AMBIENTE

Estudos ambientais apelam à bricolagem

Dados copiados, informações sem consistência e alternativas mal explicadas são alguns dos problemas que atrasam a liberação das licenças ambientais
Por Roberto Villar Belmonte / Publicado em 1 de outubro de 2011
Região da hidrelétrica de Pai Querê acumula histórico problemático

Foto: Arquivo Extra Classe/ hickel

Região da hidrelétrica de Pai Querê acumula histórico problemático

Foto: Arquivo Extra Classe/ hickel

O mesmo “recorta e cola” que tira o sono de muitos professores durante a correção de trabalhos e provas escolares, pasmem, também é um problema corriqueiro na vida dos técnicos responsáveis pela análise dos processos de licenciamento dentro da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam).

“Eu já vi dois empreendimentos absolutamente distintos com Estudo de Impacto Ambiental quase idênticos, um que tramitava no departamento de poluição industrial e outro no departamento de infraestrutura e saneamento ambiental. Um era nitidamente cópia do outro, produzido pela mesma empresa de consultoria”. Quem relata é o próprio presidente da Fepam, Carlos Fernando Niedersberg, em entrevista exclusiva concedida ao jornal Extra Classe.

“Temos estudos muito precisos, com todo cuidado, com toda necessidade de rigor técnico e legislativo, tudo dentro dos conformes, e outros extremamente precários”.

A demora do licenciamento ambiental, considerado um dos gargalos do crescimento no Brasil, é geralmente atribuída à falta de estrutura dos órgãos ambientais. No entanto, ela só explica em parte o problema. Estudos de Impacto Ambiental malfeitos também atrasam, e muito, o andamento dos processos.

Quando descobriu o “recorta e cola”, o presidente da Fepam comunicou o problema ao empreendedor do estudo fraudado e pediu mais seriedade à empresa de consultoria. “Um consultor não pode, sob o risco de não receber integralmente o valor negociado com o empreendedor, fazer estudos precários”, adverte Carlos Niedersberg.

Na opinião do Promotor de Justiça Alexandre Saltz, vice-presidente da Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público do Meio Ambiente (Abrampa), via de regra os estudos de impacto ambiental são incompletos. “Em alguns casos se observa um recorta e cola, o que hoje é crime”, destaca Saltz.

“O Estudo de Impacto Ambiental, que é um instrumento efetivo de consagração do Princípio da Prevenção e da Precaução, é esvaziado por ações administrativas no sentido de flexibilizar o seu conteúdo no momento em que o Termo de Referência é entregue. Em outras vezes, na aceitação das conclusões apresentadas”, questiona Alexandre Saltz.

Estudos secundários

Dados secundários como os da região do Porto de Rio Grande já estão consolidados

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Dados secundários como os da região do Porto de Rio Grande já estão consolidados

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Apesar do “recorta e cola” ser uma fraude grave, não é o que mais preocupa os técnicos do órgão ambiental gaúcho.

“Percebemos que se trabalha muito com dados secundários de trabalhos já publicados, sem pesquisa de campo (para se obter dados primários). O maior problema é a falta de consistência das informações”, revela Rafael Volquind, chefe da Divisão de Infraestrutura e Saneamento Ambiental, recentemente eleito pelos funcionários diretor técnico da Fepam, cargo que deverá assumir em breve.

“Muitas vezes as informações não chegam no detalhamento necessário, na precisão que temos que ter para fazer a avaliação. Muitas vezes isso ocorre por alguma economia feita na elaboração do estudo para ficar mais compatível com o preço negociado com o empreendedor. Para reduzir custos, cortam alguma coisa que poderia ter a mais, e às vezes isso acaba fazendo falta”, explica Rafael Volquind, Engenheiro Civil que trabalha há seis anos no órgão ambiental gaúcho.

Em regiões exaustivamente estudadas, como o Porto de Rio Grande, a Fepam aceita mais dados secundários do que em outras. “Se trata com mais dados secundários, mas são tantas pesquisas já realizadas pela Furg e de tão boa qualidade que são quase como dados primários. Não tem porque ficar repetindo de empreendimento para empreendimento as mesmas informações. Em função disso, temos observado que ali já saem estudos rápidos”, relata Rafael Volquind.

O diretor técnico da Fepam informa ainda que, frequentemente, há também problemas na apresentação das alternativas de localização e tecnológicas. “Isso pode gerar idas e vindas. Mas todo mundo sabe que tem que fazer isso, pois é uma das premissas básicas da resolução 01/86 do Conama (que dispõe sobre critérios básicos e diretrizes gerais para a avaliação de impacto ambiental). Temos que ter qualidade na informação para que a gente tenha segurança para conceder uma licença”, pondera Rafael Volquind.

Poluidor pagador

O fato de ser o empreendedor quem escolhe e paga uma consultoria para a realização dos estudos de impacto ambiental, conforme determina a resolução 01/86 do Conama, prejudica o processo de licenciamento ambiental na opinião de Francisco Milanez, atual presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan).

“O Estado deveria fazer uma concorrência pública para selecionar a consultoria mais capacitada para cada empreendimento. Ela seria paga pelo empreendedor, mas teria mais autonomia para fazer os estudos necessários. E os empreendedores não seriam tão explorados”, defende o ecologista Francisco Milanez, presidente da Agapan.

Milanez, que é biólogo e arquiteto, conta que após sair do órgão ambiental gaúcho, que ajudou a criar, tentou atuar no mercado de estudos de impacto ambiental no Rio Grande doSul, mas acabou desistindo porque era procurado por empresas que condicionavam o pagamento do serviço à liberação das licenças.

O senhor já ouviu falar de empresas que condicionam o pagamento integral do EIA/Rima à concessão da licença no órgão ambiental? “Não me soa como novidade”, reconheceu ao jornal Extra Classe o presidente da Fepam, Carlos Fernando Niedersberg, confirmando a informação do presidente da Agapan.

“Existe sempre uma negociação em que o empreendedor tenta jogar o pagamento de parcelas para depois da liberação da licença. Isso faz parte do mercado. Nem todos fazem isso. Mas muitos fazem”, explica Alexandre Bugin, proprietário da ABG Engenharia e Meio Ambiente que atua há 20 anos na elaboração de estudos de impacto ambiental.

Rafael Volquind, diretor técnico da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam), garante: “Não ratificamos qualquer estudo apresentado pelas consultorias. Se não estiver em condições, não liberamos para licença. Tem casos que não liberamos sequer para audiência pública de tão mal feito. É raro fazer isso, mas acontece”.

Correio, papel e caneta

Dentro de suas limitações, a Fepam muitas vezes tenta auxiliar grandes empreendimentos prioritários para o Governo do Estado.

“Infelizmente não temos capacidade de fazer isso para todos. Se um empreendimento menor apresenta um estudo ruim, o processo de licenciamento acaba levando muito tempo porque eles têm que corrigir sozinhos e muitas vezes não têm capacidade para isso”, lamenta Carlos Niedersberg.

A grande mudança que começará a ser implementada nos próximos meses, ressalta o presidente da Fepam, é sair do século 19 e entrar no século 21: “Hoje ainda utilizamos correio, papel e caneta, o que nos demanda muito tempo. Precisamos informatizar todo o processo, inclusive a correspondência com o empreendedor, que hoje ainda é por carta registrada. Queremos informatizar todo o processo”.

A principal dificuldade, na avaliação do consultor Alexandre Bugin, que atua há duas décadas nesse mercado, são os prazos apertados. “Alguns empreendedores já se deram conta disso e estão encomendando os estudos com mais antecedência. Outro problema que também atrapalha é a falta de estrutura do órgão ambiental. Os governos, apesar de saberem dos novos investimentos, não se preparam para isso”, observa Bugin.

Rever resolução

O diretor técnico da Fepam, Rafael Volquind, acha que está na hora de rever a resolução 01/86 do Conama em alguns casos.

“Existem situações em que já nos perguntamos se vale a pena ter Estudo de Impacto Ambiental para cada empreendimento ou se já podemos trabalhar com novas ferramentas, com zoneamentos ecológicos econômicos, com mapeamento melhor daquela atividade em todo o ambiente, que poderia fazer um estudo do ambiente como um todo e a gente fazer só a avaliação pontual local do empreendimento, com base no zoneamento”, defende Volquind.

O consultor ambiental Alexandre Bugin também defende mudanças na resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente: “Tu não podes dizer que um EIA/RIMA tem que ter dois anos de trabalho. Isso o Ministério Público muitas vezes questiona. O fato de um trabalho ter sido feito em seis meses não significa que o trabalho está mal feito. Se já tem dados levantados de boa qualidade, não tem porque fazer, por exemplo, quatro campanhas de fauna. Precisa quando não há informação. No mínimo se faz duas campanhas de fauna para confirmar informações já existentes”.

“O problema está na aplicação da legislação”

Saltz, Promotor de Justiça

Foto: Marco Quintana/divulgação/MP/RS

Saltz, Promotor de Justiça

Foto: Marco Quintana/divulgação/MP/RS

Alexandre Saltz, Promotor de Justiça da Promotoria de Justiça de Defesa do Meio Ambiente de Porto Alegre e vice-presidente da Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público do Meio Ambiente (Abrampa)

Extra Classe – É preciso rever a resolução 01/86 do Conselho Nacional do Meio Ambiente que dispõe sobre critérios básicos e diretrizes gerais para a avaliação de impacto ambiental?
Alexandre Saltz – Acho que não é, pois ela é boa. O problema está na aplicação da legislação. Os órgãos ambientais flexibilizam o padrão de exigência que seria esperado para determinado tipo de empreendimento. Isso pode decorrer muitas vezes de uma política de governo com o objetivo de estimular algum tipo de atividade econômica.

EC – O fato do empreendedor ser o responsável por contratar e pagar uma consultoria para fazer o Estudo de Impacto Ambiental não tira a credibilidade do processo de licenciamento?
Saltz – Existem dois modelos no mundo. Esse que o Brasil utiliza, em que o órgão ambiental tem o poder decisório na mão e ele se vale de um estudo que ele delega, até em nome do Princípio do Poluidor Pagador, para o empreendedor fazer. O outro modelo é o das agências, utilizado pelos Estados Unidos, onde todo o estudo é feito por agências privadas, também responsáveis pelo licenciamento. Só que lá o sistema normativo funciona. Aqui temos que judicializar tudo. Lá não, a decisão administrativa é tomada e tem valor.

EC – E no Rio Grande do Sul?
Saltz – Aqui o Estado não está nem preparado para julgar as infrações administrativas que ele mesmo lavra. É triste, mas é verdadeiro. O problema não é quem paga pelo Estudo de Impacto Ambiental. O desvio no processo está no próprio órgão ambiental que tem no Estudo de Impacto Ambiental um estudo completo.

EC – As empresas de consultoria que são pegas fraudando estudos de impacto ambiental não deveriam ser punidas?
Saltz – A própria legislação prevê isso. Uma das sanções possíveis é a proibição de contratar e de prestar serviço que envolva recurso público e estas obras, hoje, todas têm algum tipo de financiamento público. Já há mecanismos normativos que impossibilitariam que essas empresas continuassem no mercado prestando um serviço ruim. Bastaria a ação firme do órgão ambiental. Deve ter um processo administrativo que funcione. A visão de que o Estudo de Impacto Ambiental é um documento meramente burocrático só vai mudar com uma ação firme, com fiscalização, com interdições, com demolições, aplicações de multas severas, proibição das empresas de consultoria de contratar com o poder público.

Sindicato luta por licitação separada

Dois problemas contribuem com a falta de qualidade dos estudos de impacto ambiental, na avaliação do Geólogo Júlio Moretti Gross, vice-presidente da seção gaúcha do Sindicato Nacional das Empresas de Arquitetura e Engenharia Consultiva (Sinaenco).

O primeiro deles é o não desmembramento das licitações públicas em projeto, estudo de impacto e obra. “As empresas de meio ambiente ficam de fora”, explica o proprietário da Geocenter Consultoria e Projetos. Atualmente existem cerca de 15 empresas no Rio Grande do Sul com equipe capaz de realizar estudos de obras de grande porte, cinco delas filiadas ao Sindicato.

Outra dificuldade, destaca o empresário, é a falta de clareza por parte do órgão ambiental sobre o que é necessário para cada empreendimento.

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