalista se fundamenta no direito à propriedade, mas a igualdade se baseia nos direitos fundamentais. Somos iguais nos direitos fundamentais e desiguais no direito à propriedade. Os direitos sociais têm o objetivo de reduzir essas desigualdades, embora não as elimine, garantindo a todos a sobrevivência, a saúde, a educação e, ao contrário do que pensa a ideologia liberal, representam o principal investimento produtivo. Não só não representam custo, como custam muito menos do que quando não existem. A riqueza de um país e sua produtividade são representadas pelo seu nível de atendimento às necessidades básicas. Em países africanos, em que as pessoas morrem de fome ou de doenças curáveis, onde não existe educação pública, não pode haver desenvolvimento econômico, porque não há produtividade individual. Os direitos fundamentais não são um luxo, mas condição necessária ao desenvolvimento econômico.

EC – Existem muitos mecanismos de controle do poder do Estado, mas quem controla o poder privado?
Ferrajoli – O problema é a necessidade de desenvolver um constitucionalismo de direito privado. Isto é, submeter a regras, limites e vínculos, os direitos autônomos, – como os de mercado –, que acabam por ser poderes, assim como os poderes públicos, com a diferença de que estes resultam do exercício de direitos políticos. O mercado não passa pela democracia representativa. Ele cria diretamente seus próprios direitos, que por isso possuem muito mais força. Interferem na produção industrial, no trabalho, em questões ambientais… Não podem ser considerados direitos de liberdade. Essa é a principal limitação do liberalismo. Esses direitos são uma classe de direitos que não se pode confundir com o conceito de ‘liberdade’, e cujo exercício deve ser subordinado aos limites da lei e da constituição. Na nossa constituição (na Itália) isso aparece apenas embrionariamente em assuntos como trabalho, família e ambiente, mas o verdadeiro constitucionalismo do direito privado ainda está quase inteiramente por ser feito.

EC – Quais os limites que a democracia deve romper para que não retroceda?
Ferrajoli – O sistema constitucional como um todo não pode vigorar se não estiver em sintonia com as lutas sociais, com um senso cívico e democrático que identifique as garantias com os interesses gerais e até individuais. A crise da democracia ocorre sempre que além de eventuais ímpetos autoritários exista correlativamente uma despolitização da sociedade, uma passivização das pessoas. Há uma frase de Alexis de Tocqueville da qual lembro sempre: “a outra face do despotismo é a crise do interesse público”. Quando todos pensam apenas nos seus próprios interesses, se voltam apenas para suas famílias e seus amigos e tratam apenas de fazer negócios e divertir-se, é a outra face do despotismo e o fim da democracia. Uma democracia não pode se sustentar se não possui um forte alicerce social e um elevado senso cívico da sociedade. Quando esse senso comum é corrompido surge o despotismo. Foi o caso do surgimento do fascismo na Itália.

EC – A ditadura do poder econômico também entra nessa definição de despotismo?
Ferrajoli – Sim, porque as várias formas de concentração de poder econômico corrompem o poder político. E esse processo em uma sociedade passivizada acaba por ser não apenas tolerada como até é endossada.

EC – Quais os principais inimigos da democracia, hoje?
Ferrajoli – O populismo e a concentração de poderes. O populismo corresponde à despolitização, à passivização e à abdicação ao protagonismo político da sociedade que delega tudo ao “capo”. Já a concentração de poderes dissolve ou reduz o sistema de garantias que é sempre um sistema de separação. Os poderes tendem a acumular-se de forma absoluta e o sistema iluminista que nós herdamos separa dentro do Estado os vários poderes: separa Estado e Igreja; o poder econômico do político; o governo do poder do sistema de garantias; o poder político do ideológico e do midiático. Separações que se realizam através das incompatibilidades, mas também por meio de uma luta pelos direitos e pelas garantias, onde o Estado tem um grande papel, assim como a televisão, que também pode fazer o papel oposto de corromper o senso comum.

EC – Como resgatar a democracia dessas armadilhas?
Ferrajoli – A democracia é um produto dos homens e todos nós temos responsabilidade sobre ela: a cultura jurídica, a política, o senso comum, a imprensa… As democracias podem ruir mesmo sem golpes de Estado, quando se elimina a sustentação da sociedade civil, quando movimentos antidemocráticos não são combatidos por causa da indiferença da sociedade. O que sustenta a democracia não é o consenso, mas um cuidado para que não haja indiferença, porque quando ela se instala está aberta a estrada para aventuras autoritárias.

Obras: Diritto e ragione. Teoria Del garantismo penale, La sovranità nel mondo moderno, La cultura giuridica nell’Italia Del Novecento, Derechos y garantias. La ley Del más débil, Razones jurídicas del pacifismo, Epistemología jurídica y garantismo e Teoria Del diritto e della democrazia.

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