OPINIÃO

A Casa da Vovó

Por Marcos Rolim / Publicado em 13 de março de 2015

Na América Latina, vários dos países que viveram períodos ditatoriais alcançaram formas de reparação e responsabilização

A Casa da Vovó

Ilustração: Pedro Alice

Ilustração: Pedro Alice

pelos crimes de violação dos direitos humanos. A Argentina se destaca com mais de 200 condenações pela prática de tortura, assassinato e desaparição de cadáveres. Logo depois, o Chile é o exemplo mais significativo. Uruguai, Paraguai, Equador e Peru também avançaram, em ritmos diversos.

Na experiência internacional, nem sempre a “Justiça de Transição” resultou em penas de prisão. Na África do Sul, Mandela conduziu o processo pela “Comissão de Verdade e Reconciliação” que assegurou a anistia contanto que os crimes fossem relatados por seus autores.

A produção da verdade foi, assim, a condição para o perdão, ao contrário do que ocorreu no Brasil, onde a anistia proposta pela ditadura tratou de impedir que a verdade fosse conhecida.

A forma como as nascentes democracias enfrentam o passivo de horror das ditaduras produz efeitos importantes sobre o futuro. A cientista política Kathryn Sikkink, da Universidade de Minnesota (EUA), por exemplo, estudou os processos de transição à democracia, encontrando que os países que puniram as violações aos direitos humanos possuem, hoje, menores indicadores de violência policial.

A incipiente democracia brasileira, como se sabe, evitou o desafio de identificar os responsáveis pelos crimes contra a humanidade. Esta foi uma das cláusulas não públicas da transição que obteve a adesão dos partidos políticos tradicionais, inclusive do PT.

No caso deste partido, assinale-se, tal adesão forma outro capítulo nebuloso na trajetória daqueles que transformaram a ambiguidade em estratégia. Do ponto de vista público, a opção foi amparada pelo senso comum, acostumado às fórmulas repetidas pela mídia dos “excessos de ambos os lados” (“teoria dos dois demônios”) e dos riscos do “revanchismo”.

Trabalhos publicados recentemente agregaram novas e perturbadoras informações sobre os crimes da ditadura. Deste conjunto, destaco o livro de Marcelo Godoy A Casa da Vovó, uma biografia do DOI-Codi, o centro de sequestro, tortura e morte da ditadura militar (Alameda, 612 pág.).

O livro, resultado de mais de dez anos de pesquisas, se tornou possível graças aos depoimentos colhidos com 25 ex-funcionários do DOI-Codi de São Paulo. Alguns concordaram em falar sob a condição de que suas identidades só fossem reveladas após suas mortes. Outros permitiram que suas alcunhas e mesmo seus nomes fossem publicados. Quase todos se orgulham do que fizeram, embora alguns tenham pesadelos e recordações que não estimam.

Por óbvio, as versões apresentadas pelos entrevistados devem ser tomadas com cuidado, até porque algumas informações-chave ou mais incriminadoras foram, certamente, omitidas ou distorcidas. O fato é que, graças a estes depoimentos, as mortes de 66 pessoas, 39 delas sob tortura, foram reconstituídas, além de relatos de 19 casos de prisão de pessoas que integram a lista de “desaparecidos” no Brasil.

O livro articula as informações com a história política do país e com a conjuntura da época, mostra o papel de torturadores conhecidos como Carlos Alberto Brilhante Ustra e Sérgio Paranhos Fleury e revela novos detalhes sobre o funcionamento do sistema clandestino de repressão. Ao mesmo tempo, parte da ideologia da esquerda revolucionária aparece sem as racionalizações posteriores e com a dramaticidade de uma guerra onde os pequenos grupos armados nunca tiveram a menor chance.

Em minha leitura, dois temas se destacam por seu interesse histórico. Primeiro, a montagem das casas de extermínio. A “Casa da Morte”, de Petrópolis (RJ), já era conhecida desde que Inês Etienne Romeu, a única presa sobrevivente daquele espaço, relatou os seus horrores. Em 1992, um sargento, ex-agente do DOI, havia já falado sobre uma casa conhecida por “boate”, que funcionou em Itapevi (SP). Não se sabia, entretanto, que a ditadura havia montado pelo menos outras duas casas do tipo no interior de São Paulo (Parelheiros e Araçariguama) onde os presos eram torturados, mortos e depois esquartejados para o “descarte”.

De outro lado, o papel das “infiltrações” nas organizações de esquerda aparece com muita força no livro. A repressão conseguiu, pela tortura e por ameaças variadas, colocar sob seu domínio alguns dos ativistas que, então, retomavam suas atividades clandestinas para prestar informações que levaram à prisão e à morte muitos outros militantes. Os delatores eram chamados de “cachorros” pelos agentes do DOI e estiveram presentes nas principais organizações da esquerda, sendo que, pelo menos em dois casos (PCdoB e PCB), houve infiltração no Comitê Central.

A Casa da Vovó é um livro com informações que muitos gostariam que jamais viessem à tona. Ele relata o que ocorreu em um tempo sem esperança ou evasão possível. E em lugares onde, parafraseando o que disse um torturador ao tenente José Ferreira Almeida dias antes dele morrer no DOI, “Deus esteve de férias”.

* Marcos Rolim é Doutor em Sociologia e jornalista. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe

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