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A repetição como farsa

Por Gilson Camargo / Publicado em 12 de setembro de 2014

A repetição como farsa

Foto: arquivo pessoal

Foto: arquivo pessoal

O sequestro e execução de três israelen­ses, na noite de 12 de junho, poderiam ter sido investigados pela polícia como crime comum, a exemplo de um assas­sinato que ocorreu no mesmo período e, de fato, não passou de um caso de polícia. O sumiço dos jovens israelenses Naftali Fraenkel, Gilad Shaar e Eyal Yifrah, supostamente sequestrados por dissidentes do Hamas nas proximidades do acampamento de Alon Shvut, na Faixa de Gaza, no entanto, vi­rou questão de Estado e estopim para o início dos bombardeios contra palestinos em Gaza. Segundo a ONU, 86% dos mortos são civis.

Em 40 dias de ataques, 2.016 palestinos foram mortos (dos quais 541 crianças, 250 mulheres e 95 idosos) e 10.196 feridos; e 64 soldados israelenses morreram. Para o professor de Relações Internacionais da PUC-SP, Reginaldo Mattar Nasser*, as baixas palestinas são “assustadoras”, especialmente devido ao alto percentual de crianças entre as vítimas e os bom­bardeios contra locais de concentração de civis como mesquitas, zonas residenciais, escolas da ONU, o que suscitou acusações formais por organismos in­ternacionais de violações do direito internacional e crimes de guerra por parte do Estado de Israel.

Nesta entrevista, ele analisa os bastidores do con­flito, e as influências e interesses do Ocidente na manutenção do estado de guerra na região. “EUA apoiam tudo que favorece Israel, assim como In­glaterra e França; Rússia e China não se impor­tam; as relações comerciais e militares entre Brasil e Israel nunca estiveram tão em alta”, constata.

Extra Classe – O que é mito e o que é verdade nas alegações de que os conflitos entre israelen­ses e palestinos por território e soberania seriam uma guerra milenar?
Reginaldo Mattar Nasser – O conflito entre palestinos e judeus teve início pela posse de terras entre no início do século 20 e foi se intensificando ao longo dos anos 1930 e 1940, o que culminou com a criação do Estado de Israel em 1948. No início do século 20, os judeus na Palestina representavam por volta de 6% da população. Em 1947, os judeus já compunham cerca de um terço da população. Es­tima-se que 750 mil palestinos foram expulsos de suas terras. Essa situação se agravou após a chama­da Guerra dos Seis Dias, quando Israel avançou na ocupação, tomando Gaza e Cisjordânia.

EC – Israel acusou o Hamas do sequestro de três israelenses e usou o crime para começar os bom­bardeios. Por que essa justificativa é questionada?Nasser – Israel acusa um palestino que teria sido financiado pelo Hamas, mas não há nenhum proces­so nem provas conclusivas. Mas após os três jovens ju­deus serem sequestrados, o governo israelense omitiu a informação de que já estavam mortos e com isso or­denou uma ação sistemática de revistar 2 mil casas, o que resultou em 550 palestinos presos e quatro mor­tos. A opinião pública judia e palestina se inflamou. Assim foi montado um perfeito cenário para a ação militar que se seguiria. Não se sabe se foi um ato do Hamas, que nega qualquer participação. Ao que tudo indica, era o acontecimento que a extrema direita is­raelense queria para justificar uma guerra e não tratar com prudência como se fosse caso policial.

EC – O senhor já afirmou que um ato isolado que ganha dimensões coletivas pode se transfor­mar em guerra em se tratando de Oriente Médio. O atual nível de tensão entre árabes e palestinos poderia levar à terceira Intifada?Nasser – A região sempre foi objeto de cobiça e domínio de impérios. O império Otomano exerceu domínio por séculos, com o final da 1ª Guerra Mun­dial, e após sua desintegração foi a vez do domínio dos europeus, como Inglaterra e França. Sabe-se também que os impérios usam sempre do artifício Divide e Impera, isso é, provoca dissenso e conflito entre religiões e etnias para justificar a manutenção de um poder de fora que colocaria ordem. Os confli­tos nessa região indicam claramente o perfil de proxy wars – guerras patrocinadas por poderes de fora.

EC – Afinal, trata-se de guerra, massacre, genocídio ou ocupação?
Nasser – Não podemos correr o risco de trans­formar uma questão real, morte de civis e crianças, em um debate terminológico. O termo “genocídio” não existia antes de 1944. É um termo muito específico, referindo-se a crimes que têm a intenção de destruir a existência do grupo. Ora, provar a intenção de alguém é cada vez mais difícil e nesse sentido corremos o ris­co de ficarmos presos a detalhes etimológicos ou jurí­dicos enquanto a realidade se impõe. De outro lado, quando se relaciona com a questão da ocupação, passa inclusive a ser minimizado. Veja só. No início do ano esteve aqui no Brasil um dos mais destacados historia­dores judeus da questão palestina, Benny Morris, que já afirmou, sem meias palavras, que tal como no caso dos EUA em que o país só existe devido à “aniquila­ção dos índios” a “Palestina seria um lugar mais tran­quilo, com menos sofrimento, se o problema tivesse sido resolvido de uma vez por todas… Se Ben-Gurion (David Ben-Gurion, primeiro chefe de governo de Is­rael e líder do movimento Sionismo socialista, morto em 1973) tivesse realizado uma grande expulsão e limpa­do toda a Terra de Israel, até o rio Jordão” (http://hnn. us/article/3166). Massacre ou genocídio são as con­sequências desumanas do processo de ocupação que ocorre na Palestina desde o início do século 20.

EC – Qual o papel do Hamas e do Fatah na frustração das negociações?
Nasser – Percebendo a crescente falta de legiti­midade em Gaza devido às críticas de autoritarismo e corrupção, o Hamas e o Fatah estabeleceram um governo da unidade, no mês de maio, que reafir­mou seu comprometimento com a via diplomática para a solução do conflito com Israel. Entretanto, Israel e os EUA disseram não reconhecer o novo governo e ameaçaram com possíveis sanções.

A repetição como farsa

Imagem: reprodução

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EC – O líder do Fatah, Marwan Barghouti, apontado como alguém capaz de unir os palesti­nos e avançar nas negociações de paz com Israel, exerce alguma influência no cenário atual?
Nasser – Se as eleições presidenciais se re­alizassem na Palestina em abril de 2014 com três candidatos, Mahmud Abbas, Marwan Barghouti e Ismail Haniyeh (Hamas), Barghouti ganharia com 36%, seguido por Haniyeh (33%), e Abbas (28%). Se fosse entre Barghouti e Haniyeh ficaria entre 60% a 34%. Lembro que Barghouti está preso em Israel desde 2002.

EC – Como conciliar o argumento israelense de “autodefesa” com as imagens de crianças mor­tas, bombardeios a escolas da ONU, mesquitas e hospitais e violações de acordos de cessar-fogo?
Nasser – Israel argumenta que tem repetido exaustivamente que tem direito à defesa. O que é mui­to estranho, pois é óbvio que Israel, como qualquer ator, estatal ou não estatal, tem amplo direito à defe­sa. Mesmo que alguém, por ventura, dissesse algo em contrário, não teria efeito prático, pois Israel tem poder suficiente para fazer valer sua defesa, além de contar com o apoio da maior potência do mundo. Aliás, tanto tem capacidade de se defender que após um mês de combates em que foram lançados milhares de foguetes pelo Hamas, somente três civis foram mortos. Já 64 militares israelenses morrem em combate por terra.

EC – Que crimes de guerra foram cometidos no conflito, de lado a lado? Quais as alegações de acusação e defesa possíveis?
Nasser – Acusam o Hamas de utilizar pessoas inocentes como escudos humanos, mas até o momen­to não há nada concreto. O percentual de mortos civis do lado palestino é assustador. Por volta de 80%, sen­do 30% de crianças e milhares de feridos. Há teste­munhos de funcionários estrangeiros que trabalham em ONGs testemunhando ataque às escolas. Mas tudo isso é muito difícil de ser provado. Em 2006, no Líbano, e em 2009, em Gaza, também cogitou-se de penalizar Israel. As vítimas são contabilizadas como danos colaterais, pois é difícil demonstrar que havia a intenção de causar morte. Mas mesmo que admita­mos que não havia a intenção, fica claro também que não há preocupação em evitar as mortes.

EC – Quais são as orientações do manual The Israel Project’s 2009 Global Language Dictionary, elaborado após a guerra de Gaza de 2008, e in­corporado como código de conduta pelas autori­dades israelenses?
Nasser – Após a guerra de Gaza de 2008, al­guns judeus americanos se reuniram e elaboraram um tipo de guia de mídia com orientações para po­der sustentar a defesa das ações militares de Israel. É um conjunto detalhado de conselhos de como argumentar, que palavras utilizar etc. Uma dessas estratégias tem sido muito frequente aqui no Brasil. Mostre ser sensível às mortes dos palestinos, mas coloque a culpa no Hamas por tudo o que acontece.

EC – Como o senhor vê a cobertura jornalís­tica dos conflitos?
Nasser – Não é nada diferente daquilo que acon­tece quando está envolvida uma grande potência do Ocidente. Poucas agências de notícias dominam as informações. Além disso, há forte pressão política e econômica contra eventuais jornais que manifestem postura mais crítica à Israel. Mas, por outro lado, há também muito vigor em mídias independentes que se difundem pelo mundo por meio das redes. Nota­-se também algum dissenso em mídias tradicionais como a CNN. Outro dia seu âncora debateu intensa­mente, ao vivo, com o porta-voz do governo de Isra­el. As reportagens de alguns brasileiros que estão em Gaza têm de ser “garimpadas” para conseguir encon­trar alguma coisa interessante. Dou como exemplo reportagens feitas sobre os famosos túneis, mas que foram feitas sob a ótica dos militares israelenses. Pro­vavelmente até em sua companhia.

EC – O que significa “paz violenta” e como é o cotidiano da população civil em Gaza?
Nasser – Essa expressão tem sido utilizada por aqueles que seguem as teorias sobre violência, ela­boradas pelo celebrado sociólogo norueguês Johan Galtung, que definia um tipo de violência como estrutural. Isso refere-se à manutenção de mecanis­mos sistêmicos de injustiça, exploração, humilha­ção, que causam a morte e oprimem milhares de pessoas em situações onde não há conflitos bélicos. Entendo que se aplica perfeitamente à vida dos pa­lestinos em Gaza, mesmo na ausência de guerra. De acordo com a FAO, órgão das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação, 61% da população de Gaza têm acesso precário a itens básicos, como alimentos, água potável e material escolar. Entre 2008 e 2009, a pesca local teve queda de 47% de­vido ao bloqueio de Israel à navegação de barcos; o desemprego está em torno de 40% e o uso médio de água é de cerca de 70 litros por pessoa, lembrando que a OMS recomenda no mínimo 100 litros.

EC – Acredita em acordos de paz para a região? Qual o papel da ONU e das grandes potências?
Nasser – A ONU é composta por vários organis­mos e tem um papel humanitário importante, ao lado de outras organizações governamentais e não gover­namentais. Mas em aspectos que envolvem ações de imposição da paz (peace enforcement) é um organismo internacional e, portanto, é aquilo que os Estados que­rem que ela seja. Ou seja, no âmbito do Conselho de Segurança, depende fundamentalmente das grandes potências. Infelizmente, no caso da Palestina, há os EUA que apoiam absolutamente tudo que favorece Israel e os outros membros, como Inglaterra e França, seguem os norte-americanos ou, como Rússia e Chi­na, que não se importam com o problema. A opinião pública mundial tem sido um fator importante para dar voz às demandas dos palestinos e, principalmen­te na Europa, tem pressionado seus governos. Pode haver um cessar-fogo, mas, infelizmente, é apenas a pausa para novos conflitos e massacres.

EC – O senhor considera viável uma inter­venção internacional? Por quê?
Nasser – É desejável que haja uma intervenção, mas é curioso como nem se cogita essa possibili­dade. É uma tremenda hipocrisia que países como EUA, Canadá, França, Inglaterra etc. sempre falem na doutrina da responsabilidade de proteger civis, mas não vale para os palestinos. É improvável pelos motivos que expus acima.

EC – Qual a realidade de regiões que sofre­ram intervenções dos EUA, como Afeganistão e Iraque, e de forças de paz, como é o caso da mis­são brasileira no Haiti? Que variáveis uma mis­são enfrentaria em Gaza?
Nasser – O argumento da busca da paz e a re­alização de objetivos humanitários passaram a fazer parte para justificar ações armadas. São muitos os subterfúgios, guerra de gangs no Haiti, terrorismo no Afeganistão e Iraque; mas na verdade, onde se justificaria uma força de paz de manutenção e não de imposição seria em Gaza. Mas isso só se viabi­lizaria se houvesse concordância dos EUA e Israel.

EC – O senhor afirmou que os EUA têm uma relação sui generis com Israel, inclusive de sub­missão. Por quê?
Nasser – Ora, ao mesmo tempo em que os EUA, que sustenta econômica, política e militar­mente Israel, chegando à cifra astronômica de US$ 3 bilhões anuais, volta e meia seus governantes são criticados por Israel. Às vezes chegam ao limi­te de desautorizar o próprio presidente dos EUA, como aconteceu em 2011. Em visita aos EUA, o primeiro-ministro Netanyahu ouviu o presidente americano, Barack Obama, que defendeu a adoção das fronteiras estabelecidas antes da guerra de 1967 para se chegar a um acordo de paz na região e a criação de um Estado palestino. No dia seguinte, foi ao Congresso norte-americano e declarou que Israel não iria voltar às “indefensáveis fronteiras de 1967”. Foi ovacionado e aplaudido várias vezes o primeiro-ministro de Israel. Dá para entender?

EC – A revista alemã Der Spiegel publicou pro­vas sobre espionagem dos EUA por Israel, como a gravação de conversas do secretário John Kerry, acu­sado de negociar com o Hamas. O que isso denota?
Nasser – Pois é. Se fosse qualquer outro país seria considerado atentado à segurança nacional, mas em se tratando de Israel, ninguém deu relevân­cia. Semanas atrás um membro do governo de Isra­el chegou, inclusive, a dizer que o secretário Kerry era aliado do Hamas.

EC – Que papel, influências e interesses têm os norte-americanos nos conflitos?
Nasser – Há várias hipóteses. Alguns veem Israel como parceiro privilegiado numa região pe­trolífera e altamente instável. Mas, para outros, em­bora o governo dos EUA tente convencer a opinião pública de que os interesses dos EUA e Israel são essencialmente idênticos, há, na verdade, um apoio incondicional dos EUA ao estado israelense devido, especialmente, às atividades do “lobby israelense” que, mais do que qualquer outro, tem conseguido desviar a política exterior dos EUA e até mesmo comprometer seus interesses nacionais.

EC – A causa palestina está isolada?
Nasser – Não há nenhuma potência mundial, nem regional que esteja disposta a patrocinar a questão palestina. Erdogan tem criticado duramen­te Israel por suas ações, mas não vai além disso. O Qatar tem dado ajuda financeira, mas não é rele­vante da perspectiva política. Já a Arábia Saudita e , principalmente, Egito são aliados de Israel.

A repetição como farsa

Foto: Mohammed Al Baba/Oxfam

Foto: Mohammed Al Baba/Oxfam

EC – Vê contradição na postura do governo brasileiro?
Nasser – Na verdade foi muito barulho por nada. Dias atrás o governo brasileiro declarou que a convocação de seu embaixador para consultas sobre os massacres em Gaza já cumpriu o “gesto político” que queria mostrar a Israel e autorizou seu retorno. O Brasil se manifestou contra a matança, fazendo um gesto diplomático ousado. Deu muito burburi­nho, prós e contras. Teve gente até que apontou mu­dança de paradigma na política externa brasileira, mas qual o resultado concreto? Os massacres, motivo do protesto do Brasil, não cessaram, as relações co­merciais e militares entre os países nunca estiveram tão em alta e agora tudo volta ao normal com o em­baixador em Tel Aviv. Já a Inglaterra e a Espanha, por exemplo, não chamaram seus embaixadores, mas suspenderam a venda de armas para Israel. Creio que a opinião pública mundial já sabe reconhecer o que é fato e o que retórica nas ações de governo.

EC – Qual a leitura possível da retratação do governo de Israel em relação às declarações de seu porta-voz, que havia qualificado o Brasil de “anão diplomático”?
Nasser – Creio que a declaração se dá mais no sentido de aparar arestas no campo diplomático e manter em curso as ótimas relações econômicas, tecnológicas e militares entre os dois países. Já está comprovado que a maioria dos judeus nos EUA tem uma posição contrária ao atual governo de Israel, mas no entanto o congresso norte-americano se pauta pelo que a Aipac diz e não os cidadãos de forma isolada. Digo isso para observar que não im­porta ter maioria de determinada população se não há um grupo organizado com elites poderosas eco­nômica e politicamente.

EC − Há lobby pró-Israel no Brasil?
Nasser – Como lobbies não são reconhecidos no Brasil, é difícil afirmar sobre isso, mas podemos fazer algumas inferências no sentido de que há al­gum grupo organizado que tem conseguido avan­ços significativos em prol dos interesses de Israel no Brasil e no Mercosul.

* Reginaldo Nasser leciona Relações Internacionais no departamento de Política da PUC-SP desde 1989 e também é professor do Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas, da Unesp, Unicamp e PUC. Mes­tre em Ciência Política e doutor em Ciências Sociais, responde pelo Instituto Nacional de Estudos Sobre os EUA (Ineu) e desenvolve pesquisas na área de Política Internacional com ênfase em conflitos internacionais, segurança internacional, terrorismo, Oriente Médio, África e política externa dos Estados Unidos.

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