EDUCAÇÃO

Gónve quer voar

A primeira indígena e primeira aluna cotista da história da Ufrgs se formará em setembro e pretende retornar à aldeia para ajudar sua comunidade como enfermeira
Publicado em 11 de maio de 2012
Denize cumpre estágio num Programa de Saúde da Família (PSF) na Zona Sul de Porto Alegre

Foto: Marcelo Amaral

Denize cumpre estágio num Programa de Saúde da Família (PSF) na Zona Sul de Porto Alegre

Foto: Marcelo Amaral

Ela cresceu na Terra Indígena da Guarita, em Tenente Portela, testemunhando toda a sorte de carências dos seus. Durante a infância e adolescência, enquanto corria pela paisagem de coxilhas e campos das terras férteis da região Norte gaúcha, não sabia exatamente o que fazer para ajudar. Então, o jeito que encontrou para pensar em algo que pudesse alterar as condições precárias da gente de sua aldeia foi estudar. Primeiro, Denize Letícia Marcolino, indígenakaingang, cumpriu o ensino básico na escola da comunidade. Depois da quinta série, precisou deixar a Guarita para estudar. Então, passou a frequentar a escola na Vila São João, vizinha à aldeia onde sempre morou.

Hoje, aos 21 anos, o percurso da estudante de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) se completa em setembro. Mais precisamente no dia primeiro, a partir das 14h, Denize subirá ao palco do Salão de Atos da Ufrgs e receberá seu diploma.. O simbolismo do ato paira além do papel que atesta a condição de formada no Ensino Superior. Denize será a primeira indígena e, por extensão, a primeira aluna cotista da história da Ufrgs a vencer toda a dificuldade que é se formar na mais importante universidade do Sul do país. Atualmente ela cumpre estágio num Programa de Saúde da Família (PSF) na zona Sul de Porto Alegre.

O percurso não foi fácil. Denize ingressou no primeiro semestre de 2008. Como cotista indígena, tinha direito a concorrer a uma das dez vagas que a Ufrgs reserva a comunidades das mais variadas etnias indígenas do estado. Mesmo assim, precisou prestar vestibular. Respondeu a questões de uma prova de Língua Portuguesa e escreveu uma redação sobre sua cultura.

Antes do vestibular, chegou a pensar em Direito. Talvez, o conhecimento das leis dos brancos pudesse, de alguma forma, transformar as condições de vida da maior aldeia indígena do estado. Mas a ideia de brigar por sua etnia em tribunais e na Justiça deu lugar à vontade de ajudar numa questão ainda mais básica. “Cresci vendo a situação da minha comunidade, as condições muito precárias em vários aspectos. Então, não sabia exatamente o que eu tinha que fazer, até quando fui me inscrever para o vestibular tinha que escolher uma opção de curso. Fiquei em dúvida entre o curso de Enfermagem e Direito, e com a ajuda da minha mãe acabei optando por Enfermagem”, conta ela.

A jovem kaingang diz não ter relatos de discriminação para contar, apenas uma leve desconfiança em relação à sua capacidade de aprendizado, e a certeza de que fez a opção pela profissão certa. Desconfiança que ela transformou em potência para jamais ser reprovada em alguma disciplina do curso e acumular conceitos A, B e C. Passou sempre, concluiu o curso em quatro anos e meio. No tempo certo.

Num curso de turno integral, como é o caso da Enfermagem, nas noites e madrugadas sobravam horas de estudo. Em geral, Denize lia compêndios de anatomia, estudava procedimentos e processos de enfermagem. Aprendia as etapas da consulta e formas de humanização da profissão. Saber como tratar o paciente é crítico. Precisava saber e entender tudo de que um paciente precisava. Nas vésperas das provas, entrava em cena a formação de grupos de estudo com colegas.

Também foi com a ajuda de professores, de seu esforço e de colegas que conseguiu vencer a principal barreira. “Tive um pouco mais de dificuldade com a linguagem, pois eu sempre falei só em línguakaingang quando eu morava na aldeia e depois que vim para Porto Alegre comecei a praticar mais o português”, escreve ela por e-mail, num português sem reparos.

A ajuda e a integração se manifestavam também antes das provas. Denize mora numa das casas de estudantes da Ufrgs. Adaptada à vida que leva como estudante, tem a noção exata de que faz história. Desde dezembro, está casada com o estudante de Pedagogia Josias Mello, de 24 anos. Os dois kaingangsse conheceram na Guarita. Ele é natural de Planalto, cidade próxima a Tenente Portela. Os laços, no entanto, se apertaram na Universidade. Josias cursa o terceiro semestre e teve no exemplo da esposa a certeza de que também poderia. “Ele vinha me visitar aqui e via que eu não reprovava. Acho que fui um incentivo”, diz Denize.

ALDEIA – Longe cerca de 600 quilômetros de sua casa, Denize quer voltar. A saudade é grande, algo que as duas viagens por mês, por conta da distância e do preço das passagens, não diminui. Apesar da felicidade do diploma, diz se sentir mais livre perto do chão onde nasceu. Quer voar pelos campos da Guarita, fazer juz ao seu nome indígena. Gónve (pronuncia-se Godnué) significa pomba em kaingang.

“Gosto muito da minha profissão, sei que através disso vou conseguir ajudar a minha comunidade, principalmente na área da Saúde. Meu plano é voltar para aldeia depois de concluir o curso. Quero exercer a profissão na Saúde pública principalmente na minha comunidade. Mas também quero buscar melhorias na área da Saúde para povos indígenas em geral, pois há muito a ser feito. Também pretendo continuar meus estudos, fazer pós-graduação.

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