ECONOMIA

Apagão da mobilidade

Sistema viário precário, falta de planejamento urbano e culto ao automóvel paralisam o trânsito até em municípios do interior
Por Clarinha Glock / Publicado em 22 de outubro de 2010

Transporte

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

O trânsito em algumas capitais tende a entrar em colapso nos próximos anos, a exemplo do que ocorre na Cidade do México, onde o pico do tráfego é permanente, com congestionamentos que duram o dia inteiro. É o que mostra um estudo da Fundação Dom Cabral, centro de capacitação e pesquisa com sede em Minas Gerais e filiais em São Paulo e Rio de Janeiro. O “apagão da mobilidade urbana”, que deve acontecer em São Paulo dentro de quatro anos, no Rio de Janeiro, em oito e, em Porto Alegre, em 12 anos, é resultado da falta de planejamento urbano e de transporte público e alternativo de qualidade.

Se, com o trânsito parado aumentam a irritação e o estresse, o consumo de combustível e a poluição, com ele fluindo em carros cada vez mais velozes predominam os acidentes com mortes. Os mesmos brasileiros que se gabam de ter um recorde de vendas de novos veículos – com 2,4 milhões de emplacamentos de janeiro a setembro de 2010 –, amargam o registro de cerca de 20 mortes por dia nas estradas federais em 2009, totalizando 7.383 vítimas fatais em acidentes, sem falar nos feridos que chegam aos hospitais.

É fácil entender a febre por carros novos. Conte quantas páginas do jornal trazem anúncios de vendas e o número de comerciais de televisão com automóveis que juram levar você para um mundo de liberdade, natureza, mulheres e homens atraentes. Além dos investimentos publicitários na convincente indústria da comunicação, junte os incentivos dados pelo governo com impostos mais baixos para a compra de veículos, a dilatação dos prazos de pagamento e uma relativa estabilidade financeira da população. O resultado é que, a cada dia, são registrados, somente no Rio Grande do Sul, 750 novos veículos. Mesmo depois que o governo suspendeu o incentivo da isenção de impostos, as vendas continuaram crescendo. Calcula-se que estejam circulando no Brasil 61 milhões de automóveis atualmente. Se o incentivo foi massivo para a indústria automobilística, não se pode falar o mesmo do transporte público.

O professor e pesquisador João Fortini Albano, do Laboratório de Sistemas de Transportes (Labstran), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), lembra que em alguns países, quando os congestionamentos de trânsito se tornaram insuportáveis, a população migrou para outros tipos de transporte. “Só que, em países como Espanha e França, o incremento da frota foi mais lento que o nosso”, observa. Além disso, ele ressalta que os europeus já começam a pensar em carros sustentáveis, como ocorre na Espanha com o veículo a diesel, e mantêm linhas de metrô associadas a um planejamento urbano.

Culpa dos outros

Operações do porto podem duplicar em cinco anos, atingindo 50 milhões de toneladas

Foto: Igor Sperotto

Operações do porto podem duplicar em cinco anos, atingindo 50 milhões de toneladas

Foto: Igor Sperotto

A cultura do individualismo, tão presente na sociedade atual, se torna ainda mais visível no trânsito. Motoristas que não dão passagem para o carro de trás, que têm comportamentos agressivos ou que não respeitam as regras de convivência, não atuam de maneira muito diferente fora do veículo, explica Paulo Afonso da Rosa Santos Filho, responsável pela coordenação psicológica e médica da Divisão de Habilitação do Detran do Rio Grande do Sul. Ele acredita que existem um culto do automóvel e um preconceito enrustido sobre o uso de ônibus. “Há quem se orgulhe de nunca ter usado transporte público, porque diz que é para pessoas de classes econômicas mais baixas”, observa. Para alguns, o carro significa poder. Para outros, o reconhecimento a partir do olhar de fora.

Uma pesquisa feita pelo Detran-RS entre usuários de 20 municípios gaúchos, em 2010, sobre a percepção da população em relação ao trânsito, constatou que a maioria considera que os motoristas de suas cidades são imprudentes, mas não se colocam neste grupo. Em suma, a culpa é do outro. Eles não admitem que suas atitudes têm impacto no coletivo.

A solução para os congestionamentos, no entanto, passa justamente pelo coletivo. “Para ser cidadão – e não só no trânsito – tem que ter empatia, se colocar no lugar do outro e abrir mão de desejos em prol das necessidades gerais”, lembra o psicólogo. Há dois caminhos: implicar a pessoa e envolvê-la pelo bem, com a educação, ou pelo “mal”, com punição e fiscalização. Nesse sentido, é importante que os infratores tenham a certeza de que serão punidos.

Tarifa de congestionamento pode ser uma alternativa

Cardoso: medidas para restringir trânsito nas áreas centrais

Foto: Igor Sperotto

Cardoso: medidas para restringir trânsito nas áreas centrais

Foto: Igor Sperotto

Os planos para a Copa do Mundo de Futebol de 2014, que terá jogos em Porto Alegre, são anunciados como a saída para os congestionamentos de trânsito na Capital. Estão previstos a construção de ciclovias, prolongamento e alargamento de avenidas já existentes e implantação de novas vias, novos corredores de ônibus e viadutos. Em um primeiro momento, a aposta é nos BRTs – sistema de ônibus rápido como os de Curitiba (PR) e Bogotá (Colômbia). O metrô ficaria para uma segunda etapa, em 2016. Essas obras são importantes, mas talvez insuficientes, acredita o professor João Fortini Albano, do Labstran da Ufrgs. Além de melhorar a oferta do sistema viário, e considerando que o alargamento e a construção de novas vias têm limites, é preciso investir em mudança de comportamento da população.

Em São Paulo, o rodízio de carros conforme a placa do veículo funcionou parcialmente, observa Fortini. Outras opções são incentivar a carona solidária e fazer um reescalonamento de horários de expediente nas empresas, indústrias e bancos e nas escolas. “Pode-se também pensar em medidas restritivas, como proibir o estacionamento nas vias mais congestionadas, e fazer uma gestão dos preços de estacionamentos públicos e privados”, sugere. E há, ainda, a tarifação de congestionamento, que num primeiro momento provocou uma reação contrária em Londres quando foi implantada, em 2003, e hoje tem ampla aceitação, sendo que a área inicial foi duplicada. O sistema existe também em Oslo, Cingapura e Estocolmo.

João Paulo Cardoso, mestrando em Sistemas de Transportes no Pós-graduação em Engenharia de Produção da Ufrgs, explica que em Londres há pórticos nos acessos ao centro da cidade e uma câmera detecta quando o veículo atravessa o local, por meio de um chip instalado no carro. Uma forma de tarifação do congestionamento pode ser feita por horários variados. O sistema segue a lógica das promoções de passagens aéreas, ou seja, assim como os bilhetes são mais baratos nos horários em que a aeronave está ociosa, a tarifação é menor nos horários de menos fluxo no trânsito. Já nos Estados Unidos, a tarifa é por faixas diferenciadas: quem está sozinho no carro paga um valor mais alto para circular e há faixas exclusivas para os veículos com maior lotação, incentivando a carona solidária.

Cardoso elegeu a congestionada BR 116 para testar, em seu trabalho acadêmico, a viabilidade de aplicação deste sistema. Com um fluxo de 100 mil veículos/dia entre Porto Alegre e Esteio, e engarrafamentos nos horários entre 7h30min e 9h30min e entre 17h30min e 18h30min, a BR 116 opera acima de sua capacidade 24 horas por dia. A pesquisa qualitativa analisa uma amostra de 45 usuários de automóveis que trafegam na rodovia pelo menos uma vez por semana. Está na fase inicial. “Quando a pessoa diz que não tem que pagar mais impostos porque já paga muitos, ela não se dá conta dos custos adicionais de combustível, poluição, atrasos e risco de acidentes causados pelo congestionamento”, diz. O pesquisador alerta: a tarifação não pode ser uma medida isolada, requer uma opção de via alternativa, planejamento e transportes alternativos.

Prejuízos

Os congestionamentos têm um custo alto provocado pelo desperdício de tempo e combustível e pelos danos à saúde:

TEMPO – são 250 mil horas/ano dispendidas no trânsito entre os usuários de automóveis e 120 mil horas/ano para os usuários de ônibus.

ENERGIA – o consumo adicional é de 190 mil litros de gasolina e 5 mil litros de diesel na hora do pico. Por ano, são de 200 milhões de litros de gasolina e 4 milhões de diesel.

POLUIÇÃO: os automóveis são responsáveis por um excesso de emissões de 90 toneladas de monóxido de carbono (CO2) na hora do pico, ou o equivalente a 122 mil toneladas por ano.

Fonte: professor João Fortini Albano do Labstran/ UFRGS, com base nos dados do Ipea

Em Ijuí, a preferencial é do pedestre

Localizada a 441 km de Porto Alegre, no norte do estado, uma cidade com cerca de 80 mil habitantes trata seus moradores com respeito, pelo menos no trânsito. Em Ijuí, se os carros não pararem, correm o risco de ser atropelados pelos pedestres, que circulam calmamente pelas faixas de segurança – tão calmos que às vezes se esquecem de olhar para os lados.

A comerciária Sandra Burtet, 46 anos, moradora e caminhante convicta, nota que ao meio-dia e nos finais de tarde são os picos de impaciência dos motoristas. “Fora isso, os pedestres até abusam, mas os carros param mesmo”, testemunha. Essa cultura antiga começa a preocupar o coordenador de trânsito de Ijuí, Ubirathan Machado Erthal. Com o aumento da frota de carros de 15 mil para 45 mil nos últimos dois anos, a espera pela passagem dos pedestres provoca lentidão no trânsito. Além de uma campanha de conscientização e educação para o trânsito direcionada para os pedestres, serão colocados outdoors na entrada da cidade alertando que em Ijuí se respeita faixa de segurança. “É para os visitantes que não estão acostumados”, avisa Erthal.

Está em fase de conclusão um Plano de Mobilidade para preparar a cidade para os próximos 10 anos, de forma que as pessoas continuem tendo prioridade em detrimento dos veículos. A intenção é priorizar o transporte público e alternativas como a bicicleta. Desde 2009, funciona também o Programa de Humanização do Trânsito nas escolas. Os recursos para ações na educação saem das verbas oriundas do estacionamento rotativo – em 2010 serão investidos mais de R$ 70 mil.

Ijuí faz parte do Conselho Regional de Dirigentes de Trânsito, junto com os municípios de Santo Ângelo, Cruz Alta e Panambi. Uma vez por mês, representantes dessas cidades se reúnem para estabelecer ações conjuntas e reduzir acidentes. Apesar do respeito aos pedestres, Ijuí está entre as 30 cidades com maior número de mortos em acidentes de trânsito na BR 285 e nas rodovias RS 342 e RS 155 que a margeiam.

Rotina de atrasos e maus serviços de quem anda de ônibus

Com mais de 50 mil habitantes, o bairro Restinga, localizado na Zona Sul da capital, tem ares de município à parte, mas o transporte público e a infraestrutura deixam a desejar. Leandro da Silva Cidade, 37 anos, e sua mulher, Letícia de Mello Moresco, 32 anos, moram na localidade de Ipitinga, de onde se deslocam todos os dias de ônibus para a região central. Os horários e as condições dos ônibus que atendem à região dificultam a rotina, diz Leandro, que calcula ter feito umas 20 ligações para reclamar à EPTC, sem que nada tenha sido feito. A reportagem do Extra Classe acompanhou um dia na rotina do casal:

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Foto: Igor Sperotto

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Leandro e Letícia pegam o primeiro ônibus por volta das 7h25min em direção ao Terminal Restinga. Ao sair de casa, avistam Iria Viegas da Silva no outro lado da estrada João Antônio Silveira. Iria mora ali perto. Acorda às 6h e vai para a beira da estrada onde não há sinalização – além do perigo de atropelamento, esperar o ônibus naquele ponto sem abrigo, nos dias de chuva, é uma tortura. Em Ipitinga, algumas paradas de ônibus não estão sinalizadas. À noite, os passageiros têm de distinguir no meio do mato onde descer

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Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

No Terminal Restinga, há duas filas para embarque na linha R10, o R do prefixo significa
“rápida”. A de Leandro e Letícia tem prioridade, porque eles estão fazendo baldeação. A outra fila é dos que vão pegar o ônibus direto no Terminal. Às vezes o ônibus lota antes de eles entrarem.

 

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Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto


Duas paradas depois de Leandro e Letícia entrarem no ônibus, o veículo já está cheio de estudantes, donas de casa, trabalhadores, com mochilas e bolsas se batendo para poder passar. O casal viaja em pé

 

 

 

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Foto: Igor Sperotto

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Neste dia, Leandro e Letícia tiveram sorte. Sentado, ele se deixa levar pelo sono. Dá tempo: até o centro é quase uma hora de viagem. “De rápido, este ônibus não tem nada”, reclama Michelle Tusala, 32 anos. Depois de três cirurgias na coluna, ela não pode ficar muito tempo em pé. Quando pega o coletivo lotado, senta no degrau perto da porta. “Em dia de chuva, é certo que a gente se atrasa”, desabafa

 

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Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto


Pouco antes das 9h, Leandro e Letícia desembarcam na parada do viaduto Imperatriz Leopoldina, no Centro. Antes de ir para o trabalho no Bom Fim, ele acompanha a mulher até a loja onde ela é balconista. No final da tarde, o casal se encontra para fazer o trajeto de volta. Na esperança de mudar essa rotina, ele se matriculou em uma autoescola. Com a motocicleta que pretende comprar, quer ganhar tempo e qualidade de vida

Congestionamentos permanentes

A professora Glair Medeiros, vítima do calçamento irregular

Foto: Igor Sperotto

A professora Glair Medeiros, vítima do calçamento irregular

Foto: Igor Sperotto

Com 11 quilômetros de extensão, as pistas congestionadas fazem parte da paisagem de comércio da Avenida Assis Brasil. Entre 7h30min e 9h30min e 17h30min e 19h30min, há trechos em que o trânsito é um jogo de paciência. “Agora não tem mais horário de pico para circular na cidade. Ficamos trancados a qualquer hora”, diz Renato Lepage, 64 anos, motorista de táxi. A professora aposentada Glair Medeiros, 71 anos, cruza a pé a avenida repleta de desníveis e crateras, e na esquina da rua Cristóvão Pereira encontra uma calçada ainda mais esburacada. Já tropeçou quatro vezes quando o pé enganchou nas pedras mal colocadas das calçadas. Na última vez, há cerca de um ano, trincou o pulso e sofreu uma queda e um hematoma no olho. “Adotei a bengala para não cair nas ruas de Porto Alegre”, explica.

O gerente de uma ótica observa o movimento de transeuntes como Glair e, com um canto do olho, o seu automóvel estacionado na frente da loja. O estacionamento ali é proibido até as 9h, para dar mais vazão ao fluxo de carros. Clair Soares José Otão, 47 anos, mora na Zona Sul e trabalha na Zona Norte há dois anos e meio. “Antes, vinha de carro para ganhar tempo, agora dá no mesmo”. A opção pelo deslocamento de carro permite comodidades como passar no supermercado ou livrar-se da espera por ônibus.

Que o digam os usuários que aguardam os coletivos no terminal Obirici. No final da tarde, um fiscal da EPTC coordena os fiscais que se revezam no corredor para agilizar o embarque de passageiros e organizar a ultrapassagem. O cansaço e a irritação predominam. Nesse horário, Nilva Schneider, 53 anos, está ansiosa para ir para casa, em Alvorada, pois acordou às 5h30min para chegar ao trabalho às 7h. “Os ônibus estão sempre lotados, é difícil ter lugar para sentar”, reclama.

Poder econômico

Avenidas como a Oscar Pereira, em Porto Alegre, ficam paralisadas nos finais de tarde

Foto: Igor Sperotto

Avenidas como a Oscar Pereira, em Porto Alegre, ficam paralisadas nos finais de tarde

Foto: Igor Sperotto

O volume de investimentos da indústria automotiva atropela as iniciativas de planejamento e humanização do trânsito. A previsão de investimento total das indústrias integrantes da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) em aumento de capacidade de produção, novos produtos e inovação tecnológica entre 2008 e 2012 é de R$ 19,2 bilhões. Há 30 anos, o país dispunha de quatro fabricantes que produziam no máximo 40 modelos. Na última década, o número de fabricantes saltou para 20 e os modelos disponíveis já chegam a 400.

 

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