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Cubano, crítico e progressista

Escritor cubano, autor de O Homem que amava os cachorros, fala dos aspectos positivos e negativos do regime de seu país
Flavio Ilha / Publicado em 8 de julho de 2015

Cubano, crítico e progressista

Foto: Ireno Jardim/Divulgação/Feira do Livro Canoas

Foto: Ireno Jardim/Divulgação/Feira do Livro Canoas

O escritor cubano Leonardo Padura, autor do best-seller O Homem que Amava os Cachorros (editora Boitempo), está assustado com a celebridade obtida a partir da publicação do seu primeiro romance histórico, sucesso mundial a partir do interesse gerado pela narração do assassinato do revolucionário Leon Trotski pelas forças stalinistas em 1940. Há um ano e meio sem se dedicar integralmente à literatura, Padura prepara a adaptação de suas quatro primeiras novelas para o cinema e para a TV. Os romances apresentam como protagonista o investigador Mario Conde – responsável pela celebrização de Padura no mundo das letras nos anos de 1990. A adaptação, que deverá ser vista em 2016, está sendo escrita pelo próprio Padura e por sua esposa, Lucia Lopez Coll. As produções serão filmadas em Havana, com direção do espanhol Félix Viscarret.

A produção está a cargo da Tornasol Films, que produziu entre outros o oscarizado O Segredo de Seus Olhos, do diretor argentino Juan José Campanella – melhor filme estrangeiro de 2010. Os filmes, um longametragem para o cinema e quatro capítulos para televisão, terão como base as novelas Passado Perfeito (1991), Ventos da Quaresma (1994), Máscaras (1997) e Paisagem de Outono (1998). Os filmes serão distribuídos para os mercados europeu e latino-americano. As adaptações aproveitam o boom em torno da obra de Padura, premiado com o cobiçado prêmio Princesa de Astúrias no início de junho devido ao “diálogo e liberdade” presentes em sua obra literária.

O escritor chegou ao Brasil na quinta-feira, 25 de junho, para participar da Feira do Livro de Canoas e da Festa Literária de Paraty (Flip), no Rio de Janeiro. Em Paraty, Padura dividiu a mesa no domingo, 5 de julho, com a emergente Sophie Hannah, escritora inglesa que ressuscitou o detetive Hercule Poirot – criado por Agatha Christie nos anos de 1920. Em entrevista exclusiva ao Extra Classe, Padura falou de sua relação com a sociedade cubana, de onde nunca saiu, dos seus autores favoritos e do seu último romance, Hereges, que será lançado no Brasil em setembro, além de antecipar o tema de seu próximo livro, ainda sem nome, mas que já mobiliza o escritor e tem 60 páginas escritas. “Eu estava muito preocupado porque não me vinham ideias para um novo romance, depois de um ano e meio apenas elaborando roteiros. Ainda que tenha 11 novelas escritas, creio que sou um escritor com pouca imaginação. Mas as ideias acabam surgindo das maneiras mais inusitadas”, explicou.

Extra Classe – Depois do sucesso de O Homem que Amava os Cachorros, o que os leitores brasileiros podem esperar de Hereges?
Leon Padura – São livros bem diferentes. No O Homem… havia um elemento político muito forte e que era inevitável pelo tema escolhido. Eu não gosto de escrever sobre política em meus livros, mas nesse caso era inevitável. Com um personagem como Leon Trotski, a política se mete na literatura, é inevitável. Agora, em Hereges (lançado na Europa e em Cuba no final de 2013), eu trato mais de alertar, de refletir para que a liberdade individual não seja contaminada pela política. O livro tem três relatos paralelos, em épocas distintas, mas que dão sentido ao todo. Os fatos históricos continuam presentes, como a tentativa de refúgio de um grupo de 900 judeus em Cuba antes da Segunda Guerra. Uma tentativa malograda. Então, diria que a liberdade é o centro do romance. Um exemplo: um personagem do livro, que é apenas mencionado mas que tem muita importância para o sentido da trama, é o filósofo Spinoza. Ele foi expulso da comunidade judaica a que pertencia, no século 17, e até hoje não foi reabilitado – apesar de muitos pensadores judeus clamarem por isso. Como se opunha aos dogmas, em suma, à política, do seu grupo, foi banido. É disso que estou tratando.

EC – O sucesso de O Homem… alterou de alguma forma sua rotina?
Padura – De forma bastante severa. Eu estava muito preocupado porque não me vinham ideias para um novo romance, depois de um ano e meio apenas elaborando os roteiros para as adaptações de meus quatro primeiros romances policiais para a televisão e para o cinema. Ainda que tenha 11 novelas escritas, creio que sou um escritor com pouca imaginação. Além disso, há os compromissos oficiais para a promoção, inda, de O Homem… (lançado no mercado europeu em 2010), feiras, eventos, palestras. Isso desvia o foco da criação, com certeza, embora seja necessário. Comecei a escrever um novo romance há poucas semanas em que os protagonistas são um casal homossexual que se envolve em um crime a ser investigado, novamente, pelo detetive Mario Conde. O argumento surgiu de uma conversa informal com minha mulher acerca de um amigo comum que nunca mais tínhamos visto. A história ficou escondida na minha cabeça por três anos, até voltar à tona durante um simples café da manhã. Já tenho 60 páginas e agora estou mais tranquilo, sei que o romance existe de fato.

EC – É uma volta às novelas policiais que o lançaram ao mundo das celebridades literárias nos anos de 1990?
Padura – De certa forma sim, embora eu nunca tenha abandonado totalmente o universo policial. O Homem que Amava os Cachorros, ainda que seja um romance histórico, é um thriller que pode ser lido como um suspense policial, apesar de a maioria dos leitores saberem o desfecho da história desde seu início. Já Hereges (com previsão de lançamento no Brasil em setembro, pela editora Boitempo) também é um romance histórico, mas com a presença, num dos seus eixos, do investigador Mario Conde, que aparece em muitos outros livros. Nos dois casos, houve uma exaustiva pesquisa. Nesses momentos, a narrativa é que define o rumo do romance. A trama verdadeira do meu novo livro, que se passou em Miami e envolveu um famoso dentista que expatriou um jovem cubano por quem se apaixonou e depois foi roubado por ele, será transportada para Cuba. Mas não posso contar mais.

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Reprodução

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EC – O senhor se incomoda quando é identificado com romances policiais, um gênero considerado muitas vezes menor?
Padura – De forma nenhuma. Os romances de Ruben Fonseca e Leonardo Sciascia, só para citar o exemplo de dois autores de quem gosto muito, podem ser vistos meramente como novelas policiais, mas são muito mais do que isso. São verdadeiros ensaios sobre as sociedades em que estão inseridos, muitas vezes com críticas bastante duras ao modo de vida e às relações sociais. Um thriller é um gênero com a mesma dignidade que qualquer outra forma de literatura. Mas essa dignidade, é claro, depende muito se o escritor trabalha seriamente ou não com os elementos da literatura. O que é a Madame Bovary, por exemplo, se não uma novela de amor? E Crime e Castigo? Não é a história de um assassinato? Parece-me claro que o gênero depende muito do escritor. O crime e a violência podem ser uma boa forma para se falar dos problemas sociais de uma determinada época ou de um país.

EC – Como está a situação em Cuba depois da distensão com os Estados Unidos, iniciada no final do ano passado?
Padura – Na prática as coisas não aconteceram ainda. Pouca coisa mudou em termos sociais ou econômicos, o embargo continua, apenas tem sido mais fácil o intercâmbio de turistas entre os dois países. Mas é natural que seja assim, são processos lentos, demorados. O primeiro passo é o restabelecimento de relações, o que já está sendo feito. A partir daí começarão outros passos, mas não sabemos em que velocidade. Pelo menos a tensão em que vivíamos com os Estados Unidos há mais de 50 anos começou a diminuir. Já não estamos na lista de países patrocinadores do terrorismo, o que é uma grande coisa. E nunca imaginamos que Barack Obama e Raúl Castro (atual presidente de Cuba) poderiam se cumprimentar, sorridentes. A sociedade cubana tem mudado muito desde os anos de 1990, quando começou a haver mais liberdades individuais.  Eu, particularmente, nunca tive problemas com meus livros, todos foram publicados e circularam normalmente em Cuba, apresar da imprensa oficial não dar muita atenção a eles. Também as minhas viagens, que se intensificaram demasiadamente a partir de uns anos atrás, nunca houve restrições. Apesar de eu ser identificado como um escritor crítico ao regime, nunca houve nenhuma ação do Estado contra mim.

EC – Por que o senhor nunca saiu de Cuba, apesar do tom crítico de seus livros?
Padura – Por uma razão muito simples: só consigo escrever meus romances em Cuba! Sou cubano e um cidadão absolutamente integrado à cultura e à realidade de meu país. Alguns escritores se adaptam bem a outro país e eu cito, por exemplo, o americano Ernest Hemingway, que escreveu boa parte de sua obra em Cuba, e o cubano Gabriel Cabrera Infante, que produziu basicamente em Londres. Mas comigo não é assim. Veja bem, minha juventude toda foi vivida nos primeiros anos da revolução, de forma muito natural. Fui uma pessoa, um jovem, normal. Nunca fui militante da juventude comunista, nunca fui filiado ao Partido Comunista. Não sou nem católico como minha mãe e nem maçom como meu pai. Não pertenço a nenhum grupo. Mesmo assim, fui ao campo cortar cana aos 15 anos de idade porque isso era normal. Você sabe quem fazia esse trabalho durante o período colonial? Isso mesmo, os escravos, que eram tratados com imensa brutalidade. Quando eu atuava como jornalista, em 1986, também houve necessidade de ir trabalhar como correspondente em Angola e eu fui. Então, me sinto absolutamente à vontade para ter opinião sobre a sociedade cubana, para criticar algumas de suas políticas oficiais. Por se cidadão cubano e por ter participado de sua formação contemporânea, tenho toda a legitimidade para fazê-lo.

EC – Passados 56 anos, o senhor considera que a revolução tenha trazido avanços para seu país? Cuba é melhor ou pior que antes da revolução?
Padura – Diria que é diferente. Mas isso, claro, depende do ponto de vista de quem analisa. Para os milionários de antes da revolução, a situação certamente piorou. Para os camponeses, que tinham a barriga cheia de parasitas, a situação melhorou muito. Então, tudo é relativo. Em geral, considero que a revolução foi um processo progressista muito importante. O grande problema continua sendo a opção econômica. Não funcionou. Claramente não funcionou. E antes que me pergunte, é certo que o embargo econômico liderado pelos Estados Unidos desde os primeiros anos contribuiu muito para a deterioração de Cuba. Mas não só. Houve erros internos também que podiam ter sido evitados. Também houve muitos erros em relação às liberdades individuais, em relação às minorias. Ninguém me contou, eu presenciei isso: há poucos anos, o simples ato de praticar yoga era visto como um desvio contrarrevolucionário, como um problema ideológico. Mas a situação social melhorou, sem dúvida. A discriminação racial desapareceu. Não o racismo, que é uma questão mais pessoal ou espiritual, mas a discriminação, essa não existe mais. A discriminação contra a mulher também desapareceu. Hoje em dia, seis de cada dez universitários são mulheres. E o mesmo se passa no mercado de trabalho. Atualmente, também há casamentos gays em Cuba, embora não sejam oficializados.

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EC – Em O Homem… aparece nitidamente uma certa simpatia do narrador pela figura de Trotski, injustiçado pela oficialidade soviética depois da ascensão de Stálin. O que teria ocorrido se a história tivesse reservado outro destino à revolução soviética?
Padura – Bom, as críticas de Trotski ao regime soviético são essencialmente as mesmas que tenho em relação a Cuba. Trotski sempre foi um revolucionário marxista. Mas, também, é preciso reconhecer que era muito fácil se colocar publicamente nessa posição porque seu antagonista era ninguém menos que Stálin, um contrarrevolucionário antimarxista. Era um ditador voluntarioso, apenas isso. Mas saber o que teria se passado no caso de se inverter a posição dos comandantes pós-Lenin? Eu creio que, no final das contas, ambos foram parecidos, mas com uma diferença fundamental: Stálin matou 20 milhões de pessoas quando estava no poder; Trotski, por sua vez, havia se dado conta que matando um milhão de pessoas conseguiria o mesmo resultado.

EC – O senhor vê com preocupação os avanços conservadores na política mundial?
Padura – Com certeza. Vejo com muita preocupação. Sou um defensor das liberdades individuais e um crítico da distorção que se faz com o termo “liberal”, apropriado pelos conservadores para identificá-los com políticas democráticas. As crises econômicas, a história nos mostra isso, e demonstrou da última vez de uma maneira terrível no final dos anos de 1920, proporcionaram o surgimento do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha. Essa preocupação é bastante presente.

EC – Nos últimos meses o senhor esteve envolvido com as adaptações de seus primeiros livros para o cinema e a televisão. Qual a diferença em relação à literatura?
Padura – Elaborar roteiros é um trabalho criativo também, mas que tem uma estrutura diferente do romance. A literatura é solitária. O filme não, necessita do diálogo com diretores e produtores. E na Europa e na América Latina, a lista de quem produz um filme nunca baixa de 25 pessoas! Quem tem a última palavra na verdade são eles. Agora mesmo estamos negociando a cessão dos direitos de O Homem que Amava os Cachorros para o cinema. A produção, que deve começar a ser rodada dentro de um ano, deverá ser francesa e norte-americana. Mas nesse roteiro eu não quero tomar parte de jeito nenhum. É uma história muito difícil de se contar.

 

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