ECONOMIA

Hora de voltar aos trilhos

País abandonou a opção das vias férreas, no século passado, tornando-se excessivamente dependente do transporte rodoviário
Por Ulisses Nenê / Publicado em 10 de abril de 2015

Hora de voltar aos trilhos

Foto: Edsom Leite/Ministério dos Transportes

Foto: Edsom Leite/Ministério dos Transportes

No interior de um vagão de passageiros abandonado, totalmente encoberto pelo matagal, nas proximidades da capital, onde antes funcionava a Estação Férrea Augusto Pestana, alguém escreveu com tinta branca e em letras grandes: “Insanidade”. São várias as definições de especialistas sobre o sistema ferroviário no Brasil, como “precário”, “irracional”, “caótico”, mas a melhor síntese parece ser esta mesma, de um autor anônimo. Ou, então, como explicar que o país tenha, atualmente, apenas 28 mil quilômetros de ferrovias, menos que em meados do século passado, quando a extensão da malha brasileira alcançava cerca de 35 mil quilômetros? Naquela época, dizem os especialistas na matéria, o país perdeu o rumo dos trilhos e nunca mais voltou à linha.

Recentemente, no final de fevereiro, bastaram duas semanas de paralisação dos caminhoneiros para se escancarar a enorme dependência que isso trouxe da opção feita pelo país pelo transporte rodoviário. Em poucos dias, já se falava em ameaça de desabastecimento. Além disso, as estradas dominadas por caminhões trazem outras consequências, como o trânsito caótico, alto percentual de acidentes graves causados por esses veículos pesados e altíssimo custo de manutenção das rodovias, esburacadas pelo excesso de peso suportado.

Abandono: Vagão deteriorado na antiga estação Pestana, da RFFSA, em Porto Alegre

Foto: Igor Sperotto

Abandono: Vagão deteriorado na antiga estação Pestana, da RFFSA, em Porto Alegre

Foto: Igor Sperotto

Superintendente da antiga Rede Ferroviária Federal (RFFSA) no estado por duas gestões, até 1995, o engenheiro Edemar Mainardi, 74 anos, lamenta: “o Brasil esqueceu as ferrovias e isso é muito ruim para o país”. Numa nação de dimensões continentais o investimento no transporte por trilhos deveria ser uma prioridade, observa, como nos Estados Unidos, que foram desbravados através de ferrovias e são cortados, de Leste a Oeste e Norte a Sul, por 226 mil quilômetros de malha ferroviária. Países de dimensões semelhantes, ou até menores, como Rússia, China, Índia, Canadá, Austrália, França, Alemanha, Argentina e África do Sul também têm participação muito forte do setor ferroviário na sua infraestrutura de transportes.

Dados do Laboratório de Sistema de Transportes (Lastran), da Ufrgs, mostram que 62,6% da matriz brasileira é rodoviária, 19,9% ferroviária e o restante se divide entre aquaviária, aérea e dutoviária: “Mas em alguns estados, como o Rio Grande do Sul, a dependência do transporte rodoviário chega a 80%”, informa o engenheiro, mestre em Engenharia de Produção e professor do Lastran, Fernando Dutra Michel. Para ele, falta planejamento de longo prazo nessa área: “Perdemos o trem da história, literalmente”, afirma.

Impacto nos preços
A concentração num único modal tem impacto direto no chamado Custo Brasil, acrescenta Michel. Cerca de 20% do valor de cada produto corresponde ao preço do transporte, chegando a até 40% nos estados com as piores rodovias, como Goiás, enquanto em outros países, em que as políticas de transporte são implementadas de forma mais racional e menos permeável a interesses privados, o item transportes responde, no máximo, por 8% a 10% do valor final.

O problema, porém, não se resume ao tamanho da malha

Mainardi, ex-superintendente da RFFSA: " trens deveriam ser prioridade"

Foto: Igor Sperotto

Mainardi, ex-superintendente da RFFSA: ” trens deveriam ser prioridade”

Foto: Igor Sperotto

, que no caso brasileiro é pequena demais para o tamanho do país. Existe ainda a dificuldade das diferentes bitolas dos trilhos, que no Sul são de bitola métrica (na qual as linhas são separadas por um metro de distância), enquanto no Sudeste predomina a bitola larga (1,60m) e no Norte e Nordeste volta a ser métrica, o que atrapalha a integração e a agilidade do sistema. Também prejudica a competitividade das estradas de ferro nacionais a sua baixa velocidade operacional, uma das piores do mundo, com média de apenas 23,43 quilômetros por hora, enquanto nos Estados Unidos e outros países a velocidade média dos trens chega a 80 quilômetros por hora.

Em parte, isso decorre da forma como surgiram as ferrovias brasileiras. Cada região, cada estado, tinha a sua própria empresa, de tecnologia belga, holandesa, inglesa, alemã ou outra, que recebia pagamento por quilômetro construído. Logo, quanto mais acidentada e cheia de curvas tivesse a linha dos trilhos, mais essas companhias lucravam. E é sobre esses traçados antigos que se assenta, ainda hoje, grande parte das linhas do país, onde composições modernas deslocam-se em ritmo de maria-fumaça.

Greve de caminhoneiros expôs dependência do país ao transporte rodoviário

Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

Greve de caminhoneiros expôs dependência do país ao transporte rodoviário

Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

Plano de investimento
“O governo pretende expandir a malha ferroviária para permitir a ligação de áreas de produção agrícola e mineral a portos, indústrias e mercado consumidor. Para isso, quer a revisão do modelo regulatório, para criar um ambiente mais competitivo no transporte de cargas, incentivar a utilização da capacidade da infraestrutura ferroviária e estimular investimentos”, afirma o secretário de Política Nacional de Transportes do Ministério dos Transportes, Herbert Drumond.

A boa notícia, neste sentido, é que o governo lançou, em 2012, o Plano de Investimentos em Logística (PIL), que prevê a aplicação de R$ 91,6 bilhões em construção ou melhorias de 11 mil quilômetros de linhas férreas, divididos em 12 trechos. A má notícia: o programa ainda não saiu da estação. Está parado por falta de empresas interessadas.

“O grande problema é que ferrovias exigem um capital muito alto para investimento e um tempo também razoável (para conclusão) e, diferentemente da rodovia, só começa a funcionar depois de totalmente pronta, quando liga A com B”, constata o coordenador do Conselho de Infraestrutura da Fiergs, Ricardo Portella Nunes. Segundo ele, os investidores não sentiram segurança na compra, pela Valec, empresa do braço ferroviário do Ministério dos Transportes, da capacidade total de operação dos trechos oferecidos. O empresário destaca ainda o potencial hidroviário desperdiçado, especialmente no Rio Grande do Sul, como a ligação direta da região Metropolitana, pelo Guaíba, ao Porto de Rio Grande. Um só barco, com capacidade para transportar mais de 500 contêineres, como é comum na Holanda, por exemplo, representaria 550 a 580 caminhões a menos na estrada, por dia, ressalta. Pelas dificuldades de logística, a soja produzida no Brasil, que é a mais barata do mundo, chega ao seu destino mais cara que a americana por causa de um sistema de transporte totalmente ineficiente. Ou insano, como diria o pichador do vagão abandonado.

Industrialização trouxe a “rodoviarização”
Nas primeiras décadas do século passado, houve uma expansão acelerada da malha ferroviária brasileira, através de empreendedores privados, que se manteve até os anos 1950, quando o Brasil ingressa no processo de industrialização. É, então, que acontece a guinada na direção da “rodoviarização”, com grandes investimentos públicos em estradas. Nessa época, em 1957, foi criada a RFFSA, centralizando 22 antigas companhias e priorizando o transporte de cargas em detrimento do transporte de passageiros – que hoje praticamente não existe mais nas vias férreas de longa distância.

Durante 40 anos, a RFFSA prestou serviços de transporte ferroviário, em 19 estados e quatro das cinco grandes regiões do país, operando uma malha que, em 1996, compreendia cerca de 22 mil quilômetros de linhas (73% do total nacional). Em 1992, foi incluída no Programa Nacional de Desestatização do governo Collor, acabando por ser privatizada no período 1996/1998, conforme um modelo de concessões por 30 anos, exclusivamente para cargas. Por licitação, ela foi fatiada em seis malhas regionais, onde predomina a força da América Latina Logística (ALL).

A empresa opera em 12,9 mil quilômetros ferroviários nas malhas Sul (PR, SC, RS), Oeste (MS), Norte (MT) e Paulista (SP). Críticos do modelo dizem que foi extinto um monopólio estatal e criados vários monopólios privados, pois as empresas concedentes controlam tanto a linha férrea quanto a operação dessas linhas, decidindo o que passa e o que não passa sobre elas.

Mas as críticas maiores recaem mesmo sobre a ALL, acusada de não expandir e ainda utilizar apenas a metade dos cerca de 3,2 mil quilômetros que recebeu por concessão no estado. A empresa, no entanto, afirma que está investindo em trechos das ferrovias gaúchas para que se mantenham no mesmo patamar em que foram assumidos no início da concessão e que está ampliando a capacidade operacional no território gaúcho. “A intenção é aumentar a estrutura de carregamento, melhorando com isso o tempo de tráfego. A companhia melhorou também seus índices de segurança, reduzindo cerca de 80% o número de acidentes desde 2006, por exemplo”, informou a empresa em nota ao Extra Classe.

Ferrovia Norte-Sul chegará a Rio Grande
Com previsão para conclusão em março deste ano, mas ainda sem ter sido anunciado, o Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental (EVTEA) do trecho da Ferrovia Norte-Sul (FNS), de Chapecó (SC) ao Porto de Rio Grande (RS) culminará com uma extensão de 834 quilômetros. Até mesmo uma Frente Parlamentar na Assembleia Legislativa foi organizada, realizando 15 audiências públicas, para garantir a obra. A maior discussão gira em torno do traçado principal, por onde ela vai ingressar no território gaúcho e seus ramais pelas regiões.

Obras da Ferrovia Norte-Sul, em Tocantins, cujo traçado deverá chegar a Chapecó (SC) e ao Porto de Rio Grande (RS)

Foto: Edsom Leite/Ministério dos Transportes

Obras da Ferrovia Norte-Sul, em Tocantins, cujo traçado deverá chegar a Chapecó (SC) e ao Porto de Rio Grande (RS)

Foto: Edsom Leite/Ministério dos Transportes

Uma das possibilidades é a linha passar por Frederico Westphalen e daí a Santa Maria, em direção ao Sul. A outra seria a entrada no estado através de Erechim, adianta o deputado Altemir Tortelli (PT), um dos integrantes da Frente Parlamentar. O EVTEA foi contratado pela Valec, órgão ligado ao Ministério dos Transportes e encarregado das ferrovias, em dezembro de 2012, com investimento no PAC de R$ 9,8 milhões, para os trechos Panorama (SP), Chapecó (SC), Rio Grande (RS).

Projetada para promover a integração nacional e minimizar custos de transporte e interligar regiões brasileiras, a construção da FNS foi iniciada por trechos, na década de 1980, no governo do então presidente José Sarney. O traçado inicial previa a construção de 1.550 quilômetros, de Açailândia (MA) a Anápolis (GO), cortando os estados do Maranhão, Tocantins e Goiás. Em meio a muitos atrasos e também denúncias de irregularidades, o projeto vem sendo ampliado e novos trechos foram incorporados, até este, que inclui a região Sul. Ao ser concluída, num prazo ainda não estipulado, de Barcarena (PA) a Rio Grande (RS), com 4.733 quilômetros de extensão, em bitola larga, a FNS vai representar a espinha dorsal dos transportes ferroviários no país.

Apenas o trecho de Palmas (TO) e Anápolis (GO) encontra-se em operação neste momento. Também estão em estudos na Valec 14 trechos do Programa de Resgate do Transporte Ferroviário de Passageiros, a partir de projetos de trens regionais do BNDES dos anos 1990, que incluem duas linhas no Rio Grande do Sul, Pelotas a Rio Grande (52 quilômetros) e Caxias a Bento Gonçalves (65 quilômetros).

Hora de voltar aos trilhos

Arte: D3 Comunicação

Arte: D3 Comunicação

 

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