EDUCAÇÃO

Alfabetização para a democracia real

Nos últimos dados divulgados, em 2012, o nível 6 de compreensão em leitura (o mais alto), foi alcançado por apenas um em mil estudantes brasileiros
Por Grazieli Gotardo / Publicado em 12 de setembro de 2014

Alfabetização para a democracia real

Foto: Elza Fiuza/Agência Brasil

Foto: Elza Fiuza/Agência Brasil

A construção de uma democracia autêntica não depende apenas de questões políticas e sociais. Uma de suas bases mais sólidas está na literacia de um povo, ou seja, na capacidade de utilizar as habilidades de leitura e escrita em atividades que passam pela aquisição, transmissão e produção de conhecimento com ex­celência. É o que defende o português José Morais, doutor em Ciências Psicológicas pela Universidade Livre de Bruxelas e doutor honoris causa pela Uni­versidade de Lisboa, que faz uma análise profunda do tema em seu livro Alfabetizar para a democracia (Editora Penso/Grupo A).

Em capítulo especial dedicado ao Brasil, o au­tor fala dos desafios da alfabetização e critica o sis­tema adotado há 15 anos pelo Ministério da Edu­cação – o construtivismo – que, segundo ele, não é o caminho correto. A maior evidência disso é o desempenho do país no Pisa (Programa Internacio­nal de Avaliação de Estudantes). Nos últimos da­dos divulgados, em 2012, o nível 6 de compreensão em leitura (o mais alto), foi alcançado por apenas um em mil estudantes brasileiros. Em Singapura, primeiro país no ranking, esse número ficou em 50 em mil. Apenas cinco brasileiros em mil atingiram o nível 4, considerado razoável.

Segundo Morais, a variação dos números brasi­leiros entre os resultados do ano de 2000 a 2012 não é significativa e o país continua na “cauda do pelo­tão”, em 55º lugar entre 65 países. “Obviamente, a situação atual não é apenas a consequência de uma escolha catastrófica em matéria de alfabetização. As fraquezas do ensino público são muito grandes. De­pendem em grande parte da pouca atenção dada à formação e ao reconhecimento socioeconômico dos professores, e não permitem contrariar os efeitos precoces das grandes desigualdades sociais na po­pulação escolar”, afirma o autor.

Morais acredita na adoção da psicologia e neu­rociência cognitiva para a alfabetização. Este méto­do utiliza dados científicos, coletados a partir de si­tuações experimentais, comparando grupos da mes­ma realidade e usando os resultados obtidos como objeto de análise. “A aplicação na escola desse co­nhecimento não é mecânica nem imediata: cabe ao professor encontrar as melhores formas de aplicação, que não são necessariamente idênticas para todos os alunos. Devem ser incentivadas à colaboração e às interações entre os alfabetizadores e os pesquisa­dores em psicologia e didática das aprendizagens”, afirma. A maior parte dos países asiáticos, que não utiliza o sistema alfabético, adota esta metodologia, além de países como a Grã-Bretanha, França, alguns países da Europa Central e Norte, vários estados norte-americanos e, desde 2012, Portugal.

Junto a isso, o método fônico de ensino também é defendido pelo pesquisador como o caminho cor­reto para o sucesso na alfabeti­zação. O objetivo é fazer o aluno compreender a representação dos fonemas por grafemas, cha­mando a atenção para duas for­mas – a falada e a escrita – e para a relação entre elas. A adoção do método fônico colabora ainda para o ensino de línguas estran­geiras e problemas como a dislexia. “Está demonstra­do, por exemplo, que os programas de reeducação das capacidades fonológicas são os mais eficientes para a maioria das crianças disléxicas. Obviamente, os seus professores deveriam ter um conhecimento aprofun­dado da dislexia, das suas causas e das suas manifes­tações, assim como das possibilidades de intervenção especializada“, explica Morais.

Sobre o ensino de línguas estrangeiras, o autor destaca ao menos três razões que facilitam aprendi­zagem pelo método fônico: conduz à compreensão do princípio alfabético e ao domínio das correspon­dências grafofonológicas; chama a atenção para as propriedades fonológicas, fonéticas e articulatórias das línguas e aproveita semelhanças e diferenças entre os códigos ortográficos das diferentes línguas, que podem ser aproveitadas durante o ensino de um segundo idioma.

José Morais, autor do livro Alfabetizar para a democracia

Foto: Arquivo pessoal

José Morais, autor do livro Alfabetizar para a democracia

Foto: Arquivo pessoal

Capitalismo corporativo na educação
Para Morais, os baixos níveis de compreensão e leitura de um país refletem em seu sistema polí­tico e democrático. O autor defende que vivemos em uma pseudodemocracia. “Chamo pseudode­mocracia o sistema político atual, vigente em todos os países que se pretendem democráticos, mas em que os representantes são na realidade designados por grandes partidos sustentados pelo poder eco­nômico e financeiro e por meios de comunicação subordinados a este poder. A existência de eleições a cada dois anos não é suficiente para se dizer que há democracia”, argumenta o pesquisador. Para ele, a verdadeira democracia supõe debate público, de­cisão coletiva e um controle político constante da ação dos representantes eleitos pelo povo.

Porém, não são os baixos níveis de literacia que fazem que um sistema político não seja democrá­tico, pois existem países desenvolvidos com altos níveis de leitura que vivem em pseudodemocracia. Morais destaca que o Brasil é uma pseudodemo­cracia porque o debate se faz entre elites, as deci­sões não são coletivas e não há controle constante e eventual revogação dos mandatos dos representan­tes eleitos. “Obviamente, um povo altamente letra­do, plenamente informado e que faz livre uso da sua literacia, da sua capacidade de reflexão, de avaliação e de crítica, terá ótimas condições para instaurar e defender a verdadeira democracia”, pondera.

CAPITALISMO CORPORATIVOO livro aborda ainda o capitalismo corporativo na educação, o chamado capitalismo das grandes cor­porações e da alta finança, modelo que se regula segundo as forças imediatas do mercado e que tem se expandido no Brasil com as empresas mercan­tilistas de ensino. Conforme o autor, esta forma de capitalismo está interessada numa escola que assegure líderes empreendedores, competitivos, ambiciosos e insensíveis aos desastres sociais e téc­nicos que produzam inovações e garantam o fun­cionamento da máquina produtiva alinhados com o desejo dos patrões. “Ao capitalismo corporativo não interessa a “outra” escola, a democrática, aque­la que procura desenvolver em todas as crianças as capacidades cognitivas e socioafetivas de que naturalmente dispõem, assim como a sua livre ex­pressão e o seu pendor à associação voluntária e à cooperação”, afirma.

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