SAÚDE

Caderno especial Corrida contra o tempo e outros obstáculos

A história e a conjuntura atual do sistema de transplantes no estado e no país com entrevistas de médicos e de transplantados, são tema deste caderno especial
Por Clarinha Glock e Marcia Camarano (textos), com fotos de Igor Sperotto / Publicado em 7 de setembro de 2012

Foto: Arquivo Pessoal

Foto: Arquivo Pessoal

O voo em busca de um órgão a ser transplantado é sempre tenso. O cirurgião cardiovascular Álvaro Albrecht, 37 anos, do Instituto de Cardiologia, já buscou mais de 50 corações desde que começou a fazer a captação de órgãos, em 2003. A equipe é acionada após a confirmação da morte cerebral do paciente, do consentimento dos familiares com a doação e da localização, pela Central de Transplantes, de um receptor compatível.

Antes de sair, Albrecht confere a previsão do tempo e o destino da viagem.

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“Se for noite e estiver chovendo, há chance de não ir, porque o aeroporto de pequenas cidades costuma estar fechado. A decisão de dizer não é sempre difícil, porque sabemos que alguém espera por aquele coração”.

Chegando ao local, se for um transplante múltiplo, é preciso esperar que cada equipe faça a retirada de seu órgão.

Depois de embalar o coração e colocá-lo na maleta com gelo e líquido, começa a corrida contra o relógio: deslocar-se até o aeroporto, enfrentar o trânsito para o hospital, tudo tem que ser cronometrado. “Se tiver um avião mais rápido e batedores para o transporte em terra, ganho tempo, e qualquer tempo é importante”, calcula.

Aviões pequenos, turbulência, falta de iluminação à noite em aeroportos, espera na pista para decolar são obstáculos frequentes. Ainda assim, Albrecht se define como “apaixonado” por esse trabalho, que considera “uma missão”.

Sistema Nacional de Transplantes

Criado em 18 de agosto de 2000, o Sistema Nacional de Transplantes funciona em tempo integral e sua base está situada no aeroporto JK, em Brasília. Um dos mais bem elaborados programas públicos de transplantes de órgãos, conta com 548 estabelecimentos de saúde e 1.376 equipes médicas autorizadas, que abrangem 25 estados.

A Central de Transplantes do RS é uma das unidades pioneiras e das mais bem equipadas, com histórico de transplantes de todos os tipos de órgãos, exceto intestino. Isso faz com que pacientes de outros estados recorram ao tratamento em solo gaúcho.

O transporte dos órgãos é um dos estágios mais sensíveis do trabalho das equipes. Em uma área de até 200 quilômetros, o traslado é rodoviário, com veículos da Secretaria Estadual da Saúde ou locados. Após esse limite, as equipes recorrem às companhias aéreas, que mantêm um convênio com o Ministério da Saúde e dão prioridade ao transporte de órgãos para transplantes.

Após a retirada, alguns órgãos devem ser implantados de 4h a 6h no receptor, sob pena de serem perdidos. Pulmão e coração sobrevivem de quatro a cinco horas fora do corpo. Córneas podem ser preservadas por até dez dias e rins têm uma sobrevida de 24 a 30 horas. Por causa da sobrevida, há uma ordem para retirada dos órgãos de um doador. Primeiro são o coração e os pulmões e em segundo lugar o fígado, seguido de pâncreas, rins, córneas, pele e, por fim, ossos.

“Essa ordem tem que ser respeitada para que haja pleno aproveitamento”, ressalta a assistente social da Central de Transplantes do RS, Maria Marta Leirias.

Tempo: espera por transplante renal é maior

O número de pacientes que aguarda por um transplante de rim é maior na comparação com a lista de espera de doadores de outros órgãos. A lista de espera por rim, que é atualizada semanalmente, continha 1.060 pessoas no final de julho.

“O rim é pioneiro em tudo porque, do ponto de vista anatômico, é perfeito. São necessárias três suturas, o ideal para se fazer transplantes. Por isso, está sempre na frente dos outros órgãos. E também porque pode ser doado em vida”, explica Valter Garcia.

O transplante de rim, no entanto, só começou a dar certo a partir dos anos 50, com a descoberta da droga azatioprina, que reduz a rejeição.

O médico ressalta ainda que é fácil detectar problemas em simples exames feitos em laboratório, como o de creatinina, que mostra a porcentagem de funcionamento do órgão. Se o rim funciona mal, menos de 10%, o paciente começa a correr risco de vida. O método é, portanto, fácil. Outra particularidade: se o rim ficar muito doente, o paciente vai para diálise.

“Ele não morre de insuficiência renal, porque tem a diálise. É um procedimento doloroso, mas o mantém vivo. De coração e pulmão se morre”, ensina Garcia. “Além disso, quem necessita de transplante de rim entra na fila e tem condições de ficar nela por seis meses, em condições de continuar vivo, o que não acontece com outros órgãos”, raciocina.

Igualdade no acesso aos transplantes

“A diferença entre transplante de órgãos e outras cirurgias acabou por merecer uma legislação específica, que foi evoluindo ao longo do tempo, até chegar na organização do sistema como ele se encontra hoje”, informa o cirurgião Roberto Schlindwein, que foi coordenador da Central de Transplante do RS de 1998 a 2004.

Segundo ele, é considerada a legislação mais moderna, em termos de regulação e igualdade de condições no acesso aos transplantes, com financiamento completo pelo SUS.

A Lei 9434/1997, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento, ressalta, é “a culminância de uma série de situações para tentar organizar o processo”. O médico conta que, ao longo dos anos, a prática cotidiana é que ia determinando as necessidades. Era preciso dar início à organização do sistema.

Ele lembra que, em meados da década de 90, quando ainda não havia regulação e a legislação era muito tênue, foi-se percebendo a necessidade de regular o setor, pois a captação de órgãos se dava em hospitais, de forma não muito organizada.

“Era urgente criar normas e a Central precisava se instalar na Secretaria da Saúde, que é uma instituição pública, para se controlar o processo”.

A Central de Transplantes/RS passou a existir, de fato, a partir de 1997, com a nova legislação.

LISTA ÚNICA – Em abril de 2004, Schlindwein foi para Brasília coordenar o Sistema Nacional de Transplantes, onde ficou até agosto de 2007. “Conseguimos consolidar um trabalho importante, as listas estaduais passaram a compor uma lista única, a fim de se atender às urgências máximas”. Os sistemas dos estados também se transformaram em um sistema único, gerenciado via web, “algo inédito em todo mundo”, avalia.

Legislação

A Lei 9.434, de 04 de fevereiro de 1997, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante, foi posteriormente alterada pela Lei nº. 10.211, de 23 de março de 2001, que substituiu a doação presumida pelo consentimento informado do desejo de doar. Mais sobre as leis

Solidariedade e vitória contra o preconceito e a desinformação

Especial | Cultura Doadora

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Insuficiência renal soava como um palavrão para Fátima Marmitt Wadi, quando ela tinha 10 anos de idade, ainda mais quando era obrigada a deixar a família em Santa Rosa e ir a Cruz Alta para sessões de hemodiálise que lhe provocavam náuseas.

A mãe, Yone, dera-lhe vida pela segunda vez, doara um rim à menina.

O procedimento foi bem-sucedido, mas ninguém lembrou de alertar sobre os efeitos colaterais dos medicamentos contra a rejeição, que provocam inchaço no corpo do paciente.

A rejeição veio dos colegas de escola e de outras pessoas que, sem saber, quase provocaram uma tragédia.

Normalmente, um rim transplantado pode funcionar bem de 15 a 18 anos. O de Fátima durou menos. Alvo das piadas cruéis das crianças por estar mais rechonchuda, ela diminuiu por conta própria o remédio, acelerando o processo que a levou ao segundo transplante, aos 19 anos.

A doadora, desta vez, foi a irmã, a professora Naíma, 44 anos (foto acima).

“Sabia que tinha de fazer isso pela vida dela. Vivo há 20 anos com um só rim e nunca tive problema”, revela Naíma. A recuperação foi rápida: ela doou o rim em maio e, em junho, já estava trabalhando.

Com o segundo transplante, Fátima fez tudo direitinho: tomou os remédios que a mantiveram saudável e conseguiu formar-se em Veterinária, morar um tempo nos Estados Unidos e abrir sua clínica. Passado o prazo de validade – o rim transplantado durou 20 anos –, precisou de um novo órgão. Ficou dois anos à espera de um doador, utilizando um rim artificial custeado pelo SUS

Em 24 de janeiro deste ano, a família de um jovem de 24 anos com morte cerebral autorizou a doação de seus órgãos. Fátima foi beneficiada. Três transplantes de rim depois, o bom humor e a vontade de viver fazem de Fátima, hoje com 41 anos, uma vitoriosa. “Pretendo continuar estudando e seguir com a vida”, diz.

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