MOVIMENTO

A guerra bate à porta

Refugiados tiram a Europa e as Américas da confortável condição de meros telespectadores das guerras alimentadas ou incentivadas por países que lucram com elas
Clarinha Glock / Publicado em 9 de outubro de 2015

A guerra bate à porta

Foto: Igor Sperotto

O corpo do menino sírio Aylan Kurdi, de três anos, encontrado morto numa praia na Turquia em 2 de setembro de 2015, depois que o barco em que viajava com a família a caminho da Grécia naufragou, colocou um holofote sobre o drama dos refugiados sírios e de milhares outros migrantes espalhados pelo mundo. Aylan e sua família fugiam de um país onde interesses econômicos de nações ricas fomentaram divisões internas, ajudaram a impor líderes autoritários e estimularam radicalismos religiosos, como o Estado Islâmico (EI).

Refugiados são pessoas que se encontram fora do seu país por temor de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, opinião política, participação em grupos sociais ou violação generalizada de direitos humanos que as impedem de voltar para casa. Até 21 de setembro de 2015, o Comitê Nacional para Refugiados (Conare) reconheceu a existência de 8.530 refugiados no Brasil, sendo 2.097 sírios. Segundo dados da Agência das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) das 59,5 milhões de pessoas deslocadas forçadamente até 31 de dezembro de 2014, 19,5 milhões eram refugiados.

O que leva as pessoas a deixarem suas casas em busca de um futuro incerto? “Cada conflito armado possui causas específicas e bastante complexas”, explica Deisy Ventura, professora de Direito Internacional do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo. Porém, há alguns traços comuns, como o poder e o lobby da indústria armamentista e o uso seletivo que a comunidade internacional faz de sua prerrogativa de utilização legítima da força. “Embora o uso da força seja proibido pelo Direito Internacional, salvo em legítima defesa ou por autorização do Conselho de Segurança da ONU, a mesma comunidade que autorizou, por exemplo, a ação militar na Líbia, sob o pretexto de proteger a população civil, omite-se hoje diante do conflito da Síria. Estas intervenções e omissões internacionais explicam-se, assim, pelos interesses dos Estados mais poderosos”, analisa a professora.

Essas ambivalências precisam ser evidenciadas nos discursos de autoridades e da própria imprensa. Fora de contexto, as imagens de refugiados ultrapassando as fronteiras provocam medo ou pena, e ignora-se o fato de que muitos estão nesta situação devido à interferência de países que hoje se negam a recebê-los. “Na África, por exemplo, depois da colonização, muitos territórios foram delimitados artificialmente. Os grupos humanos ali se organizavam de outra maneira em termos de cultura, e de repente os europeus delimitaram fronteiras geográficas por interesses econômicos e políticos. Hoje muitos desses grupos estão em conflitos, e expulsam seus cidadãos em função de diferenças étnicas e religiosas”, salienta Denise Cogo, pesquisadora do CNPQ e professora de Pós Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo da ESPM-SP.

Migrações são cíclicas

Italianos, alemães, poloneses, árabes e demais migrantes que vieram para o Brasil fugindo da pobreza e das guerras em décadas passadas e tiveram chance de trabalhar, contribuíram para o desenvolvimento do país. Seus descendentes estão integrados à sociedade. Ao longo dos anos, bolivianos, paraguaios e outros latinos também buscaram aqui esperança de futuro melhor e se estabeleceram, apesar de enfrentarem mais estigmas e condições de trabalho por vezes análogas à escravidão. Em 2008, com a crise econômica europeia e nos Estados Unidos, começou uma nova onda de migrações. O Brasil passou a receber grupos como haitianos e senegaleses. Em solo brasileiro, estes migrantes encaram um duplo preconceito: por serem migrantes e por serem negros, em meio ao racismo que persiste na sociedade.

O Estatuto do Estrangeiro, Lei 6.815 de 1980, ainda se baseia na ideologia de segurança nacional e considera o estrangeiro uma ameaça, não assegurando direitos a quem chega. Está em análise na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 2.516/2015, que se propõe a revisar a Lei de Migração. “O Brasil não tem uma Secretaria de Migrações, é a Polícia Federal quem lida com o cotidiano dos migrantes”, critica a professora Denise Cogo. “Precisamos avançar na ideia de cidadania, de ver esse migrante como alguém que pode contribuir com sua cultura e experiência”, afirma.

Denise Cogo lembra que todo cidadão tem direito à mobilidade. “Se a mobilidade das mercadorias e do dinheiro é tão facilitada pela globalização, por que a das pessoas deve ser limitada”?, questiona. “A ideia da nacionalidade foi uma criação dos Estados modernos. Somos cidadãos de territórios definidos por lutas políticas”, acrescenta. Logo, as pessoas não precisariam se identificar com um único território geográfico, simbólico; se poderia pensar numa cidadania universal, como propôs o 1º Fórum das Migrações, em 2008. Portanto, nenhum ser humano é ilegal. “Todos somos legais”. O máximo que pode ocorrer é uma infração administrativa, já que existem os Estados Nação que exigem documentos. Mas não um crime.

Calais, França: manifestação em memória das vidas perdidas de migrantes que tentaram atravessar para a Inglaterra

Calais, França: manifestação em memória das vidas perdidas de migrantes que tentaram atravessar para a Inglaterra

Foto: Amanda Martinez Nero / IOM

Do que fogem os sírios

O professor Mariano Aguirre, analista político internacional e diretor do Centro de Pesquisas Norueguês para Construção da Paz (The Norwegian Peacebuilding Resource Centre), explica o que é o Estado Islâmico, e por que sua presença na Síria leva milhares a fugirem de suas casas. Aguirre é professor na Universidade de Deusto (Bilbao), na Universidade Autônoma de Lisboa, na Fundación Ortega y Gasset (Madrid) e na Escola de Cultura de Paz da Universidade Autônoma de Barcelona. Tem livros publicados e colabora com artigos para jornais da Europa falando sobre política internacional, paz e segurança, com ênfase em Oriente Médio, Política Externa dos Estados Unidos e poderes emergentes.

Extra Classe – Quais são as origens do Estado Islâmico?
Mariano Aguirre – O Estado Islâmico (EI) surge do contexto da radicalização de setores sociais e de indivíduos nas sociedades muçulmanas. Suas origens estão nas tendências dentro do Islã que advogam por uma leitura estrita dos textos sagrados e de uma luta para impor um mundo governado por princípios religiosos. Esta visão radical vem desde as origens do Islã, mas ganhou força na última parte do século 20 devido ao fracasso dos estados árabes em garantir segurança, participação, justiça e bens essenciais a maior parte das populações. As elites do mundo árabe são consideradas por estes setores como traidoras e cúmplices dos infiéis colonialistas ocidentais. Se constrói, desta forma, um discurso contra as elites locais, contra os países herdeiros do colonialismo, ou seja, contra os Estados Unidos e Israel, e contra a modernização, encarnada na globalização, que ameaça as tradições e as regras religiosas que guiam a sociedade. O resultado é uma crescente radicalização que, em alguns casos, leva à violência contra os invasores, sejam os soviéticos no Afeganistão nos anos 1980, e as elites locais, além de Estados Unidos e Israel. A estes fatores se une a fratura interna do Islã entre sunitas e xiitas. O EI se apresenta como um defensor dos sunitas, que foram marginalizados durante séculos. Mais recentemente, desde a invasão dos Estados Unidos ao Iraque em 2003, os sunitas foram deslocados do poder e reprimidos pelos governos de corte xiita que governaram em Bagdá desde então. Por outro lado, na Síria o regime Alawita (uma derivação dos xiitas) reprimiu os sunitas. O EI aproveita estas situações e faz uma reivindicação milenar dos sunitas.

EC – Qual é a base econômica do EI?
Aguirre – O EI aproveita as redes e circuitos de economia ilícita criados no Iraque e Síria a partir das guerras nos dois países. Estes circuitos comercializam alimentos, petróleo e derivados, armas e pessoas. Por sua vez, o EI pratica a extorsão, o sequestro e a venda de obras de arte. Todas estas atividades permitem manter o exército, recrutar novos membros e edificar um Estado, o “Califato”, para rememorar uma época real e mítica do Islã (séculos 7 e 8).

EC – Qual é a relação hoje dos EUA com o Estado Islâmico no que se refere ao financiamento de armas? E com outros países da Europa?
Aguirre – O EI não recebe armas dos Estados Unidos ou Europa. Alguns grupos armados que foram derrotados ou se uniram ao EI haviam recebido armas do Ocidente em sua luta contra o regime de Bashar al-Assad na Síria, mas esta seria uma forma indireta de recebê-las. Segundo diversas fontes, a Turquia haveria encorajado e permitido a passagem de armas, combatentes estrangeiros pela fronteira e apoio a grupos jihadistas. De fato, a Turquia se uniu muito tarde à coalizão contra o EI que se formou em agosto de 2014.

EC – Qual é a relação com a Arábia Saudita?
Aguirre – A Arábia Saudita tem sido uma fonte de financiamento do Wahabismo, o ramo radical do Islã, há décadas. Embora agora o EI seja uma ameaça para Riad (a capital da Arábia Saudita), grande parte do apoio à ideologia, o radicalismo e alguns dos ramos que constituíram o EI vêm deste país, tanto contribuições do Estado como privadas. Ideologicamente, o EI se baseia no Wahabismo e o Salafismo que é uma corrente que reivindica os primeiros anos “puros” do Islã. Segundo o Salafismo, séculos de leituras e releituras e interpretações do Islã o corromperam, e é necessário voltar às origens.

EC – Quem poderia atuar como mediador, se estes países também estão interessados em questões geopolíticas?
Aguirre – É muito difícil em médio prazo que uma terceira parte, estatal, multilateral, ou não governamental possa mediar. O EI tem uma estratégia de choque, de infundir medo e atuar sem piedade contra o inimigo, os infiéis. Enquanto o EI tiver uma base social que o preferir frente a governos repressivos, ou ao caos das milícias na Síria, e continuar com vitórias militares, será difícil aceitar algum tipo de mediação. De todos os modos, é preciso manter aberto o diálogo, por exemplo, buscando caminhos no campo humanitário. As vítimas do EI necessitam disso.

EC – O que o Brasil tem a ver com tudo isso? Como os professores podem ajudar a compreender o que está por trás das guerras e da tragédia dos refugiados?
Aguirre – A radicalização do Islã é um fenômeno global. Devido à globalização das comunicações, do transporte e da cultura, nada do que ocorre em outras partes do mundo é alheio. Claro que as ações do EI têm mais impacto no Oriente Médio, países com cultura muçulmana da África e Ásia, e na Europa, Estados Unidos ou Canadá, onde há mais ou menos grandes comunidades migratórias muçulmanas. Mas a violência não convencional que usa o EI e a reivindicação de identidade religiosa ou étnica é uma questão que se estende ao sistema internacional. O Brasil tem problemas de violência, racismo e reivindicações frente ao Estado. Possivelmente, e tomara que nunca, chegue a ter um EI, mas seus acadêmicos, especialistas em política internacional e direitos humanos e o governo devem estar dispostos a entender o que está ocorrendo, da Síria e Iraque até a Nigéria e Somália, e nos subúrbios de Londres e Paris.

Solidariedade em três idiomas

Os espaços educativos podem nutrir a curiosidade de professores e estudantes para conhecer pessoalmente migrantes e suas histórias e enfrentamentos, sugere Denise Jardim, professora do Pós-Graduação em Antropologia Social da Ufrgs. “Receber no ambiente escolar os presidentes de associações de migrantes para uma roda de conversa e propor atividades interativas de troca de conhecimentos sobre países é bem mais interessante que folclorizar os “outros”. Nada melhor do que ouvir essas odisseias reais de pessoas reais”, afirma Denise que, entre outras atividades, participa dos comitês de atenção a imigrantes, refugiados e apátridas em Porto Alegre e no Rio Grande do Sul. E não é preciso esperar o “dia do imigrante” para fazer isso.

São Sebastião do Caí: projeto visa inclusão dos migrantes do Senegal, Gana e Haiti

São Sebastião do Caí: projeto visa inclusão dos migrantes do Senegal, Gana e Haiti

Foto: Igor Sperotto

Em São Sebastião do Caí, cidade a cerca de 65 km de Porto Alegre, a professora aposentada Ivete Suzana Selbach, 68 anos, uniu-se à iniciativa da Associação Comunitária Cultural e de outros professores, religiosos e comerciantes da cidade para dar aulas de português a um grupo de trabalhadores senegaleses, entre 20 e 39 anos, contratados por uma empresa da região. O projeto visa à inclusão dos migrantes do Senegal, Gana e Haiti. As aulas de Ivete acontecem na sede da Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL) da cidade.

Ivete, que é professora de Matemática, fala em francês para se comunicar com alguns integrantes do grupo que traduzem para outros, que só falam uma das línguas de Senegal, o wolof. “Considero um privilégio trabalhar com eles”, diz Ivete. “Com meu gesto, quero resgatar um pouco do que meus antepassados fizeram para os antepassados deles, africanos, que foram escravizados”, acrescenta. A sala de aula vai se enchendo aos poucos, e entre um “tudo bem” com sotaque se ouve palavras em francês e wolof.

Cheikh-Ka, 39 anos, um dos mais falantes, explica que eles vêm de várias regiões do Senegal, país africano que foi colonizado e viveu uma guerra civil ainda latente na região de Casamance. Segundo dados do Banco Mundial (2013), o Senegal tem 13,7 milhões de habitantes, dos quais estima-se que 47,6% vivem na pobreza. Chiekh-Ka e seus compatriotas saíram de lá em busca de emprego, devido à crise econômica.

Em Dakar, Cheikh-Ka trabalhava como motorista de ônibus, mas ainda não conseguiu revalidar sua carteira porque falta o visto de permanência. Deixou mulher e três filhos há cerca de um ano. Mbaye N’Diaye, 32 anos, também deixou a esposa no Senegal para tentar a sorte. “Nos chegou a informação de que o Brasil é a quinta potência mundial, em desenvolvimento, e aqui teríamos possibilidade de crescer”, explica. Ele só não entende como uma potência pode estar em crise atualmente, e diz que o que ganha ainda é pouco para sobreviver e mandar dinheiro para a família.

Os integrantes do grupo são muçulmanos de religião. Reúnem-se aos domingos para os cultos e para discutir os problemas dos migrantes. Sobre o racismo no Brasil, Cheikh-Ka é diplomático: “Todo país que fomos tem racismo. Aqui tem gente boa. Tem pessoas ruins, mas são poucas”. Gostam do futebol brasileiro, e têm um sonho em comum: voltar para o Senegal. Fallou resume: “Quero ter uma empresa no Senegal para dar emprego a todos os que ficaram”.

Para usar em sala de aula
– Guia: Migrações Transnacionais e Diversidade Cultural para Comunicadores – Migrantes no Brasil – organizado pelas professoras Denise Cogo e Maria Ballet, traz as leis, contatos com entidades e organizações, e esclarecimentos sobre o tema. Para baixar o guia, clique aqui.
Blog MIGRAMUNDO – contém notícias sobre o cotidiano de migrantes.
Projeto Visto Permanente – vídeos mostram a riqueza cultural dos diversos grupos de migrantes de São Paulo.
Jogo Contra o vento e a maré – coloque-se no lugar de um refugiado. No site da Agência das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) há jogos e informações atualizadas sobre o tema, com guia para professores. Versão em Espanhol.
Médicos Sem Fronteiras – assista ao vídeo sobre resgate de refugiados.
– Animação: a crise dos refugiados sírios.

 

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