GERAL

Público-alvo é infanto-juvenil

As primeiras drogas utilizadas por adolescentes são o álcool e o cigarro, por volta dos 12 anos. São lícitas, possuem forte apelo de marketing e aceitação na sociedade
Por César Fraga / Publicado em 7 de setembro de 2011

Polêmica

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

Pai, me empresta o Iphone para eu fotografar uma coisa?” O pai alcança o aparelho ao filho, que aparenta uns cinco anos, enquanto registra tudo em vídeo. O garoto corre para o caixa de uma lanchonete, mira para o display luminoso dos cigarros Free, acima do caixa, e dispara um clique. O pai pergunta: “Por que você quis fotografar isso?”. “Porque eu gostei”, disse o menino. O pai alerta que cigarro é “nojo” e o filho retribui com outra pergunta: “Se não pode fumar aqui dentro, por que tem coisa de fumar para vender?”

A cena veiculada no You Tube no último dia 3 de agosto é emblemática do debate que envolve a publicidade de drogas lícitas (cigarros e bebidas alcoólicas), principalmente nos pontos de venda, onde crianças e adolescentes têm acesso.

O pai do garoto, identificado como ‘Andredps’, escreveu um comentário na descrição do vídeo: “Epa, eu, como pai, não autorizo essa indústria do câncer a atingir o meu filho. Se não podem fazer um comercial de cigarro no intervalo do Cartoon Network, por que podem fazer propaganda em ambientes públicos como lanchonetes, padarias, bancas de jornal etc., frequentados por crianças e adolescentes? E não é só a propaganda: cigarros são posicionados ao lado de balas e chicletes, se misturando, usando as mesmas cores “fresh”, passando a ideia que o cigarro é um produto banal qualquer”.

O argumento deste pai é similar ao de organizações não-governamentais como Associação Brasileira de Estudo de Álcool e outras Drogas (Abead), Aliança de Controle Contra o Tabagismo (ACT) e o Projeto Fumo Zero (da Amrigs), algumas das que atuam na conscientização e apoio a políticas e leis de restrição de comércio de ácool e cigarros entre crianças, adolescentes e para o público em geral. Todas criticam omarketing dessas indústrias por entenderem estar direta ou indiretamente influenciando um público totalmente vulnerável. O vídeo tem sido divulgado no site da ACT e compartilhado como contrapropaganda do tabaco na web.

De acordo com a psiquiatra Gabriela Baldisserotto, coordenadora do projeto Fumo Zero, o cérebro de crianças e adolescentes não está suficientemente maduro para tomada racional de decisões até os 25 anos. Então, os jovens são apresentados para esses estímulos altamente sedutores, − que é o papel da propaganda −, numa fase em que a capacidade de decidir racionalmente pesando consequências futuras ainda não está completamente formada. “O grande alvo da indústria, na verdade, é este público. O motivo é simples, na medida que as pessoas envelhecem, amadurecem e suas vidas mudam, muitos vão passar para um consumo moderado ou até largar algumas substâncias. A indústria precisa angariar novos clientes e esses novos clientes estão nas faixas etárias menores”. Ela explica que os comerciais passam uma imagem de tudo que o adolescente quer ser: sedutor, forte, bonito, fazer parte de uma turma, fazer festa, liberar suas censuras, fazer parte. “Existe uma correlação extremamente intensa entre quantidade de publicidade a que um adolescente é exposto e o consumo. Além disso, a experimentação precoce representa um fator de risco para dependência futura”, conclui.

ÁLCOOL − No que se refere ao consumo de bebidas alcoólicas, especificamente, a psicóloga, Ilana Pinsky, pesquisadora sênior do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas Públicas do Álcool e Outras Drogas e professora de pós-graduação do departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), diz que apesar de cerca de dois terços dos adolescentes de ambos os sexos serem abstinentes, quase 35% são menores de idade e consomem bebidas alcoólicas ao menos uma vez ao ano. Entre os que consomem, a quantidade de bebidas alcoólicas tende a ser alta. Desse universo, 9,1% (1,3 milhão de pessoas) o fazem com frequência de, pelo menos, uma vez por semana e 24% bebem pelo menos uma vez ao mês. “Fizemos um trabalho científico para verificar o quão fácil é comprar álcool. Se o meu filho de dez anos for numa padaria ele sai de lá com uma garrafa de bebida alcoólica. Utilizamos adolescentes com a aparência mais jovem possível e em 89% das tentativas eles conseguiram comprar bebidas sem nenhum entrave”, conta.

A OMS defende que as principais medidas para reduzir o consumo é aumentar o preço, reduzir a disponibilidade geral em pontos de venda (PDVs) (incluindo os horários) e redução da publicidade. Mas Ilana alerta, “quando houve a redução da publicidade do tabaco, houve a ampliação gigantesca dos PDVs. Se agora só pode fazer propaganda em ponto de venda, tudo virou ponto de venda: cabeleireiros, camelôs, os próprios jovens promotores, que são pagos para irem para as baladas nas chamadas ações promocionais”.

O negócio é vender

A indústria de bebidas fatura mais de R$ 20 bi por ano no Brasil e os gastos em publicidade superam os R$ 700 milhões. “Tanto a indústria do álcool como a de tabaco não adotam as medidas restritivas, elas se adaptam às medidas. Têm de fazer isso por definição. O negócio é vender álcool e cigarro e é sabido que as pessoas começam a fumar e beber na adolescência. Se a pessoa não começar até os vinte e poucos anos, a probabilidade de ela começar é mínima”, alfineta Pinsky. A pesquisadora afirma que no Brasil praticamente metade da população não consome álcool, o que é positivo se comparado com países como Alemanha e Inglaterra, onde o consumo ultrapassa os 90%. Por outro lado, isso também representa um mercado a ser conquistado, principalmente entre jovens que estão entrando na faixa de consumo, mulheres (que ainda bebem menos do que os homens, exceto na faixa dos 15 anos, que registra números preocupantes) e nos estados do Norte e Nordeste, onde se bebe pouco. “Se não houver prevenção a tendência natural é que o mercado continue buscando vorazmente esses consumidores”, alerta. É justamente para esses mercados potenciais que a indústria tem focado seus produtos. Os cigarros usam os pontos de venda e as embalagens como apelo. Para seduzir as mulheres existem produtos específicos, alguns até mesmo imitando estojos de maquiagem. Tanto os cigarros como as bebidas têm recebido flavorizantes (sabores) e cores para atrair o paladar de mulheres e jovens, principais alvos de ações promocionais. “As bebidas Ice são um exemplo. A indústria do álcool está fazendo o que a de cigarro fez no passado. As mesmas estratégias”, denuncia.

RESTRIÇÕES – Tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de lei 703/2011 que estabelece restrições à publicidade de cerveja. O autor da proposta, deputado Paulo Pimenta (PT-RS), aponta a medida, também defendida pela OMS, como solução estratégica frente ao aumento do consumo de bebidas e violência no trânsito, uma das principais causas de mortes no mundo, com um maior número de vítimas jovens.

A ideia de Pimenta é que o Parlamento corrija o “equívoco” na Lei 9.294 de 1996, que restringiu a publicidade de cigarros, uísque, cachaça, entre outras bebidas, mas foi “tolerante” com a cerveja. Ele relembra que na época “o Congresso sofreu um lobby muito forte e cedeu à pressão das empresas, das agências de publicidade e de atores, esportistas e cantores, garotos-propaganda das grandes marcas”.

A medida vai ao encontro das alegações da Abead quando denuncia que as orientações do Conselho Nacional de Auto-regulamentação Publicitária (Conar) são constantemente desrespeitadas e permissivas por não terem força de lei nem punições. O objetivo é lograr o mesmo êxito atingido com a legislação do tabaco. Após 15 anos da lei que restringiu a propaganda de cigarros no país, conforme dados do Ministério da Saúde, o percentual de fumantes no Brasil, que entre a década de 80 e 90 era de aproximadamente 30%, hoje apresenta índice de 15,5%.

Bebidas: pesquisa comprova exposição ao marketing

Polêmica

Foto: Igor Sperotto

Crianças: pontos de venda são estratégicos

Foto: Igor Sperotto

Uma das pesquisas recentes coordenada pela psicóloga Ilana Pinsky, comparou as frequências encontradas de propaganda de álcool com a propaganda de bebidas não-alcoólicas na televisão. Foram gravados 420 horas de programas humorísticos, novelas e esportivos nos quatro canais de televisão aberta de maior audiência durante os cinco primeiros meses de 2006. Os programas selecionados apresentaram audiência de no mínimo 10% de jovens de acordo com a medição do Instituto Brasileiro de Opinião e Estatística Ibope (Ibope).

Foram identificadas 7.359 propagandas veiculadas nas 420 horas gravadas, tanto nos intervalos dos programas como inserções dentro dos programas gravados (merchandising). Foram 444 as propagandas de bebidas alcoólicas, o que representa 6% do total veiculado, ficando em 7º lugar do total encontrado. Muito mais do que as propagandas de bebidas não- -alcoólicas, que tiveram 197 propagandas identificadas (2,7%), situando essa categoria de produto em 11º lugar.

Em todos os períodos do dia há mais propagandas de bebida alcoólica do que de bebida não- -alcoólica. No período da manhã, a diferença é mais acentuada. Chama bastante atenção, também, que a cerveja sozinha compete com grande margem de vantagem em relação à inserção de propaganda de bebidas não-alcoólicas. As propagandas de bebidas alcoólicas aparecem nos períodos manhã e tarde quase em sua totalidade ligadas a eventos esportivos. A estratégia adotada pela indústria das bebidas alcoólicas no Brasil de se associar ao esporte se assemelha ao observado em outros países. As empresas de cigarro também fizeram isso quando suas propagandas eram permitidas.

A psicóloga Ilana Pinsky alerta que, mesmo com essa grande fatia de não-bebedores, o país já apresenta vários sinais do impacto de abuso de álcool. Entre os jovens (18-24 anos), por exemplo, 40% já beberam abusivamente ao menos uma vez no último ano – cerca de metade desses indivíduos beberam nesse padrão com uma frequência mensal ou mais. Entre os meninos e as meninas adolescentes que já beberam em excesso, 30% o fizeram duas vezes ao mês ou mais.

Adolescentes expostos

Jogo com apelo infantil em site de cerveja

Foto: Reprodução

Jogo com apelo infantil em site de cerveja

Foto: Reprodução

Em pesquisa nacional, realizada em 2006, 3.007 adolescentes e jovens entre 14 e 25 anos em todo o país foram entrevistados. Conforme Ilana Pinsky, novo levantamento será concluído até o final de 2011. Alguns dos resultados foram:

– Os entrevistados viram ou ouviram uma média de 19,3 propagandas de bebidas alcoólicas no mês anterior à entrevista, contra apenas 4,8 propagandas de prevenção.

– Quase dois terços dos entrevistados foram expostos à propaganda diariamente ou quase diariamente em outdoor, revista, jornal, televisão ou rádio.

– 65% da amostra não viu nenhuma mensagem de prevenção no último mês.

– Apenas 12% dos jovens não haviam sido expostos à propaganda no mês anterior.

– 10,7% participaram de alguma promoção em bares, restaurantes ou internet no mês anterior.

– Adolescentes (14-17 anos) relataram exposição semelhante ou maior à propaganda de álcool que os jovens adultos (18-25 anos).

Consumo precoce é comum

Jovens começam cedo

Foto: Igor Sperotto

Jovens começam cedo

Foto: Igor Sperotto

Em uma escola tradicional de Ensino Médio da capital gaúcha, o consumo precoce de álcool e cigarro tanto no interior como em frente da instituição é comum entre os estudantes de 14 a 18 anos, segundo relatos dos próprios. Carla, hoje com 17 anos, afirma fumar desde os 14 e que na manhã em que nossa reportagem esteve no colégio, ela e seus amigos haviam tomado vinho durante o horário das aulas com a desculpa de sair para tirar cópias. Mas é nas festas que o “bicho pega”. Conforme Bruno, 16, que fuma, mas diz beber apenas socialmente porque quando bebe demais faz “besteira”, comprar bebida e cigarro perto da escola é fácil. Nos bares ninguém pede identidade e no supermercado raramente:

Com 20 anos completos, mas ainda no Ensino Médio, Clóvis também faz parte da turma e pouco se distingue na aparência jovial dos demais. Ele sai no meio da entrevista, que está sendo realizada na praça em frente à escola. “Já volto”, indo em direção ao bar. Segundo os demais, foi buscar mais vinho. Na volta, Bruno confessa que iniciou a fumar e beber aos 13. “Bebo bastante, principalmente nas festas, até cair”. Sobre fumar diz: “cigarro é uma merda, já tentei parar várias vezes, mas não consigo. Aí tem aquela coisa, todo mundo fuma”.

Na escola, a coordenadora informa que no pátio é permitido aos alunos fumarem. No horário do intervalo, apenas uma garota utilizava esse direito. A direção confirma que após campanhas de conscientização houve redução. Já a coordenadora considera que o índice de fumantes na escola ainda é alto. Carol confessa: “fumamos atrás da escola, entre outras coisas”, com um sorriso delator. “Não vai entregar a gente, né?”

Em uma das ruas do bairro boêmio Cidade Baixa, em Porto Alegre, os domingos à noite são conhecidos por reunir um grande número de adolescentes próximo a um supermercado. Nossa reportagem conversou com dois desses jovens, ambos com 16 anos. “Bebo para desligar minha cabeça, porque minha vida é uma merda”, afirma um deles, que justifica as várias doses de álcool que ingere por dia à rejeição que sente da mãe e dos avós com quem mora. “Com exceção do meu pai, ninguém gosta de mim”, diz. Ele iniciou a beber ainda com 12 e está matriculado em uma escola pública de Ensino Médio. “Só estou matriculado, mas não frequento”. Junto com a bebida consome cigarros, desde os 13. Já o amigo afirma que bebe porque é um hábito de família. Iniciou aos 13 anos e passou a fumar aos 14. “Sou uruguaio e no Uruguai se bebe desde cedo. Lá em casa todos bebem”, completa.

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